março 10, 2011

Bárbara dos Prazeres e o Arco dos Telles



O Arco dos Telles não foi sempre um lugar chique. Ainda nos anos 70 e quase todos os 80 era um logradouro abandonado e mal frequentado. As fotos abaixo são dos anos 50 e o lugar claramente não estava em seus melhores dias. A melhoria começou quando foi construído um arranha-céu no lugar desses sobrados, mantendo apenas a fachada e sendo a entrada pelo próprio arco. Depois veio a inauguração do CCBB em 1987 ou 1988 e toda a área foi revitalizada, a partir do pioneiro Santa Fé, que abriu um barzinho com pretensões moderninhas e logo atraiu todo um público dos escritórios, da Cândido Mendes ali perto ou do próprio Centro Cultural do Banco do Brasil, uma fauna misturada que vai de secretárias executivas a jovens hippies-velhos em roupas coloridas. Parece que finalmente a região conseguirá manter-se pelo menos por um bom tempo em boa forma, agradável e atraente, pois desde o século XVIII só parecia ser capaz de atrair maus augúrios. Teria isso algo a ver com... Bárbara dos Prazeres?



Bárbara, sobrenome desconhecido, era uma bela portuguesa nascida em 1770 que emigrou em 1789 para o Brasil com seu marido. Aqui chegando apaixonou-se por um mulato e para ficar com ele assassinou seu esposo. Entretanto logo ficou claro para a moça que o mulato não queria nada da vida e pretendia viver às custas dela. A azafamada jovem então mandou-o passear lá para junto de seu ex-cônjuge e, como se podia esperar de uma mulher pobre e sem ninguém numa colônia no cu do mundo, tornou-se prostituta, frequentando a região do Arco dos Telles.

O Telles era um sujeito que tinha muitas terras em Jacarepaguá e também no Largo do Carmo, a atual Praça XV. Chamava-se do Carmo porque quando o convento dos carmelitas - ainda hoje de pé - foi construído, ele dava de frente para o mar, que começou a recuar no meio do século XV e em alguns anos chegou até o cais Pharoux. Quando o Rio foi elevado a capital por ser o porto que escoava o ouro das Minas Geraes, foi construída uma casa para os vice-reis, o Paço Imperial, o que valorizou a área. Assim, o Telles resolveu faturar levantando várias casas no seu terreno em frente, com a Câmara ocupando o andar superior. O projeto foi do Brigadeiro Alpoim, com o arco sendo fundamental para manter a entrada para a travessa do Comércio.

No entanto, em 1790, numa loja do térreo, na ponta, conhecida como "o Caga-Negócios" (não pergunte), um incêndio que marcou época na cidade lambeu o casario e destruiu os registros da Câmara, inclusive certidões de posse e escrituras de terras. Os registros das áreas mais importantes foram logo restaurados, mas os de locais distantes e sem interesse foram deixados de lado, o que hoje em dia causa uma confusão tremenda sobre direitos em terrenos da Barra e de Jacarepaguá.


Depois do fogo o arco passou a ser um lugar mal frequentado, refúgio de prostitutas, mendigos e perigosos marginais, como o Bentevi, o Juriti e o Olho de Gato. Também havia os loucos, como João Alberto Matias, autointitulado "Barão de Schindler" (não esclarecendo se aquele que faz listas ou aquele que faz elevadores) e conhecido do povo como "Filósofo do Cais". Alto, de fraque verde, descalço, cachimbeiro e sempre com um alto boné de soldado com plumas. Seria descendente de uma nobre família alemã, combatente nas guerras napoleônicas. Um dia enlouqueceu de vez e foi recolhido ao manicômio.



Mas a mais sinistra personagem a frequentar aquele antro era mesmo Bárbara dos Prazeres. Seu apelido viria da imagem de Nossa Senhora dos Prazeres que ficava sob o Arco, ali posta pelo povo na esperança de afastar os maus elementos. Mas a imagem é que acabou saindo dali atemorizada pra igreja da Sé, logo em frente. Outros acreditam que sua alcunha devia-se mesmo à sua profissão. Quase duas décadas de prostituição e pobreza não haviam conseguido arruinar a portuguesa, que ainda era uma mulher atraente. Até que foi atacada por uma doença, que especula-se que fosse sífilis ou lepra. Em busca da beleza perdida, conseguiu a receita de uma poção cujo principal ingrediente era sangue fresco. Inicialmente ela atacava pequenos animais como cabritos, leitões ou aves, muito valiosos numa colônia longínqua, mas em pouco tempo já não eram suficientes e ela começou a caçar crianças pequenas. Contam que a bruxa ficava de tocaia na Roda dos Expostos (1), na Santa Casa de Misericórdia, roubando os bebês ali deixados, ou mesmo atacando filhos afastados de seus pais. Tão feroz era que ficou conhecida como "Onça" e por causa dela teria surgido uma famosa expressão, originariamente uma admoestação para inquietos menores: "cuidado que a bruxa está solta".

Bárbara tornou-se a criminosa mais procurada da história do Rio de Janeiro até então, mas todos os esforços foram em vão. Relatórios da polícia de antanho contam como ela executava seu ritual sanguinolento em sua tapera na Cidade Nova, pendurando sua vítima pelos pés, abrindo-a como se fosse uma ave de caça e "banhando-se em seu sangue ainda quente". Que Jack o Estripador que nada, a Europa mais uma vez se curvava ao Brasil.



Em 1830, um corpo feminino quase irreconhecível foi encontrado boiando em frente ao Cais Pharoux. A mulher foi identificada como sendo Bárbara, embora sob forte controvérsias e negativas de conhecidos. Curiosamente a história terminava como a de Jack o Estripador - um cadáver flutuando junto ao cais, uma apressada identificação e uma vontade doida de varrer a história toda pra baixo do tapete. Aqui, ao contrário de Londres, funcionou, já que quase ninguém lembra da monstruosa bruxa portuguesa.

O Arco continuou sendo um local mal afamado e perigoso, mesmo diretamente em frente ao Paço Imperial e fincado virtualmente no centro da cidade, até o começo do século XX, quando foi reformado por Passos durante o bota-abaixo. Não durou muito seu lustro, em pouco tempo se transformou em moradia de baixa renda, abrigando outras portuguesas famosas, Carmem e Aurora Miranda, que lá moraram durante a infância, entregando marmitas aos fregueses de sua mãe.



O Arco só conheceu seus tempos de glórias depois de construído o arranha-céu - repare, na foto acima, as portas que não existiam antigamente, nas laterais da passagem, servem de entrada pro edifício - e transformada a área num enorme centro cultural. Como sói acontecer em lugares que entram em decadência a tal ponto que nem derrubados são, a região manteve seu casario do tempo do bota-abaixo dando um delicioso sabor do Rio metropolitano da República Velha. A localização e o ambiente propiciaram o surgimento de montes de barezinhos e restaurantes, que abrigam de chopadas a festas eletrônicas, fechando apenas nas primeiras horas da manhã, quando, dizem alguns - e não estou inventando - que se pode ouvir, ecoando nas portas todas trancadas das casas vazias, uma risada, a gargalhada da bruxa, o riso com que Bárbara dos Prazeres em seu território, onde nem mesmo Nossa Senhora pôde disputar primazia. Embora outros garantam que o corpo de 1830 foi apenas um engodo e que Bárbara vive até hoje.

Um tour virtual com o Street View do Google:

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(1) Uma roda onde as mães deixavam seus bebês indesejados. Ela era dividida ao meio por uma tábua e ficava no orfanato da Santa Casa. As mães punham as crianças na metade para fora, tocavam a campainha e a roda era girada para dentro sem que a identidade da mulher abandonando seu filho fosse revelada.

1 comentário:

Unknown disse...

Seu posicionamento dizendo que "melhorou" deixando de pé somente um pedacinho do edificio é deveras criminoso contra o patrimônio histórico. Aquelles arranha-céus são o que mais tiram a belleza do edificio.