abril 15, 2008

Branca porque clara, ainda bem mais clara do que sua mãe mulata já clara, mas ela herdou os olhos e a pele clara do pai, ex-pára-quedista de Student que também a ensinou a montar e atirar e a falar alemão e ler Goethe e Rilke e todos aqueles tantos outros livros que ele abandonou em casa junto com a mulata clara quando se enfastiou e partiu em busca de aventura, o que vinha fazendo desde que se alistara no exército nazista e que lhe custara dois dedos, alguns ossos e órgãos arruinados e o desamor de várias mulheres e filhas abandonadas, mas não Branca, Branca que entendia o amor pela aventura do pai, o amor do pai e a aventura do pai, ou não seria ela a Branca, sequer existiria, não fosse a enorme vontade de viver do pai, que além disso lhe deixara a casa e os livros, a mãe ainda jovem casara de novo e se mudara para uma cidade de verdade, cansada daquele clima turístico de Monções e vendera seus cavalos, mas deixara o de Branca, assim como as armas que tinha em casa e dinheiro para montar seu próprio negócio, Branca que vira já um pouco do mundo e voltara, mas ainda não, ainda não chegara ainda a hora de se ir de vez, para se perder como o pai, ainda não, ainda queria aprender a tocar os negócios, ainda queria aprender a se virar e a se virar bem, ainda apreciava sentir-se parte daquela terra, parte respeitada daquela terra, aquela garota bonita, linda mesmo, que todo mundo desejava, todo mundo queria bem e todo mundo respeitava e ela gostava, ela gostava daquela terra, principalmente quando o festival ia chegando, os turistas todos e o dinheiro e as pessoas, as pessoas todas que apareciam de todos os lugares, talvez fosse o último, o último festival dela antes de ganhar o mundo.
Ela desmontou do cavalo e a casa de pobre alvenaria parecia vazia, o chão de cimento sem fazer nenhum barulho.

- Sandra?

Mas o único barulho, além do rio, é claro, o rio inundando de ubiquidade a cidade e os pássaros, mas esses não, esses eram os barulhos da cidade e não os da casa, os que interessavam eram o da casa, o único barulho em todo o pequeno terreno cercado foram os cascos de Mefisto na terra batida. Branca achou melhor amarrá-lo na cerca antes de olhar a casa clara, muito clara na enxurrada do sol da manhã abafado com a umidade de mato de mata atlântica.

Mas a casa não estava fechada. As janelas de um dos quartos estavam abertas.

Branca mordeu o lábio irritada e deu a volta e bateu na madeira da janela fechada do outro lado.

- Sandra?

- Dona Branca, vai embora, ele tá maluco! Ele tá maluco!

Sandra falou alto demais e alguém de dentro da casa somou o diálogo e os cascos que haviam parado ali perto.

- QUEM É QUE TÁ AÍ? COM QUEM É QUE VOCÊ TÁ FALANDO?

- NINGUÉM, GERALDO, NINGUÉM!

Branca correu até a sela e puxou a carabina, o mosquetão era muito chamativo para ela andar com ele pela cidade, destravou e armou na hora em que a porta abriu e Geraldo apareceu com o facão.

- Larga o facão, Geraldo.

- Eu não vou largar porra nenhuma, piranha!

Branca deu o tiro de advertência no chão no lado dele. Ele parou um instante, os olhos vermelhos, a roupa amarrotada, cheirando a bebida ainda àquela distância, o Flamengo tinha sido goleado na véspera, ele devia ter bebido desde o terceiro gol do São Paulo e não tinha parado, ele morava a centenas de quilômetros do Rio de Janeiro e nunca tinha ido ao Maracanã, vira dois ou três jogos do Flamengo em toda a vida quando ele jogou amistosos ou torneios promocionais em cidades das cercanias e ainda assim enchia a mulher de porrada cada vez que o time era humilhado.

E foi menos de um segundo, ele olhou para o chão, a bala que passou perto dele, Branca viu os olhos, viu o álcool empurrar o orgulho dele pra boca da carabina, de peito aberto e facão, ela ia hesitar, todo mundo hesita, o pai tinha dito, todo mundo hesita quando vai matar alguém, ia dar tanto, tanto muito trabalho, ela viu que ele ia avançar e quando ele botou o pé direito na frente, ele era destro, era o pé que ia dar o impulso pro maior salto que ele pudesse dar, ela apertou o gatilho e conseguiu.

Valeu todo aquele tempo gasto com a espingarda de chumbinho, quando garota porque era a única arma que ela aguentava segurar e quando mulher porque era a única arma cuja munição o orçamento dela aguentava, valeram aquelas brincadeiras todas, às vezes também com a pistola e, quando a grana sobrava, com o fuzil e a carabina.

Aquelas brincadeiras de acertar em cigarro e tampinha de refrigerante.

A mão dele estava sangrando e o facão estava no chão e a dor e a surpresa da perfeição da mira da garota tinham apagado algum álcool já o suficiente para ele pensar duas vezes em avançar desarmado para a boca de uma Winchester.

O coração de Branca batia rápido, o plano B era acertar o joelho dele, a perna dele e o plano C era atirar à queima-roupa se ela fosse rápida o bastante para rearmar a alavanca. Não ia precisar de nada disso. Esperou até um tempo dramático antes de puxar a alavanca, expulsar a cápsula e botar outro cartucho na agulha.

- É melhor ir ver essa mão.

O sangue corria bem, mas nada parecia estraçalhado ou definitivo.

- Piranha! Vocês são todas umas piranhas!

Outros cascos já batiam cada vez mais perto, apressados. Peões.

- Mas o que é que tá acontecendo aqui, dona Branca que uma moça tão bonita tem que segurar uma espingarda tão grande?

- O Geraldo tava batendo na Sandra de novo, Davi.

Davi desceu segurando o 38, a única concessão foi abaixar o cão, e Branca abaixou a carabina. O outro peão permaneceu na sela segurando a garrucha.

- Seu Geraldo, mas que vergonha, não sabe que em mulher não se bate nem com uma flor?

- A piranha daquela vagabunda tava cheia de gracinha pro Estéfano! E eu ainda levo tiro por causa daquela piraaaaaaaaanha! Piranhuda! Eu vou te matar!

- Estéfano é palmeirense e o Palmeiras ganhou ontem - a Branca esclareceu baixinho na passagem do Davi.

- É melhor a gente ir pro hospital ver essa mão, seu Geraldo...

- Não vou pra porra de lugar nenhum.

- A gente não vai ter que chamar a polícia, né, seu Geraldo..?

Branca deixou os três homens conversando mas não se sentiu segura o suficiente pra guardar a carabina na sela de novo, só acalmou Mefisto assustado com os tiros e entrou ainda carregando a arma. O quarto ainda estava trancado. Ela encostou na parede, suspirou finalmente de alívio e passou a mão pelo rosto e pelos cabelos negros e rebeldes. A mulher linda, bonita, inteligente e esperta salvara o dia mais uma vez.

- Já acabou, Sandra, pode sair.

A porta abriu para um pouco de nariz, boca e olhos de Sandra.

- Tá tudo bem, dona Branca?

- Tá.

A voz saiu baixinha involuntariamente e as pernas tremeram.

- Cadê ele?

- Tá lá fora.

- A senhora matou ele?

- Não, eu não matei ninguém. Mas ele tá sangrando.

- Ai minha Nossa Senhora!

Sandra passou correndo pela Branca, cansada demais para ficar irritada, relaxando depois de tudo.

Ela sentou e travou a arma.

Sandra voltou e pegou a bolsa na sala.

- Aonde você vai?

- Vão levar o Geraldo pro hospital, eu tenho que ir com ele.

Branca nem tentou discutir, só perguntou sobre o negócio, era o negócio que tinha trazido ela lá.

- Você preparou meus doces, Sandra?

- Eu fiz uma fornada, dona Branca, tão lá na casa da minha mãe, fui lá pra ela me ajudar...

E para ver Estéfano, que era vascaíno, e o Flamengo perdera de quatro e Geraldo já chegara com más intenções em casa e não achando a mulher foi até a casa da mãe e a cada passo o replay de um gol e de um drible humilhante.

- Eu precisava de três fornadas.

- Desculpa, dona Branca, mas a senhora tá vendo o que tá acontecendo.

Sandra foi embora. Todo mundo foi embora. Branca relaxou mais um pouco, levantou, fechou as janelas e a porta, mergulhou no sol de trópico do terreno capinado cercado de mata atlântica impressionista e abafada e suou enquanto montava de novo.

Até a casa da mãe da Sandra levou o dobro de batidas de coração que levava normalmente, mas já estava normalizando quando ela viu o muro incompleto de tijolos aparentes.

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