Amanheci já à tarde, juntando-me na cama e olhando para a pobre mulher perdida ao meu lado entre minha ressaca e meu arrependimento. Ela tinha bebido ainda mais do que eu, razão pela qual não precisei ser tão cuidadoso para sair antes dela acordar e confirmar sua falta de fé.
Como se alguém precisasse confirmar isso.
Saí para o sol que crepitava as calçadas esturricadas, como sempre parece estar fazendo nessas ocasiões, para melhor fermentar o caldo profano em nossos estômagos e não nos deixar nenhuma sombra onde esconder nossa triste figura dos olhos inquisidores.
E eu deveria ser um desses olhos inquisidores. Detetive particular, private eye, um olho no vidro da porta e não, eu não sou hipnotizador. Vi filmes demais em minha juventude, aprendi a gostar de detetives durões e de assistir à vida dos outros.
Como resultado, assisti demais à vida dos outros, vi demais, aprendi demais e gasto minha vida a passar meus conhecimentos a essas mulheres feias e infelizes que se apaixonam pela breve possibilidade que sou.
Atravessei os poucos quarteirões que me separavam do meu escritório e tomei o elevador, fechando a porta pantográfica com minha própria mão.
E, ao chegar em meu andar, dois olhos verdes fulgurantes me deixaram por um instante com medo de sair do velho ascensor.
- Felipe Gutter?
Meu nome?
Uma mulher daquelas não precisaria nunca intonar tal encantamento.
- O senhor é Felipe Gutter?
Então por que ela repetia meu nome?
- Quase.
- Ah, eu estava procurando por ele. Sabe onde posso encontrá-lo?
- Sou eu mesmo. Foi apenas um dito espirituoso.
Os olhos verdes se franziram me fuzilando em interrogação. Expliquei:
- Dito espirituoso... Detetives particulares sempre fazem ditos espirituosos e eu não estou muito bem, então...
Ela continuou com sua expressão de dúvida e eu desisti.
- Esquece. Como disse, eu não estou muito bem. Depois disso tudo, você ainda quer alguma coisa comigo?
- Eu não quero nada com o senhor, sr. Gutter, apenas com seus talentos.
- Vamos conversar no meu escritório.
Apontei-lhe com o rosto a direção de minha porta com o grande olho pintado.
- O senhor é hipnotizador também, sr. Gutter?
- Não. Private Eye.
- Ah, percebo. Uma pintura espirituosa.
Girei a chave para abrir àquela escultura ambulante a entrada para um mundo de decadência e auto-comiseração que eu chamava de escritório.
- Muito bem, podemos falar agora.
- Eu queria contratá-lo, sr. Gutter.
- Como a senhorita...
- Senhora.
- Como a senhora chegou até mim? Digo, a senhora parece ter dinheiro para contratar alguém mais qualificado...
- Ainda há tempo para eu mudar de idéia, sr. Gutter, se o senhor não estiver interessado.
- Pode me chamar só de "Gutter". Meu pai era um alemão aventureiro que se apaixonou por uma mulata. Agora que você já sabe a história da minha vida, que tal a sua? Por que precisa de meus talentos?
- Meu marido desapareceu. Ele é programador de computadores. Era um hacker na adolescência, chegou a invadir computadores do governo americano, o que lhe valeu um convite para trabalhar na NASA.
- Talvez ele esteja em órbita, então.
- Em órbita ele está desde que me conheceu, sr. Gutter. Foi numas férias em que ele estava visitando a família. Ele largou a NASA para viver aqui comigo. Conseguiu encontrar fundos para prosseguir, ainda que precariamente, suas pesquisas.
- Depois de encontrar você ele ainda precisava pesquisar mais?
- Objetivo na vida é algo que muitas mulheres acham atraente, sr. Gutter.
- E qual o objetivo dele quando desapareceu?
- O trabalho dele era complicado demais até mesmo para mim, sr. Gutter. Tudo que posso dizer é que ele estava prestes a completar um importantíssimo projeto.
- Importante quanto?
- A ponto de passar dias sem falar comigo, sr. Gutter.
Assoviei.
- Isto é o que chamo de muito importante.
- Ele se trancava no ateliê por dias...
- Ateliê?
- O trabalho dele era uma verdadeira arte, sr. Gutter. Uma arte que o mantinha completamente concentrado. Há uma semana ele veio do ateliê até a cama...
- Ele estava precisando de mais inspiração...
- Ele estava precisando comemorar.
- Certo. Faz sentido.
- Disse que tinha acabado de completar sua obra-prima e precisava ir correndo mostrá-la.
- A quem?
- Seu financiador. Uma instituição de pesquisa.
- E ele sumiu depois?
- Exatamente, sr. Gutter. Procurei a instituição e eles disseram que ele nunca esteve lá. O trabalho dele era financiado por uma ONG, que por sua vez recebia doações de uma fundação... em suma, após atravessar um labirinto burocrático, descobri que quem pagava pelas pesquisas de meu marido preferia permanecer anônimo.
- Uma grande empresa poderia preferir assim para não atrair o interesse dos concorrentes.
- Afinal o senhor demonstra alguma capacidade, sr. Gutter.
- A minha não é tão aparente à vista quanto a sua, sra...
- Branca, sr. Gutter. Branca Azagaya.
- Seu marido tem o nome de uma pequena lança?
- Não, sr. Gutter, este é o meu sobrenome.
- Ele não lhe deu o seu nome?
- Ele me deu tudo, sr. Gutter, mas acredito que o senhor não compreenderia.
- É por isso que você está tão preocupada em encontrá-lo?
- Mas é evidente, sr. Gutter. Eu amo meu marido. Sou perdidamente apaixonada por ele.
Observo novamente o maravilhoso corpo escultural interessado nos descaminhos de um cientista. Um hacker. Um nerd.
- Desculpe a pergunta, mas no meu ramo de trabalho as pessoas têm as mais estranhas razões para encontrarem seus parentes.
abril 10, 2008
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