Dia das Bruxas
Anteriormente: Por Qualquer Outro Nome
A Enterprise está cuidando de sua vida quando é feita refém por entidades semidivinas exigindo a presença de Kirk no planeta abaixo. Vem cá, se você fosse uma entidade semidivina, será que você não teria nada melhor pra fazer do que ficar pentelhando o orgulho da Frota Estelar? Os organianos, por exemplo, preferem ficar na sua a interagir com esses primitivos carboniformes, o que é algo muito mais sensato pelo ponto de vista de uma criatura altamente evoluída e poderosa além de nossa compreensão, mas eles parecem ser exceção num universo onde a diversão favorita de semideuses é mexer com o capitão Kirk – e obviamente levar uma trolha.
Robert Bloch escreveu Psicose e redigiria um dos melhores episódios de Jornada, o do Jack, o Estripador. Mas aqui alguma coisa saiu terrivelmente errada, ou na sua concepção ou nas sucessivas alterações que o roteiro sofreu em seu caminho do papel para a tela. Misturados na confusão estão um marido corno, as três bruxas de Macbeth, uma mulher que vira pantera como em Cat People (1943), um clássico do cinema de terror refilmado em 1981 com Nastassja Kinski, e muita, muita enrolação.
Diz a lenda que, ao filmar o maravilhoso film noir “À Beira do Abismo”, Bogart perguntou ao diretor, Howard Hawks, quem cometia um dos assassinatos da intrincadíssima trama. Hawks não sabia, mesmo depois de perguntar ao roteirista William Faulkner (que equipe, hein?), e resolveram ligar no meio da noite pro autor do livro original, Raymond Chandler (1), que também disse que não fazia a menor ideia. O mesmo provavelmente aconteceria se alguém perguntasse exatamente o quê esses alienígenas de fora da galáxia vieram fazer aqui. Eles falam algumas bobagens sobre querer saber como funciona a ciência humana, mas sem muita convicção. Mais decidida parece a mulher extragalática em aprender a trepar, mas o corno deixa bem claro que essa é uma deturpação da missão original.
Capazes de criar qualquer coisa do nada e fazer de uma astronave gato e sapato com o que parece ser magia, os alienígenas parecem estar perdendo tempo querendo dominar a ciência. Talvez a ideia original para o roteiro abordasse um velho questionamento místico, de que você só pode compreender o universo científica ou magicamente, mas não de ambas as maneiras, o que, de qualquer maneira, perdeu-se completamente no tratamento final.
Sem nada realmente ocorrendo durante a maior parte do episódio, os tripulantes da Enterprise são controlados, libertados, recapturados, e Kirk faz uma de suas melhores interpretações de “Flash-Gordon-desejado-pela-bandida-o-que-possibilita-uma-fuga”, mas nem isso chega ao fim. O corno é quem acaba abrindo as portas da cela, o que dá chance para uma horrorosa perseguição de um gato preto perseguindo nossos heróis, sendo exigido dos espectadores que imaginem que o bichaninho é uma gigantesca e ameaçadora pantera. Em “Cat People”, pelo menos no original, a repressão sexual da protagonista a fazia crer que ela viraria uma fera incontrolável se abrisse as pernas até mesmo para o marido, mas aqui, embora a atriz convidada (mais velha do que a média) exiba uma forte curiosidade sobre o que significa aquele estranho calor na bacurinha nunca antes experimentado, o tema também se perde completamente.
O episódio, como diz o nome, “Dia das Bruxas”, está mais para terror do que para ficção científica, exceto no pavoroso final, quando Kirk destrói (outra vez) a fonte de poder das criaturas e elas mostram o que realmente são: marionetes que seriam recusadas para fazer figuração no Muppet Show por muito trash. O blogueiro não lembra como elas pareciam na tevê, mas num DVD remasterizado, com resolução aumentada pelo player, num monitor de alta definição de 50 polegadas, os fios controlando-as são absurdamente visíveis. Sem contar que o desenho dos pobres fantoches lembra o Garibaldo de porre indo para uma festa new wave. É lamentável que a obsessão de Roddenberry de fazer sua tripulação encontrar Deus (ou uns feiticeiros poderosos) tenha levado a isso. Felizmente o próximo encontro de Robert Bloch com a Enterprise seria muito mais memorável, embora também com uma temática de horror e alienígenas incorpóreos e poderosos.
Digno de nota:
Contagem de corpos: um oficial da Enterprise e dois alienígenas extragaláticos.
O cabelo de Chekhov é inacreditável. Este foi o segundo episódio a ser filmado na segunda temporada; felizmente o penteado mudaria nos próximos.
O corno tenta subornar a galera da Enterprise com pedras preciosas, o que leva a turma de Kirk a rir com desprezo, já que eles podem fazer o mesmo no replicador da nave. É a primeira alusão da série (e do universo trekkie) à inexistência de dinheiro no século XXIII. O tema seria levado mais adiante nas séries posteriores e é curioso por contrastar fortemente com vários dos episódios, claramente anticomunistas (estávamos no auge da Guerra Fria, lembra?), e com o positivismo humanista, porém claremente capitalista (e mais diria – libertariano, até), de Roddenberry.
(1) Como disse meu crítico online preferido, Glenn Erickson (www.dvdsavant.com), se alguém me ligasse no meio da madrugada perguntando um detalhe sobre algo que eu escrevi anos atrás, eu provavelmente também não faria a mínima ideia.
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