Quando era moleque, curtia de montão Tintin. Suas aventuras convolutas, a famosa linha clara de Hergé (outro que botei entre os 20 gênios dos quadrinhos), sua impressionante habilidade em criar um mundo onde conviviam personagens caricaturais com armas, veículos e cenários detalhados e realistas (vejam a beleza que é o navio pirata d´O Segredo do Licorne), sua famosa auto-crítica de estereótipos n´O Loto Azul, o humor que não atrapalhava a ação e o bom gosto no uso de clichês, em álbuns com tramas mais complexas e refletindo a passagem do tempo (as aventuras colonialistas sendo substituídas aos poucos por histórias mais politizadas, envolvendo golpes de Estado, misticismo, drogas, discos-voadores e afins), tudo isso tinha um tremendo apelo para a garotada da minha época. Vendia em qualquer jornaleiro, em livrarias e lojas de departamentos.
Com o tempo, a morte de Hergé, a ascensão dos super-heróis violentos nos anos 80, a ficção científica barroca e erótica dos Humanóides Associados (mesmo incluindo declarados fãs e seguidores da linha clara de Tintin) e a própria visão de mundo cronocêntrica da geração seguinte, os álbuns foram desaparecendo e Tintin no Brasil caiu meio no esquecimento. O Cartoon Network passou uma série mais ou menos (embora extremamente fiel aos quadrinhos) do personagem nos anos 90, no segmento mais "aventua", à noite, perto do novo Jonny Quest, antes desse tipo de desenho ser monopolizado pelos animês, mas isso não aumentou a popularidade do adolescente. Agora, parece que o Spielberg finalmente está realizando um velho projeto e filmando as aventuras do jovem repórter, filme que não pôde sair até hoje por causa de uma briga com a família.
A origem da briga é que o Spielberg queria que o Tintin tivesse uma namorada, enquanto a família do Hergé era veementemente contra, por bater de frente com o cânone do personagem. Pois não é que pela primeira vez me ocorreu pensar "o que um adolescente já quase nos 20 anos que nunca foi visto ao lado de uma garota faz passando temporadas dormindo com um marinheiro solteirão num castelo cheio de tesouros de arte?" De lá pra cá eu não consegui mais ler as aventuras do jovem repórter sem pensar nisso e, depois que comecei a contar isso pros meus amigos quadrinhófilos já teve gente me dizendo que o Hergé teria tido sérios problemas psicológicos e tentado o suicídio por ser um homossexual reprimido, embora deva se considerar que hoje em dia se diz de todo artista morto que ele era um homossexual reprimido - já li até uma crítica de Andersen que explicava que ele nunca conseguiu escrever para adultos ao nível de sua literatura infantil justamente por isso (embora suas cartas de amor a um bailarino não pareçam indicar que ele fosse tão reprimido assim). A crítica prosseguia falando que O Patinho Feio era uma metáfora para sair do armário. Falando em forçação de barra...(1)
Espero que o filme seja maneiro e saia logo. Mais homoerótico eram o Batman e o Robin e o Clube do Bolinha, que era justamente o público-alvo disso tudo. Garotos até uns onze, doze anos. Depois eles descobriam as meninas e esqueciam essas bobagens de quadrinhos. Só o Will Eisner achava que esse tipo de literatura tinha valor artístico. Mas, já que estamos aqui falando de Hergé, ao contrário do artigo sobre Al Capp, vou logo comentar por que ele está na minha lista de Vinte Gênios dos Quadrinhos.
A caricatura convivia perfeitamente com o realismo e detalhismo dos cenários. Hergé não usava sombreados, hachuras ou mesmo fino e grosso de nanquim. Scott McCloud já dizia em Understanding Comics que os mestres da cor plana são mestres da forma, como bem exemplificado neste painel
Hergé é o criador da famosa linha clara. Role algumas postagens para baixo até encontrar "Como diferenciar um japonês de um chinês" (ou veja aqui, em uma nova janela), desenhado por um dos mestres do claro/escuro, Milton Caniff. Note que a linha de contorno, a linha que envolve e dá forma aos personagens, não tem a mesma grossura em todo seu comprimento. Em alguns lugares ela é mais fina e em outros, mais grossa. Isso é o que se chama de "fino e grosso". Ajuda a criar uma ilusão de volume e é obtido pressionando-se o pincel (ou a pena) contra o papel; as cerdas (ou a pena) se abrem e fazem a linha mais grossa. Alguns profissionais inclusive avaliam a qualidade técnica de um ilustrador pela sua capacidade de num movimento contínuo e ágil, sem tremidas, fazer as longas linhas contínuas, tais como do braço ou da perna. Esse recurso também ajuda a dar "movimento", sugerindo mais fluidez e velocidade.
Hergé não usa o fino e grosso. Ele trabalha com uma linha de contorno contínua e homogênea. Ele também não tem arte-final carregada, ou seja, não usa sombreados e nem hachuras. Compare novamente com o excesso de tinta preta usado por Caniff na postagem sobre japas e chinas. A cor tampouco usa tons ou semi-tons: cada objeto fechado tem uma única tonalidade. Tudo isso dá ao quadro um ar estático, sem volume, sem vida. É preciso um mestre em perspectiva, movimento humano, volume, composição e escolha de cores. Felizmente Hergé é tudo isso.
Clique na imagem para vê-la em todo seu esplendor, em outra janela
Em "Entendendo Quadrinhos", Scott McCloud explica que os mestres da cor plana, isso é, sólida e sem tonalidades, são também mestres da forma, e escolhe como seus dois exemplos Jack Kirby e Hergé. Jack Kirby carrega na arte-final, Hergé não. Seu desenho é limpo e elegante. Seus personagens, para tirar o ar estático dado pela linha de contorno homogênea, quase sempre são retratados NO MEIO de um movimento, ao invés de no final ou no início, o que é o mais comum. Tintin, depois de alguns álbuns, não era publicado em tiras de jornal e, ao invés de simplificar os cenários ao fundo, para não empastelar o quadro, Hergé pode caprichar nos detalhes, sabendo que os leitores poderão distinguir todos os objetos em cena graças à cor bem escolhida da boa impressão que a historinha teria.
Hergé também tinha grande consciência de técnica narrativa, embora conservador. Seus planos mudam sempre para enfatizar a ação e enquadrar quem está falando, dinamicamente. Seus rostos, apesar da simplicidade, são expressivos. E sua composição sempre agradável. Vejam o exemplo acima (sugiro clicar na imagem para poder vê-la em detalhes, em tamanho maior): no primeiro quadro, o mestre da forma ataca novamente, criando um painel quase surreal. No segundo ele destaca o que interessa da cena, o militar tentando fazer o motorista correr para chegarem a tempo de salvar os Dupondt. O mais importante da cena é o sujeito falando que vai ser impossível correr nas ruas cheias, para diminuir as esperanças de salvamento, portanto é ele quem é retratado de frente, enquanto o milico aparece de costas. Finalmente, o terceiro e silencioso quadro. A grandiosidade do primeiro, a movimentação excessiva das pessoas e a explosão de cor, tudo nos leva a imaginar imediatamente a barulheira do carnaval. A proximidade dos dois personagens logo a seguir também nos sugere que estejam gritando para se fazerem escutar. A sequência se encerra com uma tomada silenciosa. A formalidade e simetria dos gestos dos militares, sua ordem unida, ao contrário dos caóticos movimentos mostrado antes e a falta de balões imediatamente remetem a um soturno e sombrio silêncio. A sensação é magnificada porque o ângulo dos fuzileiros, a inclinação de seus fuzis e suas pernas, formam uma espécie de seta que "aponta" para os detetives, de preto da cabeça aos pés, pequenos (e, portanto, oprimidos) ao fundo. Os infantes de verde estão literalmente apontando diretamente para nossos heróis, com o preto (cor da morte, cor do luto) carregado aumentando a dramaticidade. Como nota complementar, reparem nos pés dos milicos, todos com a planta pousada no chão, transmitindo perfeitamente o peso dos corpos deles pressionando a bota contra o solo, já que Hergé dominava também essa técnica perfeitamente.
Um mestre da forma
As histórias de Hergé eram cheias de humor e suspense, com perseguições mirabolantes e tramas convolutas. Ele abusava de alguns clichês, como o cigarro que o bandido esquecia na cena do crime (um dos dez erros fatais para escritores de mistério, segundo o escritor policial S. S. Van Dine), mas em compensação mantinha sempre sua narrativa num certo nível de credibilidade condizente com o realismo dos cenários. Tintin não era excepcionalmente forte ou rápido. Tinha MUITA sorte e pensava MUITO rápido, mas não saía na porrada com sujeitos bem maiores do que ele e vencia. Várias vezes se diz que ele tinha boa pontaria, mas ele nunca mata ninguém, embora esteja constantemente armado. Como já dito, também, Hergé nunca se ateve à época da criação do personagem. Ao contrário de outros autores, acompanhou a passagem do tempo; é verdade que Tintin usou bombachas durante tempo demais, mas suas roupas de viagem se modernizaram bem mais rápido e no último episódio, "Tintin e os Tímpanos", ele até usava jeans. Carros, aviões e armas eram as da época em que o álbum estava sendo escrito e não da criação do personagem. Nos anos 50 ele foi à Lua num projeto do Professor Girassol, extremamente bem escrito, plausível e abordando vários problemas reais de uma viagem de tal porte. Em "Vôo 707 para Sidney" ele encontrou discos-voadores e em "Tintin e os Tímpanos" se meteu com guerrilheiros latino-americanos.
As primeiras aventuras de Tintin, para conseguir cor e exotismo, se passavam nas distantes colônias européias e, como não podia deixar de ser, retratavam a visão racista de um branco europeu; ao contrário de Hugo Pratt (autor mais tardio e que foi muito influenciado por Hergé) ele não estava interessado em antropologia ou nas culturas locais. Entretanto, quando anunciado que ele escreveria uma história sobre a China, um fã local seu mandou-lhe uma carta pedindo que, por favor, não os retratasse com os velhos esterótipos racistas dos caucasianos da Europa. A carta encontrou seu caminho no álbum quase ipsis literis através das palavras de Tchang (veja ilustração abaixo; clique nela para ver em tamanho maior) e desde então ele fez um esforço consciente para ser politicamente correto (embora nem sempre o tenha conseguido, é claro).
Mas quem se importa com isso? Um garoto quase da nossa idade vivia um monte de aventuras nos locais mais estranhos, dirigindo carros, aviões, navios, submarinos, atirando com revólveres, metralhadoras, fuzis, enfrentando vilões coloridos, quase morrendo de sede, insolação, fome, sempre seguido por seu fiel (e alcoólatra) cachorro. Não tem garotas? Tudo bem, era escrito para a molecada pré-púbere mesmo - essa história de adultos retardados lendo gibis em vez de cuidar da vida é coisa do mundo pós-industrial. E ainda tinha conceitos sensacionais, como radjadjah, o veneno que enlouquece, com o pessoal que era atingido por ele sempre tentando contar o que sabia antes que ele fizesse efeito: "Vou contar o que sei. A esfinge está enterrada no... Lalarilarara... Eu sou uma flor de laranjeira! Oh! Chego a rir de me ver tão bela nesse espelho!" "Pobre coitado... o radjadjah não tem cura...". E os personagens secundários. Os inesquecíveis xingamentos proparoxítonos e multissilábicos do Capitão Haddock (Ectoplasma! Octópode! Filibusteiro!). Tudo isso fazia de Tintin um barato. Pena que com a morte do Hergé, o "Walt Disney Europeu" (como era chamado nas introduções dos álbuns) tenha caído em relativo esquecimento pela nova geração, que deixa de conhecer uma alternativa elegante e bela para os hiperativos quadrinhos japoneses (e americanos imitadores).
No primeiro quadrinho, Tintin está com um pé sem contacto com o solo. Hergé adorava retratar caminhadas assim, com os personagens mostrados no meio do movimento. Milou está em pleno salto. Em seguida, embora estático, em vez de ter simplesmente virado o rosto, Tintin virou todo o corpo. Os quadrinhos seguintes têm como centro o avião, mas, no final, Tintin e Milu correm bidimensionalmente com os pés no ar, numa pose icônica e típica das aventuras do jovem jornalista. Hergé era um mestre da movimentação, dos volumes e da perspectiva, o que era necessário para fazer a linha clara funcionar.
(1) A palavra "forçação" é a maior forçação.
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