setembro 27, 2009

Festival do Rio 2009

Bad Lieutenant

Port of Duty: New Orleans

de Werner Herzog


O total e completo desespero é o primeiro passo para a verdadeira fé. Não me lembro de quem disse isto, mas os personagens do Abel Ferrara estão sempre próximos de dar esse primeiro passo. Desde seu longa de estreia, “O Assassino da Furadeira”, o diretor povoa a tela com sujeitos que de sua vida em meio à jornada acharam-se em selva tenebrosa, tendo perdido a verdadeira estrada, desde a supracitada criatura com a ferramenta mortífera - que busca a redenção pela arte e, falhando, pela morte (a princípio dos outros) - até o tenente mau do filme cult de 92, que tem uma epifania e acaba dando mesmo o primeiro passo e encontrando finalmente a tal da fé.

Contando a saga de um policial tão perdido em seus vícios e instintos que nem nome tem, insensibilizado pela sua profissão e tentando preencher seu vazio com todos os tipos de drogas, abusos e comportamentos autodestrutivos, Abel Ferrara concatenou provavelmente a fita americana religiosa mais surpreendentemente sincera desde “Barrabás”. A estrada para a redenção do tenente mau começa quando ele encontra uma bela e jovem freira, estuprada (até com um crucifixo) por dois rapazes. Ela sabe quem eles são, mas não dirá seus nomes porque os compreende e perdoa. Daí que Herzog refilmar esta história deixou todo mundo embatucado: além da aparente desnecessidade de uma nova versão pruma produção recente, cult, visceral e pessoal, e de estar trabalhando com um roteiro alheio, o alemão sempre esteve mais para o lado dos ateus, embora não necessariamente materialista. O que ele ia fazer com essa história de salvação nas mãos?

Bem, diz o Herzog que sua obra não é uma refilmagem ou adaptação da anterior. Que por ele o filme se chamaria só “Port of call: New Orleans”, mas alguém na produção detinha os direitos pro título “Bad Lieutenant” e queria meio que começar uma franquia. Tá bom. Vai ver esse alguém na produção viu que estava trabalhando numa história sobre um tenente de polícia drogadão, que assedia sexualmente menores, que tem problemas com apostas e que até mesmo trafica drogas e disse, “ei, eu já vi isso antes!”

Só que ele teve a vantagem de ver com o Harvey Keitel. O tira perdido da vez é o Nicolas Cage. Que começa o filme já no meio de um monte de referências bíblicas: uma serpente e um dilúvio. Ele é apenas mais um tira corrupto e cruel como seu parceiro Val Kilmer (Val Kilmer num Herzog?), mas em vez de levar a sério uma aposta sobre quando um prisioneiro vai se afogar na cela trancada durante a enchente do Katrina, ele acaba mergulhando na inundação pra salvar o vivente. Garante seu lugar no recomeço pós-diluviana, promovido a tenente, mas ganha em consequência um problema crônico de coluna.

Com a sutileza que lhe é característica, Nicolas Cage passa o filme todo torto e com as omoplatas encolhidas, num andar que rapidamente destruiria qualquer resquício de coluna vertebral. Tudo bem que não tem ele chorando nu e crucificado como fez o Harvey Keitel 17 anos atrás, mas com uma postura que imediatamente lhe garantiria dispensa até de um emprego de testador de colchões, é muito estranho que um bando de argutos policiais não perceba a óbvia metáfora para o peso do mundo que ele parece carregar. Como o tenente sem nome do filme do Abel Ferrara, o tira de Nova Orleans se afoga em drogas, descarrega sua frustração com abusos de poder, e frequenta prostitutas. Na verdade, não, namora uma prostituta de luxo. Mas a diferença entre os dois tiras e os dois cineastas fica clara logo na primeira sequência: o do Herzog tem um nome.

É porque o alemão é mais humanista do que teísta e a estrada para a salvação de Terence McDonugh começa quando ele investiga a morte de uma família africana com três crianças, inclusive uma assassinada logo depois de escrever um poema sobre seu amigo peixe, que olha para ele enquanto ele dorme. Torto, sem dormir, sentindo-se dimunuído frente aos clientes ricos de sua namorada, consumindo drogas à vista dos espectadores o tempo todo, o tenente mau ainda assim mostra inesperada perícia em seu trabalho. Pois ele acredita que solucionar o crime e levar o mais mau ainda chefão das drogas local à cadeia irá redimi-lo.

Herzog bota a fita de pé sem muito de suas costumeiras imagens líricas, mas quando estas aparecem, botam pra quebrar, como no assassinato dos capangas que acaba num espetáculo de street dance (não pergunte). Infelizmente, um tom corriqueiro num thriller policial não é o mesmo que um tom corriqueiro numa trama sobre uma expedição ao Amazonas no século XVI – é o que as séries de tevê gringas gostam fazem desde os anos 70. Mas o Werner é um cineasta que sabe tudo do ofício e rola a história com fluência e naturalidade sem precisar, graças aos céus, usar uma câmera tremendo como se segura por um atacante brasileiro na véspera da final contra a França em 98. Com toda a estabilização de imagem eletrônica, aparelhos cada vez mais leves e até mesmo a maior familiaridade de todo mundo com as cada vez mais onipresentes câmeras de vídeo, as únicas criaturas que ainda filmam tremendo como se estivessem com mal de Parkinson são os diretores de fotografia americanos (e alguns brasileiros).

E assim, sob esta sólida cinematografia, o corrupto Terry vai se afundando cada vez mais na mediocridade, assumindo mais e mais responsabilidades – a certa hora ele tem o carro cheio com um cachorro, uma prostituta e uma testemunha jogadas sobre suas frágeis costas - sem esboçar uma reação, apenas se deixando levar pelos acontecimentos. Até que eles fogem completamente de seu controle. E é aí que surge a diferença entre os dois cineastas de tenentes maus. O tira do Herzog vai tomar a tenebrosa estrada para o inferno e, como num livro de autoajuda às avessas, tenta reassumir o controle de sua vida – e sua identidade – quebrando até mesmo seu controvertido código de ética e desprezando todas as convenções. Este é o caminho para a excepcionalidade, a fuga a todas as trivialidades e futilidades burguesas que povoam a eternidade inútil do Nosferatu do cineasta. Associando-se aos assassinos da família africana, armando resultados de jogos, participando até de assassinatos, o homem, que a um ponto aceitou que sua namorada desse pra dois capangas pra se livrar de uma enrascada, consegue finalmente a solução para suas dívidas, para seus casos pendentes e para a promiscuidade de sua garota (Eva Mendes! Uau!).

Novamente de posse de sua vida – e de sua arma, uma Magnum 357, o revólver do Dirty Harry, o óbvio símbolo de sua masculinidade, que ele deixa o tempo todo à vista mal enfiada em sua virilha - ele consegue uma promoção, uma casinha com jardim e uma namorada grávida, uma prostituta casta. O sonho americano. Mas, escondido de todos, ele continua achacando menores e cheirando adoidado, até reencontrar o prisioneiro que salvou no começo da fita e os dois vão parar no aquário municipal. Apesar de tudo, Terry continua procurando alguém que olhe por ele enquanto ele dorme. Por um instante, parece que Herzog andou abraçando se não alguma religião, pelo menos um pensamento místico oriental. Até que Nicolas Cage, sutil como sempre, sorri, como se percebendo que nada daquilo faz sentido. E fade. Fim. Para Herzog, vem para todos.

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