Quando comprei meu primeiro CD player que tocava cd de MP3, em 2001, ainda não existia banda larga - baixar música pela rede era tedioso e trabalhoso. Associei-me então a uma locadora de discos numa galeria na Voluntários e comecei a comprimir montes de artistas que mal conhecia. Entre eles, Simonal.
Meu pai adorava Simonal e Martinho da Vila. O primeiro show a que fui na vida foi do negão. Minha tia nos arrumou ingressos grátis. Guardo poucas lembranças - uma delas que foi na Princesa Isabel, no teatro homônimo (antigamente cantores davam shows em teatros); outra, da luz que seguia o cantor o tempo todo e de que meu pai me apontou na saída o Simonal saindo, "num conversível". Eu não sabia o que era conversível e nem me lembro de tê-lo visto, mas me lembro do meu pai me explicando o que era um carro que arria a capota - e aquele, ainda por cima, automaticamente!
O Cláudio Manoel agora está lançando um documentários sobre o Simonal. Não vi o filme, mas já vi entrevistas do Casseta explicando que o Wilson foi perseguido por ter recebido o epíteto de dedo-duro e ligado ao regime militar. Bem, pra fazer o longa, o Cláudio certamente devia ser fã do negão e fãs têm uma irritante mania em não entender como os mortais podem não apreciar as infindáveis qualidades de seu ídolo... e, trabalhando diariamento ao lado de Marcelo "cansei" Madureira, achar que as "patrulhas ideológicas" foram as culpadas pelo ocaso de seu objeto de admiração acaba sendo uma conclusão lógica.
O que teve de gente nos anos 70 e 80 creditando seu insucesso às "patrulhas ideológicas" não foi mole. Curiosamente, o sujeito mais perseguido intelectualmente, aquele que era o próprio símbolo-mor da alienação e da rendição à indústria cultural, virou essas décadas batendo récorde após récorde de vendagem e se tornando uma lenda viva. E ainda hoje Roberto Carlos é vítima de preconceito: João Máximo, alguns anos atrás, numa matéria justamente sobre Simonal, dizia que ele tinha sido substituído no gosto popular por "artistas menos talentosos, como Roberto Carlos".
Para quem, como eu, gosta de ouvir Wilson Simonal, mas não é seu fã incondicional, outros fatores ficam muito mais claros. Até porque a intelectualidade de esquerda dos anos 70 adoraria ter todo o poder que os fracassados daquela época lhe atribuíam. Simonal saiu de moda simplesmente porque seu estilo saiu de moda. A reportagem de hoje no Globo conta como ele estava falido em 1972 e mandou dar uma surra no seu contador, a quem acusava de roubo. Tudo bem que seu mau-caratismo pode ter criado um clima inamistoso no meio musical, mas essa época marca o fim de toda uma era da música brasileira. A começar pelos Festivais da Canção, que desapareceram por essa altura, 72, 73.
Ainda em 68, 69, não me lembro bem, Caetano levou uma vaia estrondosa por se fazer acompanhar de guitarras (tocadas pelos Mutantes) na apresentação de festival de É Proibido Proibir. Em 1972, 1973, todo mundo usava guitarra. Enquanto isso, ouvir um disco de Wilson Simonal era viajar até a época de Frank Sinatra produzido por Nelson Riddle. Uma big band ao fundo para acompanhar um puta cantor, é verdade, mas num esquema quase de crooner. Como ele não compunha e mantinha esse estilo anos 60 (início de anos 60), foi alienando seus compositores. Antônio Adolfo lhe escrevera Sá Marina, mas nos anos 70 estava trabalhando com arranjos mais "soul", como os do Trio Ternura. Caminho também enveredado, por exemplo, por cantores como Toni Tornado, citado na reportagem do Globo e no longa.
Como sambista, ele estava ficando para trás à velocidade da luz. Ouvir as então emergentes Clara Nunes e Beth Carvalho e comparar com ele era covardia. E elas lideravam justamente uma ressurreição do samba como música de sucesso. Mesmo os artistas menos queridos pela intelectualidade, como Originais do Samba e Benito di Paula, tinham uma sonoridade muito mais contemporânea. Ouçam a gravação dele de "Pata Pata", muito mais conservadora do que o original de Miriam Maakeba. Também é bizarro ouvir letras com humor um tanto grosseiro de duplo sentido com toda aquela elegância orquestral ao fundo.
Sem grandes compositores para lhe dar apoio, seu repertório perdeu em muito a qualidade. Lembro-me de um vinil do começo dos anos 70 que meu pai tinha do Simonal, em que usei uma das músicas num trabalho de colégio, (não me lembro do nome, mas era uma que tinha o estribilho "Credo em cruz Ave Maria É feitiço É mandinga É bruxaria Credo em Cruz Ave Maria") e que não tinha nenhuma canção de destaque. E tudo com big band ao fundo. Também não deve ter ajudado muito que ele mesmo chamasse seu estilo musical de "pilantragem". Ao fim do milagre econômico, às vésperas das eleições que o MDB levou de lavada, mostrando o início do descontentamento com a ditadura, o clima não estava para se ouvir sujeitos cantando como gostavam de levar vantagem em tudo e que o mundo era dos mais espertos (ei, isso soa muito neoliberal; será coincidência que ele tenha sofrido uma reavaliação nos últimos tempos?). Roberto Carlos, por exemplo, mudou sua sonoridade e nessa época, antes de aderir à trepada musicada, fazia tremendo sucesso com letras deprimidas. O Brasil, apesar de todo EU TE AMO MEU BRASIL tinha inegavelmente um clima meio triste na época (sem contar que o mundo podia acabar a qualquer momento envolto em chamas atômicas, quem não esteve lá não sabe o que era essa paranóia).
Simonal fazia um sucesso estrondoso e saiu de moda. Maria Alcina e Toni Tornado também. Martinho da Vila, outro que meu pai adorava, lançou dois discos que venderam feito água, CANTA CANTA MINHA GENTE e AQUARELA BRASILEIRA, e depois sumiu durante um bom tempo. Benito di Paula foi eleito o cantor mais popular do Brasil e não faço a menor idéia de por onde ele anda. Enquanto isso o mais patrulhado ideologicamente artista de todos os tempos, Roberto Carlos, não lança um disco de verdade há muito, muito tempo, mas é notícia o tempo todo, enquanto que todos os seus companheiros de Jovem Guarda foram moídos pela Roda da Fortuna. Cultura de massa é assim mesmo - impiedosa e imprevisível. E, como na citada carta do tarô, jamais perdoa aqueles que teimam em permanecer agarrados à sua circunferência, mesmo quando ela já saiu de cima e se encaminha para baixo. O lugar para se estar é o centro.
março 26, 2008
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4 comentários:
Me desculpe questionar, mas... onde você estava em 1968?
Me desculpe contrariar, mas o Simonal, na hipótese de que ele era dedo-duro, sofreu uma campanha dura contra ele feita pelo Pasquim, principalmente pelo Henfil que, talvez por ser mais jovem, se sentia na obrigação de ser mais feroz, de dar mais porrada.
Isto todo mundo q vivia na época (e era leitor do Pasquim), viu.
Simonal (diferentemente dos outros citados)sumiu da noite pro dia, depois do escândalo do contador.
Por isso, eu pergunto: onde vc. estava em 68?
Anônimo
Você foi perfeito em suas colocações, faço minhas as suas palavras.
Luiz Henriques
Com todo o respeito, tome muito cuidado ao fazer afirmações baseadas no senso comum. Com que respaldo você acusa o Simonal de mau-caratismo? Não há qualquer verdade no que foi dito contra ele ao longo de mais de 35 anos, tudo já está mais do que esclarecido. Busque informações e verás que está cometendo uma tremenda injustiça, não repita o erro de acusá-lo com base em fofocas e diz-que-diz. Faça isso não apenas pela memória dele, mas principalmente por nós, que perdemos e ainda temos muito a perder se continuarmos a permitir que a mídia nos manipule.
Quanto ao mau-caratismo e ao episódio do contador, refiro-me ao que constava na reportagem do Globo que originou a postagem. Quanto ao Henfil e ao Pasquim, ambos perseguiram feito doidos a Elis Regina e o Caetano Veloso (a quem o Millôr perseguia particularmente) e não me consta que a carreira deles tenha acabado por isso. Roberto Carlos foi perseguido por TODO O MUNDO que era de esquerda e vendeu mais discos do que os Beatles. Não faço a menor idéia de se ele era dedo-duro ou não, mas a carreira dele encolheu e acabou pelo simples fato que ele não se adaptou aos tempos que mudavam.
Ah, e em 1968 eu estava na Urca, ouvindo o dia inteiro Roberto Carlos e Simonal, os cantores prediletos respectivamente de minha mãe e meu pai.
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