março 19, 2012

Relembrando as Câmeras Digitais

Há quatorze anos eu comprava minha primeira câmera digital, uma Casio QV-10. Custou o equivalente a 300 dólares, o correspondente a uns 1.000 reais de hoje. Sua resolução era de 320 x 240, ou cerca de 0,08 megapixels. Não tinha flash ou zoom e guardava até 96 imagens em seus 2 megabytes (sim, MEGAbytes) de memória e tinha, como a Xereta, duas posições de diafragma. Meu primeiro celular que tirava fotos - o primeiro da Motorola no Brasil e o mais avançado da época - tinha uma resolução 4 vezes maior e já possuía um led para iluminar a cena, mas as fotografias capturadas tinham uma qualidade bem inferior à Casio, provavelmente por causa da qualidade da lente, do sensor ou do software.

Sim, software. As fotos que as câmeras digitais capturam são de péssima qualidade antes de serem tratadas por programas especiais embutidos na máquina que precisam, entre outras coisas, adivinhar as cores de cada ponto da imagem, o pixel. Ao contrário dos antigos filmes, os pixels dos sensores fotoelétricos não captam as três cores básicas, mas apenas uma delas e somente após serem processadas é que elas parecerão com os arquivos coloridos que mandamos para os amigos e postamos nas redes sociais.

A Casio QV-10. Repare na lente rotativa e o visor de cristal líquido que mostrava como a foto ficara  (e ficaria). As primeiras câmeras digitais da Kodak não tinham esse visor, uma das principais vantagens da câmera digital. Não foi à toa que a empresa pediu concordata.

Pra explicar melhor como funciona a coisa, comecemos pela antiga película fotográfica. Como todo mundo aprendeu no jardim de infância, todas o espectro de cores pode ser obtido através das cores primárias - azul, verde e vermelho. A fotografia com filme usava sais de prata que sofriam uma reação química quando expostos à luz, ficando mais escuros - uma imagem em negativo. O grão de sal era o equivalente ao pixel e, quanto menor fosse, mais resolução tinha - as melhores emulsões para slides alcançavam o correspondente a 20 megapixels. Mas as imagens assim obtidas apenas mostravam a intensidade da iluminação na cena - a foto em preto e branco.

Não era preciso um grande uso das células gliais para se chegar à conclusão que com três imagens, cada uma mostrando a intensidade de uma cor primária na cena, seria possível, juntando as três, chegar à foto colorida. Mais um pouco de pensamento, tecnologia e engenho e logo foi desenvolvido um método em que três filtros com as cores básicas faziam com que três películas diferentes captassem uma imagem em preto e branco, mas que indicava quanto havia de cada cor no quadro. Depois bastava projetar as três fotos obtidas juntas, cada uma com seu filtro correspondente, pra conseguir a fotografia colorida.

Já o sensor da câmera digital subdivide sua área em quadrados de 4 pixels cada. Cada um deles capta uma cor primária, com o quarto captando novamente o verde, já que é a cor à qual a visão humana é mais sensível (1). Quando a foto sai do sensor, por motivos óbvios, ela parece borrada e cheia de ruído colorido. Um software especial analisa a quantidade de cada cor em pixels adjacentes e calcula a imagem final. Portanto, a programação de cada aparelho é tão ou mais importante que as lentes ou mesmo a qualidade do sensor. Algumas marcas permitem que seja baixada o arquivo diretamente do sensor, para que seja tratada num desses Adobe Photoshop da vida. Esse é o famoso formato *.raw e por isso ele é tão importante na fotografia profissional, já que pula o tratamento de imagem, normalmente voltado para amadores, criando cores artificialmente saturadas e enfatizando a nitidez sobre o ruído.

As células fotoelétricas coloridas que constituem o sensor de uma câmera digital. Note que cada pixel tem apenas uma cor, em vez de ser subdividido nas três cores primários como, por exemplo, na sua televisão. É o software da câmera que vai calcular a quantidade das outras duas cores em cada ponto a partir da leitura dos pixels próximos. O sensor da esquerda é um novo modelo pra conseguir mais resolução em menos espaço. Isso diminui o tamanho das câmeras, mas a interferência de um ponto em outro gera aquelas imagens sujas quando se tira fotos no escuro.

O ruído todo mundo sabe o que é: aparece em cenas mais escuras, com pontos de cores primárias nos lugares errados e dá uma aparência granulada e suja à cena. Chega a ser irônico como as tecnologias convergem por caminhos diferentes: o filme também ficava com uma aparência semelhante em condições de pouca luminosidade. É que quanto maiores fossem os grãos de sal mais rápido eles reagiam à luz e, assim, os filmes "rápidos", para ambientes escuros (400 ASA e acima) tinham esses grãos grandes e, quando ampliados, eles ficavam... granulados!

Já na câmera digital o causador do ruído é o sensor. No afã de enfiar cada vez mais megapixels em suas máquinas, os fabricantes criaram pixels cada vez menores. Essas microscópicas células fotoelétricas, quando atingidas pela luz, geram uma corrente elétrica correspondente, que é registrada. Depois, pra recriar a imagem, é só ver a quanta cor corresponde àquela voltagem.

Eu em 1999 ao lado do finado Bagaceira. Mesmo sem flash, sob luz de lâmpada caseira, a Casio, com sua resolução de 320 x 240 (0,08 megapixels) produzia fotos aproveitáveis.

Quanto mais escuro o ambiente, menor a corrente, então são usados circuitos amplificadores. Só que essa corrente amplificada gera um campo elétrico que interefere nos pixels adjacentes atulhados em espaços muito pequenos. E assim surge aquela foto granulada e suja típica de câmera digital trabalhando com pouca luz.

Ressaca na Urca em 1999. A minha tentativa de descompensar a exposição para diminuir a excessiva luminosidade de dia de verão acabou deixando a foto muito escura.

Mas tudo isso é uma longa digressão. Afinal, estava falando dos 14 anos de minha primeira câmera digital. Cara e com baixíssima resolução, quase ninguém a conhecia. Ao contrário de hoje em dia, ninguém esperava que um sujeito olhando a uma certa distância para uma caixa estivesse tirando uma foto - todo mundo supunha que para isso era necessário encostar o visor na cara. Isso ajudava a fotografar dissimuladamente, ainda mais que a lente da Casio girava. Também tinha uma qualidade revolucionária - você podia tirar quantas fotografias quisesse sem pagar nada a mais por isso! (Na verdade só 96 fotos, já que "cartão de memória" era um conceito futurista à época). E você ainda podia ver a) como a foto ficaria antes de batê-la e b) como ela ficou imediatamente após batê-la.

Vânia frente a uma gravura da exposição de Picasso no MAM em 1999. Como ninguém conhecia câmera digital antigamente, dava pra fotografar mesmo em museus onde era proibido.

Eu comecei a dizer para os amigos que as câmeras de filme estavam condenadas. Obviamente, eu estava cercado de profetas do passado. Pessoas que deveriam ser formadoras de opinião – escritores, roteiristas, dramaturgos, jornalistas e, raios, até fotógrafos! - simplesmente não conseguiam aceitar a ideia. Filme era bonito. Filme tinha o romantismo de precisar de revelação. Mais ou menos como hoje em dia tem gente que diz que o livro nunca vai morrer porque gostam do cheiro do papel (você já viu em alguma livraria pessoas cheirando um livro antes de comprá-lo?).


Sem precisar revelar, fotos de nu eram muito mais exequíveis com câmera digital (Scarlet Johansson que o diga). Um leve toque com Photoshop e temos grandes fotos de Josy e Vânia (respectivamente em Natal e Itaipuaçu, ambas em 1999), mesmo com 0,08 megapixels de resolução. 

A estimativa de dez anos, como se sabe hoje em dia, estava totalmente equivocada. Em 2004, 2005, só os mais renitentes ainda insistiam no filme. No começo deste ano a Kodak pediu concordata. A película ainda tem algumas ligeiras vantagens em contraste dinâmico, mas isso é tão pouco pra contrabalançar todo o seu handicap frente ao sensor digital que cada vez mais é apenas destinada a um mercado de nicho e alguns neuróticos elitistas. Principalmente no preço. Velho adora falar mal de como a garotada hoje em dia passa o tempo inteiro fotografando tudo, mas na verdade, levando-se em conta a quantidade de grana em que morríamos pra ter uma imagem, nós é que éramos os fanáticos malucos.

Continuem seu bom trabalho, câmeras digitais.


(1) Minha terceira câmera digital foi uma Sony F828. Em vez de verde, o quarto pixel do quadrado era sensível a uma variante, o esmeralda, para aumentar a gama de cores. Realmente a minha atual Panasonic não parece ter a cor vibrante que aquela máquina tinha, mas como a Sony abandonou esse sensor de 4 cores, não parece ter causado tanto impacto assim.

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