outubro 30, 2009
A Fronteira Final - A Primeira Temporada de JORNADA NAS ESTRELAS - A série clássica
Delinquência juvenil espacial onipotente parece ser um problema sério na Via Láctea do século XXIII. Pelo menos é o que se depreende de “O Senhor de Gothos”, exibido pela primeira vez cinco meses depois de “O Estranho Charlie”. Em ambos uma criança mimada com superpoderes arma o maior auê na Enterprise até que seus pais venham levá-lo de volta puxando-o pela orelha, justo na hora em que o capitão Kirk (quem mais?) está lhes ensinando o que significa ser homem.
A fartura americana do pós-guerra, que transformou os Estados Unidos numa enorme nação de classe média criou a famosa cultura suburbana dos anos 50. Subúrbios lá, como os leitores devem saber, de comum com os nossos só o fato de serem longe do centro. Buscando escapar do cada vez mais desordenado crescimento das massacrantes megalópoles, a família média estadunidense se mudou para bucólicos condomínios de casinhas com cerquinhas brancas longe de toda aquela complicação barulhenta das cidades. Só que também longe do convívio com outros tipos de pessoas, longe do comércio variado, longe de bibliotecas, teatros, cafés, restaurantes, botequins... enfim, já deu pra pegar o quadro.
Embora a liberação feminina ainda fosse incipiente (trabalhar fora pra substituir os homens nas linhas de montagens pra guerra foi fundamental pras mulheres se tornarem mais independentes), já havia mães que trabalhavam fora, ou simplesmente tinham mais o que fazer do que comprometer tudo em sua vida em favor do lar e das crianças. Empregadas e eletrodomésticos estavam disponíveis pra cuidar da casa e a televisão pra tomar conta da garotada. E com dinheiro e tempo sobrando, a preocupação das mães em terem mais lazer e atividades pra si mesmas aumentou.
Resultado: em 1960 os americanos já tinham cozinhado a mistura que faria a geração Barra da Tijuca famosa. Crianças mimadas, isoladas do mundo real, criadas meio largadas pelos pais, cheias de grana, cujas referências da vida vinham não de vivência, mas do que viam na tevê e no cinema, começavam a tomar conta da América, achando todas – como dito em “Clube da Luta” - que se tornariam estrelas do cinema ou do rock e, por isso, sem a menor disposição prum trabalho de verdade.
O estranho Charlie é tímido, mas se arrumasse uma turma de vizinhos que nem ele estava pronta mais uma galera pitboy. Trelane, o Senhor de Gothos, também não tem amigos e seu “programa de televisão” favorito é observar a Terra. Como Gothos está a novecentos anos-luz do nosso planeta, ele se veste e se comporta como um general do império onde o Sol nunca se põe, o inglês. Com direito a decoração e acessórios do final do século XVIII, início do XIX, incluindo um cravo. Sim, eu sei, se a série se passa no século XXIII, Trelane deveria estar vendo o nosso Renascimento e se fantasiar de italiano, mas a essa altura os roteiristas ainda não tinham se fixado numa época exata (a data estelar foi inventada justamente pra evitar dar uma data específica) e sugeriam que a história se passava entre duzentos e oitocentos anos à frente.
Aliás, com a corrida espacial a toda, ela era um assunto tão quente na época quanto computadores hoje, e os escritores nem se deram ao trabalho de explicar que Trelane veria a Terra no passado devido à relatividade e a velocidade da luz, supondo que seu público saberia. Mas Trelane não sabe. Como suas referências não provêm de experiência pessoal, o fogo na lareira não aquece e nem consome a lenha, a comida e a bebida não têm gosto e todo o ritual cortês de começo de revolução industrial não tem substância. Como descreve Spock, Trelane é conhecimento sem intelecto e poder sem sabedoria e por isso está preso numa infância interminável, apesar de sua aparência de meia idade.
Trelane se veste com roupas floreadas da Terra, é obcecado com a agressividade humana e é um alienígena virtualmente onipotente, mas não é o Q da Nova Geração. Pra começar, ele adora a agressividade da nossa espécie. Crianças mimadas isoladas, como psicopata de filme americano, querem apenas sentir alguma coisa. Qualquer coisa. É assim que se criam os pitboys. Basta ver como Trelane reage quando é enganado por Kirk. Ele condena o capitão à morte num julgamento picareta e fica feliz por ter sentido raiva. Kirk então se oferece para lhe proporcionar ainda mais emoção: se o Senhor de Gothos liberar sua Enterprise, ele se deixará ser caçado até a morte. Como prometido em “Tempo de Nudez”, Kirk faz de tudo para salvar sua nave. Ele nunca a abandonaria.
Segue-se a caçada humana, na tradição de “Zaroff, o Caçador de Vidas”, deixando bem claro que seriados dos anos 60 com problemas de tempo e orçamento não deviam mesmo tentar cenas de ação complexas. Pateticamente encenada, a perseguição pode até fazer Trelane se sentir mais vivo do que nunca, mas é completamente controlada por ele – nunca houve competição nela, na verdade. Kirk faz o que pode, mas quando o onipotente alienígena diz que “ganhou” o jogo, é demais pro nosso capitão, que com uns tapas na cara demonstra ao meninão que não há vitória se não houver mérito. O extraterrestre é derrotado moralmente e, sem saber o que fazer, tanto ele quanto o roteirista, são felizmente ambos resgatados pelos pais do Senhor de Gothos, que aparecem providencialmente, pedindo desculpas a Kirk e falando com seu garoto que se ele não souber tratar seus animais de estimação, não vai ter nenhum.
Enfim, “O Senhor de Gothos” é bastante similar a “O Estranho Charlie”. Nossos heróis são menos passivos aqui, por duas vezes derrotando – pelo menos moralmente – o onipotente da semana, mas novamente precisam da ajuda de um semideus ex machina pra se safarem. Paul Schneider, autor do sensacional “Equilíbrio de Terror” (ponha linque aqui) é melhor escritor do que D. C. Fontana e prefere um tom mais irônico neste episódio. Os diálogos também são melhores e, embora com menos tensão – principalmente sexual, já que no início da série o assunto estava mais à tona – Schneider sublinha melhor que, se não deixarmos de lado nossas fantasias pra viver nossas vidas de verdade, corremos o risco de envelhecer sempre tentando vivê-las através de filmes e velhos seriados de tevê... epa, peraí, deixa eu reformular isso...
Digno de nota:
Contagem de corpos: Estão todos vivos, Jim.
Avistamentos de tenente Leslie: é o dia de glória de Eddie Paskey. Com todo mundo no planeta abaixo ou na sala de transportes, é ele quem senta na cadeira de comando – embora tudo que vejamos seja ele levantando quando o capitão volta.
O sugador de sal de “O Sal da Terra” (ou pelo menos a roupa picareta do monstro) está em exibição na sala de troféus de Trelane e é desintegrado com um phaser.
A voz da mãe de Trelane é de Barbara Babcock, a deliciosa jovem balzaca loura de “Um Gosto de Armageddon”. Ela ainda apareceria duas vezes mais na série e seu corpo longilíneo, em contraste com a fartura curvilínea da mulherada espacial, a faz uma beleza mais contemporânea.
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