Se Zé do Caixão adaptasse Alice no País das Maravilhas ia ser alguma coisa mais ou menos como Henry Darger. Os dois são exemplos de brilhantes - e chocantes - artistas primitivos cujas obsessões transcendem simples sintomas de psicose ou outros distúrbios psicológicos para se tornarem arquétipos de nossos mais profundos medos e desejos, aqueles enterrados lááááááá embaixo sob toneladas de socialização. José Mojica Marins, apresentador de talk-show, colecionador de quadrinhos, casado várias vezes, grande vendedor de si mesmo, conseguiu transformar suas manias em meio de sustento, mas Henry Darger (1892-1973), faxineiro praticamente a vida inteira, morando num quarto em Chicago, laboriosamente preparando sua saga de mais de 15 mil páginas e centenas de ilustrações ricamente coloridas apenas para seus olhos e de ninguém mais, nunca conseguiu botar sua expressão artística para trabalhar pra ele, muito pelo contrário.
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Já a menção a Alice no País das Maravilhas é pela óbvia pedofilia sublimada em expressão artística num bizarro mundo alternativo. Darger não era um letrado clérigo fotógrafo e matemático; na verdade seu conhecimento de arte era virtualmente nulo, afora a da cultura de massa. Aos 8 anos, após a morte da mãe, foi admitido num orfanato católico, sendo transferido para um sanatório depois de diagnosticado como masturbador. Fugiu aos 16 anos, alistou-se no exército e passou o resto da vida trabalhando como faxineiro, lavador de pratos e afins. Aos 24 anos começou a escrever o que se tornaria um trabalho de seis décadas. Darger teve um único amigo um pouco mais íntimo, assistia à missa compulsivamente e era tímido e calado. Apenas às portas da morte, quando seu senhorio abriu seu quarto, é que o mundo tomou conhecimento de sua obra. A partir dela, foi diagnosticado desde psicopata assassino enrustido a esquizofrênico, mas todos os relatos de gente que o conheceu indicam que ele, como o Marins, a despeito de diversos problemas, tinha controle sobre sua vida.
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Seu looooongo épico conta as atribulações das sete princesas preadolescentes de um planeta onde todo mundo é cristão e parece habitado apenas por meninas entre 6 e 10 anos, quando os exércitos de outro mundo, uniformizados como os da Guerra Civil Americana, resolvem invadi-lo. Há criaturas aladas mágicas que podem tomar a forma de crianças e serem tanto boas quanto más; criaturas chifrudas; batalhas enormes, narradas às vezes em centenas de páginas, enfim, todo o material de que são feitas aquelas fantasias adolescentes como Harry Potter, Guerra nas Estrelas e o Senhor dos Anéis, mas enquanto estas disfarçam a violência subjacente a níveis respeitáveis, Darger não se furta a minuciosas descrições de tortura e mutilações em crianças, incluindo desmembramento, esfolamento e estripamento.
Cheguei a traduzir dois parágrafos de um trecho que achei na Internet sobre um massacre de crianças, não dos piores, mas achei doentio demais mesmo para este blogue. Quem não pode resistir à curiosidade e sabe inglês, pode lê-lo aqui.
Essas descrições gráficas têm força não só por serem doentias, mas porque elas estão subjacentes a todas essas fantasias adolescentes que fazem a grana de um monte de franquias hoje em dia. Ideias de retaliação povoam o imaginário narcisista da garotada e nada melhor do que a sensação de onipotência conferido pelas cada vez mais violentas histórias em quadrinhos e animês. Curiosamente, a arte de Darger tem traços bastante parecidos com os da tradição oriental, talvez até mais do que com a arte ocidental. Na cultura pop japa atual, predominam os personagens com traços infantis ou juvenis - aqueles famosos olhos grandes, narizes pequenos, pele clara, suavidade nos traços - e alterna-se a candura com violência (ou sexualidade explícita) extrema.
Mas antes dos nipônicos e seus samurais juvenis decepando braços e arrancando corações, Darger já havia cortado - epistemologicamente, é claro - através das fantasias da cultura de massa. Para as ilustrações para sua monstruosa saga, Darger, consciente de suas limitações como desenhista, revirava latas de lixo, sebos e afins em busca de anúncios, jornais, histórias em quadrinhos e livros de colorir e infantis com crianças. Gastando seu parco orçamento em material de pintura, sobrava pouco para as ampliações que ele fazia em lojas de xerox para depois, laboriosamente, passar o pincel por sobre as linhas da arte original e cuidadosamente despir suas garotinhas.
Repare à esquerda: a garotinha do famoso anúncio de Coppertone. Vai me dizer que não acha que aquele anúncio tem um subtexto sexual?
Sim, despir, pois suas crianças estão sempre perdendo suas roupas, por motivos esdrúxulos como na pornografia dos anos 20 a 50, ou porque os adultos glandelinianos (os invasores) as arrancam. Muitas de suas meninas têm uma minúscula genitália masculina, tornando Darger ainda mais perturbador.
Antes de Wharol e da pop art, Darger já dobrava a cultura de massa sobre si mesma, quase de uma forma descontrutivista, questionando, assim como em seu texto, as fantasias subjacentes em anúncios e livros infantis.
O primitivo e o revolucionário convergem em suas visões: o inferno na terra vislumbrado por Darger remete a Guernica. Clique para ampliar e ver os detalhes.
É claro que nada disso funcionaria se não fosse pela beleza plástica das cores, da composição (quase sempre horizontal) e da expressividade dos personagens das aquarelas de Darger. Como já dito antes, remete inequivocamente à arte oriental e transmite uma verdadeira sensação de estranheza, de realmente pertencer a um outro mundo, um mundo onde uma garotinha poderia aparecer perseguindo um coelho branco dentro de um buraco (e quem quer ver uma exploração muito mais cínica do subtexto sexual desse tipo de história, inclusive com a constante perda de roupas, pode checar MALICE IN WONDERLAND, do grande quadrinista Wallace Wood aqui ou aqui).
Os massacres de suas crianças e muitas de suas imagens também são reminiscentes de ícones católicos de martírio - a pureza destruída pelo mundo exterior. Perdendo sua infância num rígido orfanato católico, ele ressalta várias vezes em seu texto o direito que as crianças têm a brincar e serem amadas. Seu único amigo, inclusive, partilhava com ele a ideia de criar uma fundação para ajudar a infância, em trocas de correspondência, já que ele se mudou de cidade pouco tempo depois de se conhecerem.
Henry Darger nunca pretendeu que suas criações fossem vistas por outros olhos, o que lhe permitiu uma completa liberdade criativa. Sem as restrições de um treinamento formal e cheio de conflitos em sua cabeça que nunca amadureceu, suas fantasias têm toda a violência e ressonância psicológica das grandes obras. Embora assistir à toda a carnificina de filmes de ação ou horror de Hollywood pouco provoquem além de risos ou bocejos em sua plateia, as aquarelas de Darger, sejam as resplandescentes cenas alegres, sejam os macabros infanticídios, ou mesmo aquelas em que as duas vertentes se encontram casualmente (como uma em que crianças nuas pulam corda ao lado de cabeças decepadas de adultos com os olhos e as línguas protuberantes como se estrangulados antes da decapitação, ainda com mãos esquartejadas em seus pescoços), têm uma inegável força muito além da simples repulsa civilizada à exposição dos desejos subjacentes à cultura de massa empurrada pelas nossas goelas abaixo em cada estilizado estripamento de filme de Michael Bay.
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