Estava feicebucando com uma amiga sobre a morte do Millôr. Como eu, ela dizia que quando mais moleca achava o sujeito muito talentoso, mas lendo hoje as frases pinçadas que republicaram a não mais poder nos blogues por aí, parecia um tanto bobo.
Meu apreço juvenil por ele veio de um volume que pincei no Círculo do Livro porque dizia que era "humor", a coletânea TRINTA ANOS DE MIM MESMO. Embora houvesse algumas boas piadas, a maioria das coisas me pareceu inteligente demais pra mim. Se suas frases e posturas hoje não soam tão profundas ou reflexivas assim, é porque, graças a ele, o humorismo brasileiro avançou muito dos anos 60/70 (o auge dele) pra cá.
Tome-se por exemplo Chico Anysio, outro craque da graça que partiu ainda há pouco. Sim, ele era talentoso, sim ele era prolífico, mas a maioria de suas piadas poderia muito bem estar no roteiro de programas de rádio dos anos 50. A Escolinha do Professor Raimundo, com sua misoginia e imediato desrespeito a tudo que fosse diferente da norma, pra não falar do antiintelectualismo corporificado na ridicularização do bom aluno, era típica dessa corrente. Não por acaso era povoada de velhos comediantes, alguns dos quais o Chico tentava ajudar. Com décadas de experiência de tempo cômico cinzelado exatamente para esse tipo de espetáculo, não era de se espantar que fizesse sucesso.
Já Millôr fazia parte do povo que nos anos 50 (e principalmente 60) renovou o humor brasileiro, com pelo menos tanta influência quanto teriam trinta anos depois Marcelo Tas e a galera do Casseta & Planeta. Saíam os alvos fáceis - negros, mulheres, gays, pobres, deficientes físicos - e entravam as ansiedades da (aqui) emergente sociedade de consumo de massa. A ilusão do sucesso, a liberação da mulher, a hipocrisia conservadora, a religião, as preocupações ocas da burguesia passavam a assumir o papel de vidraça. Com coisas como trocadilhos, os dicionários propondo significados literais das palavras (tais como "patologia - estudo dos anatídeos"), e vocábulos que assumiam as formas (ou os conceitos) que exprimiam, essa nova geração até mesmo desconstruía a realidade exatamente como a contracultura que surgia (pelo menos aqui) concomitantemente (adoro esta palavra - soa côncava).
Essa galera era a primeira advinda da classe média urbana que surgia no Brasil, com uma bagagem de erudição disponível exatamente pra quem tem grana (e tempo) suficiente pra ter acesso a cultura, sem o excesso que leva aos excessos de um Thor Batista ("eu nunca li nenhum livro"), por exemplo. Era a turma de Jaguar, Leon Eliachar, Fortuna, Sérgio Porto e outros.
Esse humor teve uma importância fundamental na criação daquela juventude rebelde, hippie, anarquista e punk que viria depois. Muita gente importante já declarou que, por exemplo, a revista MAD (bem como as revistas de terror da EC) que primeiramente lhes abriu os olhos para as contradições e a hipocrisia daquela sociedade classe média suburbana nadando em inédita fartura que surgia no mundo ocidenal no pós-guerra.
Como todo autodidata provido de humor intelectual, Millôr na maturidade virou um velho rabugento. Suas frases podem parecer não tão espertas assim e coisas como suas outrora famosas (e estudadas em sala de aula) Fábulas Fabulosas podem soar completamente sem graça, mas sempre podem se encontrar pérolas ainda muito reluzentes e pertinentes em sua obra ("houve um tempo em que os animais falavam. Hoje em dia muitos escrevem"; ou seu desenho com lindas flores e passarinhos cantando com um arco-íris ao fundo e a legenda "tempos de grande opressão são tempos de grandes sutilezas" - para).
O blogueiro lembra também da entrevista que fez para o Pasquim nos anos 70 (com a turma toda) com Betty Friedan. Enquanto todo mundo bajulava a pensadora feminista, Millôr foi o único a desafiá-la (ela praticamente o chamou pra briga ali mesmo) (1). Enquanto isso, Paulo Francis, o sujeito que nos anos 80 e 90 se tornaria um tremendo apóstata antifeminista ficava desesperado com a deselegância do colega, vez e outra insistindo que ali estava uma tremenda intelectual, respeitada no mundo inteiro, famosa e conceituada e que não podia ser tratada daquela forma.
O blogueiro sequer conhece a obra da veneranda antifeminista, mas, a princípio, tem simpatias por ela, mas o episódio só faz crescer o Millôr a seus olhos porque el, menos do que um revolucionário, sempre foi um contestador - e Betty Friedan naquela época era uma unan"imidade intelectual. Em assuntos como ecologia, por exemplo, Millôr sempre foi conservador. E, embora se opusesse à ditadura e fosse intrinsecamente antiautoritário (POLICIAL: "então se eu achar que um marginal está ameaçando o senhor, devo permanecer quieto?" ENTREVISTADOR: "morrer é um direito nosso"), nunca abraçou o marxismo ("eu sou trotskista" - Paulo Francis, em O AFETO QUE SE ENCERRA). Ele nunca foi um autodidata inseguro que buscava desesperadamente uma legitimação intelectual como Francis, em sua vida posterior.
(1) Não que o blogueiro tenha algo contra a veneranda feminista - nem conhece a obra dela, na verdade. A admiração é pela coerência de Millôr, face à covarde guinada que o Paulo Francis teve quando foi morar nos EUA, ganhar em dólar e aparecer na tevê.
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