junho 08, 2008

Gilberto Braga

Vi em algum jornal hoje pendurado na banca que Gilberto Braga comemora 30 anos de Dancin' Days e 20 de Vale Tudo. Dancin´ Days foi a última novela que acompanhei em minha vida, em boa parte por causa da Lídia Brondi e da Sônia Braga (aquela mais próxima da minha faixa etária). Depois parei, cansei do formato e entrei na adolescência; estar em casa toda noite para acompanhar aqueles dramalhões simplesmente não fazia mais a minha cabeça.

Mas é claro que durante boa parte desses 30 anos sem acompanhar novelas não consegui ficar imune ao fenômeno. As tramas de maior sucesso foram absorvidas por mim nem que por osmose - gente assistindo lá em casa, namorada que acompanhava, manchetes em jornais e revistas, referências em programas humorísticos, sátiras na revista MAD... nunca cheguei a conhecer mais do que as linhas gerais dos enredos, mas, mesmo sem maior conhecimento do assunto, uma coisa eu posso dizer - eu não suporto Gilberto Braga.

Começou já em Dancin´ Days. Desde o começo de 1976 a K-Tel e seus baratíssimos discos de Grandes Sucesso popularizava Donna Summer, Tina Charles, Abba e outras rainhas da discoteca. As coletâneas com os nomes das quentíssimas casas noturnas Hippopotamus e New York City Discothéque já estavam em seus quintos volumes, com a então novidade do "som contínuo", sem intervalo entre uma faixa e outra. O megahipersucesso OS EMBALOS DE SÁBADO À NOITE que catapultou John Travolta para a fama e um caro álbum duplo para o número 1 de vendas já havia estreado. Mas até hoje Gilberto Braga gosta de falar como a sua novela lançou o fenômeno da discoteca no Brasil (grande fenômeno, em menos de dois anos já se refugiava nas periferias). Até a boate Frenetic Dancin´ Days já funcionava a pleno vapor quando a novela entrou no ar.

Diz a lenda que Dancin´ Days iria também marcar o começo do merchandising em novelas. Betty Faria, dona de uma loja de roupas na trama, num "caco" num canto de cena exclamava que não queria roupa roxa nenhuma na vitrine, que roxo era muito feio e odiava roxo. Pouco mais de uma semana depois a tv Globo estava inundada de rcclamações de lojistas que se entupiram de roxo, previsto para ser a cor da estação, e não conseguiam vender nada. A emissora fez outra cena da Betty encomendando várias peças roxas e a partir daí nunca mais os atores beberiam cervejas com o rótulo de costas para a câmera (confira quando calhar de ver velhos VTs dos anos 70) ou guaranás com rótulos falsos com a singela inscrição "guaraná".

Mas esses são apenas detalhes. Eu comecei a ter um certo preconceito contra o Gilberto Braga quando, no auge de seu sucesso, no começo dos anos 80, li uma entrevista do sujeito dizendo que nunca gostara muito de cinema americano e durante a juventude vira muitos filmes franceses. O entrevistador, numa época de menor culto à celebridade, replicou perguntando quais filmes e ele não soube responder, tangenciando com um "ah, esqueci, não me lembro, uns franceses".

E depois vieram suas tramas, quase todas com elementos comuns facilmente reconhecíveis: em algum momento, a mocinha (ou uma amiga dela, ou ambas) irá se prostituir, o que a redimirá; a vilã é rica (até aí tudo bem), de meia idade, frígida; um homem mais velho se apaixonará pela mocinha (ou sua amiga) em sua fase prostituta e provavelmente terá seu coração quebrado; alguma mulher usará seu fértil útero para engravidar de um otário e prendê-lo para o resto da vida.

Não pus nessa lista os clichês óbvios de teledramaturgia por não serem marca registrada dele, apenas a apropriação de uma fórmula consagrada - assassinos misteriosos (sempre mal explicados ao fim da novela - até mesmo por engano!). Mas os elementos acima traem uma tremenda misoginia. A sexualidade feminina é ameaçadora e terrível; somente depois de degradada e de perder simbolicamente sua ligação com a geração da vida (e constituição de família e sucessão e envelhecimento) ela pode ser aceita. Porém, seu poder de gerar filhos está sempre presente como uma espada de Dâmocles sobre o herói. Ele pode perder sua independência financeira, sua liberdade, sua adolescência, enfim, nas mãos (ou melhor, entre as pernas) de uma óbvia bruxa.

E a óbvia bruxa não é mais uma velha, mas uma mulher de meia-idade. A juventude é o único caminho para a felicidade - axioma da sociedade de consumo. Os personagens mais velhos estão condenados a casamentos sem amor ou perspectiva (infere-se que por não serem mais atraentes). O casamento heterossexual, inclusive, é duplamente uma prisão: emocional, quando já durando anos e anos, e financeiro, quando há um divórcio e a mulher faz a festa com a pensão do ex-marido, um objetivo sórdido que ela já almejava ao primeiro deitar-se com o sujeito.

Família, criação de filhos, tudo isso é sempre visto de forma negativa, quando não de todo ausente. As tramas traem uma visão de mundo misógina, narcisista e hedonista, porém covarde, incapaz de se levar até as últimas consequências. Os heróis não querem romper com a sociedade, mas, no fundo, apenas substituir os ricos maus, o que fica patente na fascinação dos personagens por símbolos de status culturais: cineastas europeus, autores intelectuais em voga na lista dos mais vendidos na época (Gunther Grass, Milan Kundera), música clássica, viagens a Europa, Búzios... aliás, essas constantes referências culturais up-to-date e hábitos de Segundo Caderno de Zona Sul são o verniz moderno que leva muita gente a acreditar que os velhos enredos românticos reciclados da tevê (até aí não é culpa dele, dificilmente outros conteúdos funcionaria nesse formato) são mais artísticos ou significantes (leitura sugerida: Alto, Médio e Baixo, de Umberto Eco. Valeu a pena ter feito a faculdade só pra trombar com esse texto). Assim como teve aquela novela da Glória Perez "sobre Internet" quando a rede estava só nos cueiros no Brasil, com direito a cigana e o escambau, e ao final foi usada absurdamente fora de contexto para o casal de protagonistas se conhecerem, como poderiam ter se conhecido num cruzamento na rua.

As mulheres são sempre más e inconfiáveis, prontas a usar seu maligno útero para destruir a juventude (e, logo, a vida) de um homem. A não ser que se degradem, sofram muito, e percam a aterrorizante aura que a maternidade lhes proporciona. Os personagens ricos são desprezíveis, mas os outros estão sempre atrás de símbolos de status cultural e sofisticação que os poriam no mesmo pedestal. Misógino, narcisista e consumista, as tramas de Gilberto Braga são conservadoras e consumistas e muitas vezes ainda se travestem de crítica à sociedade e ao consumismo. Como disse lá em cima, não sou sigo novelas, logo nada posso dizer de sua técnica dramática ou construção de personagens e diálogos, os quais imagino que sejam ótimos, dada sua popularidade e longevidade no ramo.

Ah, e ainda um detalhe. Quando de um de seus fracassos, em meados da década de 80, a novela Brilhante, ele declarou (naquele jeito "brasileiro não sabe votar" (1)), ele ainda declarou que "o brasileiro não está preparado para uma novela sem vilões". Esqueceu-se o sujeito que já no meio dos anos 70, a então desprezada Janete Clair criava tramas como o Astro, Duas Vidas ou Pecado Capital, quando Carláo, ficando com uma mala cheia de dinheiro advinda de um roubo perde sucessivamente a alma, a mulher que ama e a vida por causa dela (mas sem a hipocrisia que o dinheiro náo resolve - a mulher que ele amava casa com um rico mais velho). O final, inclusive, é sensacional, e mostra como normalmente a censura não consegue fazer seu trabalho:

Carlão, o taxista, encontra a mala com dinheiro e seu primeiro impulso é devolvê-la, mas usa para pagar umas dívidas. Quando consegue juntar uma grana e pretende devolvê-la, importunado por sua consciência, já que, pobre, tudo que tem para lhe dar orgulho são seus princípios, resolve usá-la para subir de vida, já que sua namorada está na mira de um sujeito rico. Ele enriquece, perde a mulher, sempre tem alguma coisa que no último momento o impede de devolver a grana até que, no último capítulo, já sem sua mulher, finalmente consegue fazê-lo e acaba assassinado no buraco do metrô da Carioca por um sujeito caçando a grana. Enquanto ele liga pra polícia pra explicar que está restituindo a bufunfa, a polícia tenta localizá-lo para prendê-lo. Diz a lenda que a censura exigiu a morte de Carlão para puni-lo por ter ficado com a mala (naquela época casamentos desfeitos eram proibidos na tevê; se o mocinho era casado com outra, esta teria que morrer para ele ficar com a mocinha). Nem perceberam que sua morte na hora em que devolvia o dinheiro para tentar reaver sua alma era muito mais subversivo.

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