Alan Moore escreveu nos anos 80 duas histórias em quadrinhos seminais
para o gênero dos super-heróis, “Watchmen” e “The Killing Joke” (mal
traduzida para “A Piada Mortal”). A simples menção destes títulos para
nerds leva-os a se prostrarem, jogarem cinzas sobre suas cabeças e
berrarem que não são dignos. O Moore, entretanto, não é tão
entusiasmado quanto a essas obras e já deixou claro várias vezes em
entrevistas que se arrepende de tê-las escrito, chegando até a pedir
desculpas por autorá-las.
As duas histórias são violentas e sombrias e, junto com a magnífica “O
Cavaleiro das Trevas” (e ainda “Batman Ano Um” e “A Queda de
Murdock”), foram o marco zero dos quadrinhos de super-heróis
perturbados, problemáticos e beirando o sadismo que dominariam os anos
90. A década da new wave valorizava o art decó e os anos 40 e,
subsequentemente, o filme noir, tão idolatrado naquela era que acabou
infiltrando-se em tudo que era produto cultural de massa. Além disso,
os nerds que cresceram lendo Stan Lee e só conheciam as HQs
pós-revolução Marvel se tornaram profissionais do ramo e estavam
doidos para seguir os passos de seu mestre e fazer de seus heróis
personagens cada vez mais falíveis e cheios de defeitos, num afã de
torná-los mais “humanos”.
Foi uma era difícil. Numa historinha extremamente pretensiosa e
narcisista, Grant Morrison (isso mesmo, o roteirista se encaixou na
trama) explica ao Homem-Animal que os escritores haviam tornado o
universo dos super-heróis mais violentos no afã de que ele parecesse
mais realista. “Que Deus nos perdoe”, completava ao final o egomaníaco
escriba, com completa razão. Os anos 90 foram a era de ouro de
“heróis” que matavam, mutilavam, assediavam sexualmente e se drogavam,
tudo em nome do “realismo”. Lendo hoje em dia coisas como “A Queda de
Murdock”, um enredo hiperdurão, um arremedo de noir, escrito por um
nerdão como Frank Miller, é incrível como alguém possa ter levado
aquilo a sério. A coisa é quase tão exagerada e over como o pastiche
(intencional) que é “Sin City”.
Mas não foi por causa disso que Alan Moore pediu desculpas pelas suas
histórias. Bem, em parte foi, mas a verdade é que toda essa trilha era
bastante previsível a partir do momento em que ele abriu a porteira. É
que Moore, anos depois, chegou a uma conclusão que era óbvia para
todos os nerds da era pré-internet, quando os universos fictícios
tinham começo, meio e fim e não almejavam se tornar um mundo
alternativo do qual ninguém mais saia: aqueles personagens encapuzados
e de colante não foram feitos para terem profundidade psicológica
(conclusão a que ele também poderia ter chegado bem antes se não
estivesse tão preocupado em parecer inteligente).
Então eles foram criados para serem o quê? Bem, há alguns anos passou
na tevê a cabo o estapafúrdio reality show “Quem quer ser um
super-herói?”. Com baixo orçamento e apresentado por Stan the Man em
pessoa, um bando de nerds e aspirantes a celebridade criavam um
uniforme e um personagem e cumpriam tarefas a fim de que, no final, só
sobrasse um, que protagonizaria um gibi escrito por Stan Lee.
Nunca vi nenhum desses prometidos gibis, mas o vencedor daquela
temporada foi um nerdão americano. E, apesar da precariedade do
programa, a premiação foi emocionante, quando o nerdão começou a
contar como perdera o pai cedo e, portanto, Stan Lee foi tinha sido a
grande figura paterna para ele, ensinando-lhe valores, moral e como se
relacionar com as pessoas, através de seus personagens e suas
histórias (aliás, um famoso jornalista cultural também idolatra esses
produtos culturais nerds justamente porque foram eles que salvaram sua
infância).
Pois era exatamente para isso que serviam os quadrinhos de
super-heróis. Aqueles sujeitos encapuzados não eram homens, não eram
personagens de Shakespeare ou Cervantes, mas sim mitos. Suas aventuras
eram as odisseias mitológicas de nosso tempo. Álvaro Moya, numa feliz
alusão, chamou Stan Lee de “o Homero dos quadrinhos”. Embora talvez
ele estivesse mais para Ésquilo, já que adicionou aos mitos primários
da Era de Prata (1) mais tragédia e complexidade, inclusive
introduzindo a hubrys como parte da trama.
Foi com essa abordagem e uma câmera na mão que Sam Raimi levou às
telas no começo desse milênio uma das melhores películas de
super-herói já feitas (sendo que sua sequência é uma das poucas fitas
que a superam). Para tanto ele abusou de interpretações exageradas,
enquadramentos baseados na arte sequencial da Marvel, cores primárias
em abundância e edição remetendo a filmes B, desenhos animados,
histórias em quadrinhos P & B e velhos seriados cinematográficos,
referências culturais em si já quase arquetípicas de tão usadas (e
apreciadas). Não há como se contar de forma “realista” as aventuras de
um sujeito vestido de aranha, que gruda nas paredes sabe lá Deus como
contra outro caboclo que voa no que parece ser um skate e joga bombas
desintegradoras. É preciso apresentá-las como elas são, um mito.
Mas Sam Raimi era caro, Tobey Maguire era caro, Kirsten Dunst era cara
e Raimi torrava grana pra conseguir seu visual mitológico. O
extraordinário sucesso da Marvel Studios, com filmes de orçamento bom,
mas não gigantesco, astros não exatamente de primeira linha e
historinhas menos ambiciosas despertou a cobiça da Sony Pictures, que
detém os direitos sobre o Aracnídeo. E assim chegamos ao novo filme
sobre Peter Parker, o maior super-herói de todos os tempos (super
quem?).
A diferença entre a fita atualmente em cartaz e os filmes de Sam Raimi
é a mesma entre alguém chegar e contar uma história engraçada e um
vivente reunir várias pessoas e começar um relato de horas com
palavras como “aproximem-se todos, pois vou descrever agora a vida e
as aventuras de Peter Parker, herói cujo maior poder era sua
integridade e sua humanidade bla bla bla...”. Esta última é um mito.
Esta última é maior do que a vida, é um amplificado conto moral. O que
não é “O Espetacular Homem-Aranha”.
O filme não é ruim. Pra começar, as cenas de ação são bem coreografas
e filmadas com preferência para o plano aberto, sem uma edição
cheiradaça. O que leva a plateia a realmente ENTENDER o que está
acontecendo e por que os personagens estão vencendo (ou perdendo) a
luta. Num dos poucos pontos em que a fita atual supera a original é
que os criadores das porradarias preferiram enfatizar a agilidade do
Aranha. Mais surpreendente ainda é que o diretor Marc Webb não tem
passado no cinema de ação e, portanto, as chances de que o estúdio (ou
ele mesmo) pusesse a responsabilidade pela pancadaria nas mãos de um
coordenador de animação gráfica doido pra imitar Paul Greengrass ou
Michael Bay eram enormes.
É bem verdade que a coreografia pode ser melhor porque se passaram
mais de dez anos de avanços na computação gráfica do Raimi até o Webb.
Mas quando até mesmo o grande Spielberg se rende à animação digital
nas confusas cenas de ação de “Indiana Jones e o Reino da Caveira de
Cristal” e “Tintim”, é alentador ver que ainda existe vida cerebral
nas porradarias no cinema, em vez de pontos de vista se deslocando
como um mestre-sala bêbado só porque o diretor agora PODE.
A abordagem da fita atual, descontando as cenas de ação, é imitar um
filme da Marvel que tivesse um adolescente como protagonista. Imagine
um "Smallville" (um pouco) menos infantilizado. Peter Parker é um
adolescente em crise e pra ninguém ficar em dúvida, repare que ele
sempre entra na casa de Gwen Stacy pela janela, como fazia o Dawson da
(chatíssima) “Dawson's Creek”. Só que sendo o Aranha quem é, Gwen mora
na ponta de um arranha-céu.
Os atores estão bem, os personagens nem tanto. A tia May, que está
para Parker como Stan Lee para o nerdão que ganhou a primeira
temporada de “Quem quer ser um super-herói?”, parece uma debiloide. O
capitão Stacy é interpretado por Dennis Leary, comediante apresentador
da MTV nos anos 80 e protagonista de “The Job” e “Rescue Me”.
Transmite integridade, é verdade, mas dá umas escorregadelas caindo
numa irreverência inconsistente com o seu papel. Andrew Garfield trai
a idade nos closes. Flash Thompson abre a película com atitudes
completamente incoerentes com seu duplo nos quadrinhos – ele sempre
foi um valentão, mas um valentão ético. Se assediava moralmente
o pobre Peter Parker, fazia-o involuntariamente, sem partir pra
porrada (covarde) ou oprimir fisicamente os outros. Tais atos
tornariam impossível a conversão que ele sofreria no decorrer da HQ (e
que se reflete em parte na fita).
Num filme de super-heróis em que se desvaloriza o componente
mitológico, era de se esperar que as cenas de diálogo e drama fossem
menos bem-sucedidas, o que arrasta o filme até Parker ganhar seus
poderes e deixa à mostra um monte de buracos de roteiro. Mas, a partir
da picada da aranha, a trama desliza suavemente e dá até uns motivos
pra Parker se regozijar antes do clímax.
Se você gosta de super-heróis e filmes de ação, pode pegar uma sessão
que não irá se arrepender. Para o resto do público, talvez a película
não soe tão atraente. As obras de Raimi eram originais tanto na forma
quanto no conteúdo e até a mãe do blogueiro, que odeia fitas que
tenham coisas fantásticas e que não existem, se amarrou nelas. Já em
“Espetacular Homem-Aranha”, os jovens nerds sentados na fila de trás
saíram do cinema dizendo que acharam a produção melhor do que as
anteriores. O que talvez prove que a ideia dos executivos da Sony, de
que adolescentes precisavam se identificar mais com o Peter Parker.
Para isso, nada melhor do que fazê-lo uma cópia dos personagens dos
seriados da Sony. Isso, aqueles a que a galera teen assiste
obsessivamente. Assim, vendo seu herói igual aos estereótipos que
povoam aqueles programas, eles podem se relacionar com ele. Porque só
se for assim, já que adolescência pouco tem a ver com aquela estranha
turma que habita esses seriados.
(1) Era de Prata é o apelido que ganharam os comics dos anos 50
e 60, dominados por revistas em quadrinhos. Esse tipo de produto, mal
pago e direcionado exclusivamente para crianças, gerou na média obras
de menor qualidade que as das décadas anteriores, mais baseadas em
tiras de jornal, e que ficaram conhecidas como “Era de Ouro”.
julho 15, 2012
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