Verônica, de Maurício Farias
Os Farias fizeram o maior clássico policial do cinema brasileiro, “O assalto ao trem pagador”, e um dos melhores veículos infanto-juvenis para cantor na crista da onda (e não só no Brasil), o divertidíssimo “Roberto Carlos e o diamante cor-de-rosa” (tão à frente do seu tempo que tinha em sua trama um samurai com poderes místicos e um final enigmático sugerindo forças cósmicas em conflito). Mais polêmico foi o “Pra frente, Brasil”, de 1982, na época da abertura política, sobre a tortura na ditadura. Muita gente achou que soava ridículo a então estrela global Elizabeth Savalla dizendo (mal) “nunca vou abandonar a luta armada” e que fazer um thriller sobre esse assunto era de gosto duvidoso. Outra turma argumentava que o formato tinha mais apelo de público e, mesmo não sendo uma análise profunda ou particularmente corajosa, levava a discussão sobre os anos de chumbo a mais gente do que quietas fitas menos comerciais, como “Nunca fomos tão felizes”.
Essa discussão, de certa forma, pode se aplicar ao “Verônica”, de Maurício Farias, que também co-escreveu o roteiro que empilha clichê sobre clichê (começa, acreditem, com o microfilme – atualizado para um pen-drive - que cai por acaso nas mãos da protagonista!) com competência, profissionalismo e excelente ritmo, criando uma trama policial divertida e eficiente. Infelizmente, os diálogos também abusam do lugar-comum de forma bem menos agradável. O que é uma pena, porque as falas da cena de abertura são ótimas e preparam o espectador para linhas bem melhores do que as entregues pelo resto do longa.
A direção também não aproveita ao máximo as muitas boas cenas de suspense no roteiro, preferindo partir para uma edição picada e uma resolução rápida, ao invés de esticar o tempo cinematográfico. Andréa Beltrão está excelente como a professora e vai bem do mau-humor e irritação aos momentos mais candentes, sem deixar a peteca cair. Mas o garoto Matheus Sá, que em boa parte da fita contracena com ela, frequentemente deixa a desejar, prejudicando a química central do filme. Marco Ricca cria seu personagem sem muitas nuances, e nem o longa exige tanto dele, mas muitos dos atores que aparecem em pequenos papéis ou têm apenas duas ou três falas não aparecem bem.
Em suma, apesar de seus problemas e de uma resolução algo insatisfatória, “Verônica” é um thriller bastante divertido, podendo se perceber o prazer dos escritores em alinhavar com eficiência e precisão os clichês que eles tanto admiram em filmes policiais, bem como o de Andréa Beltrão ao interpretar sua professora de meia-idade, frustrada e, embora ainda bastante atraente, com clara noção de que seus dias de juventude estão no fim. A produção evita locações óbvias e passa o tempo inteiro filmando em condomínios de classe média baixa, enormes prédios de conjugados, favelas menos cenográficas do que o de costume e biroscas pé-sujo em lugares como a praça da Harmonia, a Gamboa e a Praça Onze. O problema é que a fita se põe de pé apoiando-se em tráfico de drogas e policiais corruptos, que funcionam muito mais como McGuffins – os traficantes virtualmente aparecem apenas na abertura e em uma cena de perseguição – do que como sinceras e cortantes denúncias sociais.
Para o valente editor deste saite, Zé José, por exemplo, é um absurdo que, além de condenarmos esse povo miserável todo a viver nesses guetos dominados pelo movimento, ainda os usemos como cenário e figurantes para fantasias cinematográficas. Mas será que devemos ser tão duros assim com “Verônica”? O enfoque do longa é na classe média mais para baixa que habita as quitinetes daqueles monstros de alvenaria que invadiram o Rio entre os anos 50 e 70, principalmente. Em quase todos os enquadramentos externos, sempre se vê ao fundo comunidades, velhos sobrados decadentes, cortiços, praças concretadas sem verde. Para boa parte da população da cidade, é essa a visão de seu mundo, com a miséria e a violência do tráfico de drogas sendo algo periférico, que ameaça envolvê-la, mas com o qual ela convive periclitantemente. Não deixa, portanto, de ser um comentário subliminar à visão de vida de Verônica e suas amigas professoras, com todos aqueles tiroteios e chefões do crime sendo algo meio distante, cuja existência o diretor Maurício Farias (assim como o noticiário, na vida real) insiste em lembrar sempre, apesar dos esforços para ignorá-la.
Em suma, “Verônica” é um filme feito por quem tem noção de como funciona uma história de gênero e que consegue com verossimilhança desenrolar um thriller no Rio de Janeiro. A direção, os diálogos e algumas atuações não estão à altura do divertido roteiro, mas é delicado usar problemas sociais sérios como os do Rio como alavanca de filme de suspense. A fita consegue se sair bem dessa, mas é sempre bom lembrar, por exemplo, que Hitchcock costumava lançar mão de tramas mirabolantes e claramente irreais para pôr de pé seus comentários sobre sexo, voyeurismo, poder, dinheiro e materialismo. Quando resolveu partir para assuntos menos abstratos, em “O homem errado”, abdicou de suas voltas de força cinematográficas e se concentrou em fazer um longa mais comportadinho, por mais compatível com a gravidade do tema.
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