agosto 31, 2008

Um homem muito sábio vivia viajando de um lugar para o outro levando sua sabedoria, Ia montado num burrico, sempre de costas. A todos que perguntavam por que essa estranha maneira de montar, o homem respondia: "Para poder apreciar os lugares por onde passei, porque quem guia mesmo é Allah".

(historinha que fecha as magníficas memórias em quadrinhos de Will Esiner, NO CORAÇÃO DA TEMPESTADE)

A Última Sessão de Cinema


"A Grande Ilusão", de Renoir, no último fim-de-semana do Paissandu. Vi o filme pela primeira vez no também finado Cineclube Macunaíma, outra vítima do Estação Botafogo (não intencional, é claro). Mais (e verdadeiras) fotos em nova postagem em breve.

Bulldog


Heitor Pitombo no Rio Rock e Blues Club.

Perdoem-me, Umbandistas, Mas Não Resisti


Discumba - Macumba em ritmo de discothèque. Acredite se quiser.

agosto 30, 2008

O Terror é um Homem

Carolina, minha prima de 16 anos (chamo de sobrinha porque o pai dela morava no meu prédio e a mãe é amiga de infância minha), fã de terror e filme de zumbi (aquela a quem estou apresentando ao bom cinema e já está vendo Truffaut) já tremeu nas bases ao ver o bizarro horror paquistanês Estrada para o Inferno, mas nem esse precedente a tinha preparado para assistir ao provável mais aterrorizante cineasta vivo: José Mojica Marins e seu Zé do Caixão.

Carolina não assistiu ao Zé do Caixão tão tranquila

Durante os anos 70 eu só conhecia Marins de ter cruzado uma vez com ele na Urca (e meus pais me avisaram, "olha lá o Zé do Caixão" - num ônibus) e depois de suas aparições na tevê. No começo dos anos 80 eu já sabia que ele era considerado cult na Inglaterra, mas sempre que ele aparecia em uma entrevista, ele ficava dentro do personagem. Quando vi pela primeira vez À MEIA-NOITE LEVAREI TUA ALMA achei a fita a princípio risível e depois aterrador. Sem nenhuma das referências comuns de que tudo aquilo é apenas um filme (boa produção, rostos conhecidos, um roteiro estruturado em três atos à moda de Syd Field) e com toda a intensidade que Marins punha na tela, a sensação, como diz Phil Hardy em sua ENCICLOPEDY OF HORROR FILM (que tem na chamada da capa o nome de uns dez diretores, entre eles Marins), era a de se estar espiando os filmes caseiros de um homem muito, muito doente.

Pois era exatamente isso. À medida em que nos acostumamos com o excesso na interpretação de Mojica fazendo o Zé do Caixão e com o inegável talento do sujeito em enquadrar e iluminar, tirando leite de pedra com o zero de recursos de que dispunha, as atividades na tela começam a parecer cada vez menos trash e engraçadas e a afetarem um verdadeiro e aterrador senso de autêntica psicopatia. A misoginia, a misantropia, a heresia de botequim e todos os pensamentos do pária que se julga superior aos poucos vão se infiltrando em seu subconsciente. A precariedade da coisa toda confere a seu modo também um ar de autenticidade impensável numa produção de estúdio de verdade.



E Zé do Caixão não é apenas um ateu, é um ateu fanático e radical. Jesus dizia que a fé remove montanhas e não há a menor dúvida que a verdadeira fé é capaz de transformar um homem - perdido REALMENTE o medo da morte perde-se o medo de qualquer coisa e não há limites para o que se pode fazer. Zé do Caixão mostra que a falta de fá também remove montanhas desde que seja a real e verdadeira falta de fé e não o ateísmo padrão do capitalismo moderno, em que se leva a vida sem Deus, mas com uma vaga esperança de que este mundo não seja o fim ou de que as coisas que você compra salvarão sua alma. Para Josefel Zanatas (o verdadeiro nome do personagem, sendo que "Zanatas" é "Satanás" ao contrário), se não há um além, então todos os seus desejos têm que ser realizados aqui e agora e pouco importa se alguém vai se magoar (normalmente mais do que só se magoar).


As décadas passaram, aqui no Brasil Marins tornou-se também cult e respeitado, apresenta um programa no Canal Brasil ("se você não assistir, irá chorar por toda a Eternidade... como se fosse um... emo!") e tal. É casado (pela quarta vez), a patroa aparece no filme e, na véspera da estréia de ENCARNAÇÃO DO DEMÔNIO, vi uma entrevista dele na TvE, em que contava casos engraçados da filmagem. Há muito que ele praticamente abandonou a cartola, a capa e a paramentação de Zé do Caixão e até as unhas são falsas. Em suma, achando que conhecendo o diretor mais enquanto gente, enquanto pessoa, e tendo sua nova fita muito mais referências (cenários comparativamente mais luxuosos, muitos rostos conhecidos no elenco, inclusive as homenagens a Helena Ignez e Cristina Aché, produção bem cuidada), imaginei que a sensação seria de que aquilo na tela era apenas um longa-metragem assustador e nada mais.



Rapaz...

Ao final do filme eu estava realmente precisando sair e respirar um pouco de ar fresco e ver um pouco de céu. A mim a fita não foi tão assustadora assim, mas o clima doentio que a perpassa de cima a baixo vai se acumulando até que chega um ponto em que toda aquela tinta vermelha, todos aqueles modelos em plasticina de membros decepados, todos aqueles corpos mutilados digitalmente, começam a parecer bem mais reais do que jamais foram. A quantidade de (belas) mulheres peladas, atiradas no filme tão sem-cerimoniosamente em meio a todas as torturas e mutilações, somadas à psicopatia de Zé, que vê como única imortalidade possível um filho - nem que ele tenha matar todos para isto - vão buscar lá no fundo do nosso subconsciente nossos maiores tabus e nossas piores fantasias e remexer com tudo.

Como eu disse, saí do cinema precisando ver gente se divertindo na rua. Minha prima, que gostou do longa desde o começo, recusou minha sugestão de ver outros filmes dele em DVD. "Nunca tinha visto um filme de terror tão forte. É muito bizarro". Ela já tinha ficado perturbada com os zumbis paquistaneses ("eu achava zumbis bonitinhos"), mas nada a havia preparado para adentrar tão a fundo a mente de um psicopata. Hannibal Lecter é elegante e vive num mundo estilizado e usa a pele do manjadíssimo ator shakespeareano Anthony Hopkins.

Quando vi algumas fotos de cena de A ENCARNAÇÃO DO DEMÔNIO, a direção de arte e a iluminação remetiam a JOGOS MORTAIS e O ALBERGUE e imaginei que o cineasta, há vinte anos sem filmar e buscando o sucesso comercial, estivesse se deixando influenciar pelo pessoal mais jovem e bem-sucedido de Hollywood. Pergunta pra Carolina, que viu várias vezes todos os filmes dessas séries e se divertiu em todos eles. Assistir a Zé do Caixão, libertado após 40 anos (e a cena em que ele sai da prisão, apenas uma sombra fora de foco avançando na direção da câmera, é sensacional), não é para todos os gostos e serve pra conferir se seu equilíbro psicológico está em dia.



E tudo isso temperado ao talento inato do Zé do Caixão. Sem educação formal, fã declarado e extremado de histórias em quadrinhos, principalmente as da EC Comics (que a Amicus e George Romero adaptaram na série primeiro cinematográfica e depois de tevê CONTOS DA CRIPTA), Marins tem um talento espetacular para compor, enquadrar e iluminar cenas perturbadoras. Sua câmera está sempre bem colocada e seu olho para criar composições belas e surreais é fantástico e, como de todo bom autodidata, original e único. Contando pela primeira vez com um (relativamente) grande e polpudo orçamento, essas qualidades saltam aos olhos na beleza da cenografia e do claro-escuro, formando cenas espetaculares como a visita ao inferno (que começa com um banho de sangue de suas vítimas penduradas enquanto ele, de capa e cartola, está mandando ver numa das mais belas quarentonas peladas que o cinema exibiu em muito tempo) ou a visão de uma enforcada pendurada numa árvore, que pega uma faca e corta a corda para descer e falar com ele. Outro toque brilhante, aliás, são as visões que o perseguem de suas vítimas passadas, que são em preto-e-branco, como nas fitas em que os assassinatos ocorreram.

A Encarnação do Demônio mostra Mojica Marins em pleno controle de suas obssessões cinematográficas e de seu talento, o que é boa notícia para a sétima arte e péssima para os fracos de estômago (e de alma). Doente assim que eu me lembre de primeira só Jesús Franco, que, no entanto, não aparece pessoalmente em seus filmes, que carecem também da intensidade emotiva de Marins - Franco é mais distante e frio, como bom sociopata. Como já disse um saite gringo, comentando a obra do cineasta, se George Romero, David Cronenberg e David Lynch assistissem a uma fita dele iam ficar embasbacados com o que se passava na tela, perguntando-se "que porra é essa?" Afinal quando o cinema americano mostraria uma cena como a penúltima do filme, misturando necrofilia, heresia e pornochanchada num take com uma arrebatadora beleza plástica?

E, por falar em beleza plástica, Carolina, mesmo com a repulsa que sentiu pelo filme, reconheceu que ele é excelente. E que, visualmente, é um espetáculo. Aos poucos ela vai aprender.

Robinho

Já explica um velho ditado que, se uma mulher trai o namorado pra ficar contigo, ela vai trair você pra ficar com outro. O Real Madrid achou que era o grande amor da vida do Robinho e está descobrindo a verdade por trás dos adágios clássicos.

E isso depois daquele mico todo em 2005, quando voltou da Copa das Confederações dizendo que não jogaria mais pelo Santos e que eles tinham que liberá-lo pro Real e esquecer aquela história de multa rescisória de 30 milhões. E o detalhe particularmente mau-caráter foi que ele tinha renegociado o contrato algum tempo antes, passando a receber um salário consideravelmente maior, em troca justamente dessa vultosa multa rescisória. Ou seja, ele topou receber mais sabendo das consequências, mas que se danasse sua palavra. A única opção para os dirigentes era vendê-lo por quanto os espanhóis quisessem lhe pagar.

Os madrilenhos sabiam no que estavam se metendo quando contrataram um sujeito sem palavra. E ainda por cima tiveram que pagar os 30 milhões mesmo por um jogar que nunca se firmou como titular absoluto. Agora o Robinho tentou que tentou forçar uma barra pra ir pro Chelsea. Brigou com a torcida, o clube, os jogadores e ficou na Espanha mesmo. Enquanto isso, o tempo vai passando e sua carreira continua sendo uma estrada esburacada, cheia de solavancos e quebra-molas, em vez do passeio suave que prometia ser quando tudo começou...

Harpo Talks!

Adolph Marx (que depois mudou seu prenome para Arthur, não por causa do Hitler, mas porque odiava-o) resolveu aprender a tocar harpa porque não sabia cantar, dançar ou sapatear. Viu uma ilustração de como se segurava o instrumento e, não tendo outras pistas, afinou a primeira corda e as demais a partir dela. Só que ele a deixou com pouca tensão e, sem técnica nenhuma, atacava as cordas folgadas de uma maneira que as teria destruído se estivessem corretamente preparadas. Assim ele desenvolveu seu inacreditável estilo musical. Tempos mais tarde, com grana sobrando, tentou várias vezes aprender da forma certa, mas seus professores, ao verem-no tocando, ficavam fascinados e admiravam o resultado, não vendo razão para mudá-lo.



Arthur Marx (que só seria o Harpo alguns anos depois, depois de um jogo de cartas dos irmãos, ainda conhecidos como Julius, Leonard, Arthur e Herbert; um crítico que era fã deles e fazia de tudo para promovê-los entrou no meio de uma rodada e, ao vê-los tratando-se respectivamente por Groucho, Chico, Harpo e Zeppo, teve um ataque: "vocês têm esses apelidos maravilhosos e assinam com aqueles nomes sem graça?"), num espetáculo escrito por seu tio, descobriu que não tinha partes faladas e foi reclamar com ele, que respondeu que, Harpo deveria trabalhar com pantomima, o que, frente à verborragia de seus comparsas de palco, faria um belo contraste. Harpo não gostou e disse que iria improvisar suas falas e, como era um negócio em família, o tio concordou, disse "tá bom, vai lá, tá certo". Quando a quase unanimidade das resenhas da comédia louvaram a sua mímica remetendo à caricatura de um imigrante irlandês, sendo só estragada pelas suas falas, Harpo se calou e nunca mais falou em cena até seu espetáculo de despedida em 1964 (em que ele começava dizendo, "bem, como eu ia dizendo quando fui interrompido em 1907 - e disparava a falar sem parar, fazendo a platéia gargalhar).

Na verdade, no filme No Tempo do Onça, que os irmãos achavam que seria a despedida deles, em 1940, Harpo faria um discurso no final da fita, justamente para celebrar o fim da longa carreira dos Marx. A cena acabou dançando do corte final porque a voz de Harpo não se coadunava com o personagem - ela tinha mais timbre e autoridade do que as de Groucho ou Chico. Irrealizado este projeto, a voz de Harpo ficou desconhecida do grande público, ainda mais que ele, quando morreu, pediu aos parentes e amigos que destruíssem todos os registros de gravações suas, mesmo as caseiras. Ê profissionalismo. A Velha Guarda tinha um comprometimento com o show business de emocionar.


Harpo Marx por Salvador Dalí

Mas ainda assim, algumas poucas gravações escaparam do último desejo do tímido (sim, na vida real, ele era quieto, introvertido e... calado) Arthur. A primeira é um clipe, na premiére de ZIEGFELD FOLLIES em 1946. Arthur está paramentado a rigor, fora do personagem, mas isso não importava muito porque a transmissão seria pelo rádio. O que ele não sabia é que, sem que ele ou o apresentador percebessem, a câmera já havia sido ligada. Arthur avisa ao locutor que "you gotta do the talking" ("você que vai ter que falar") e, após ser formalmente apresentado, ele imita ao microfone uma de suas marcas registradas, o HONK HONK da buzina que fica na bengala de Harpo. Repare como realmente a voz de Arthur é autoritária e com um timbre certo demais:



Outro clipe é esta gravação de 30 segundos em que Harpo conta de seus tempos como pianista num lupanar. Ao contrário de seu irmão Chico, ele só sabia tocar duas músicas, mas aprendeu a esticá-las, acelerá-las, diminuir seu ritmo, seu entusiasmo, e transformou um par de canções num repertório - chegou também a tocar piano em cinemas mudos, substituindo justamente seu irmão Leonard. A fita é um dos registros que o comediante fez (provavelmente para o ghost writer) para suas memórias HARPO SPEAKS em 1961. Aqui você vai encontrar a versão só com Harpo falando e a que foi veiculada na BBC quando da descoberta, com apresentação de Bill Marx, filho de Harpo, que no programa de Richard Curtis, comentando também porque seu pai não falava no palco.
Existem também músicas nos filmes em que se discute que Harpo estaria também cantando e um "feliz aniversário" que seria dito por ele, numa festa de um integrante da famosa mesa do Algonquin Hotel (da qual Arthur fazia parte, embora mais como ouvinte, dada sua timidez), mas que não parece em nada com as outras gravações. Felizmente para nós, cinemaníacos, alguém não levou tão a sério o último pedido de Harpo e hoje podemos ver como sua voz faria dele um personagem completamente diferente.

agosto 29, 2008

Devo Ir ou Vou Ficar?

Depois do show do Rei cantando Tom Jobim, discuti com uns amigos que ele tinha que gravar era um disco cantando The Clash e dei o exemplo traduzindo, na hora, SHOULD I STAY OR SHOULD I GO. Agora alguém aí manda pro Rei:

Amor, precisa me explicar
Devo ir ou vou ficar?
Se disser que é toda minha
Vou contigo ao fim da linha
Mas precisa me contar
Devo ir ou vou ficar?

Vive me provocando
Sempre me quer em meus joelhos
Num dia é boa e noutra má
Se você prefere que eu me vá
Pois venha cá e me diga já
Devo ir ou vou ficar?

É pra eu ficar ou me mandar já?
É pra eu ficar ou me mandar já?
Se eu me for é confusão
E se eu ficar, complicação
Pois venha cá e me diga já

Isso já está virando série
Se não me quer, que me libere
Me diga quem eu devo ser
E quais roupas devo ter
Venha cá e me diga já
Devo ir ou vou ficar?

agosto 08, 2008

Em Manutenção

Olhando a data em que as postagens dispararam, finalmente me dei conta do que me animou a escrever tanto.

Este blogue vai passar algum tempo sem postagens. Sejam bem-vindos para ler as mais de 400 postagens sobre guerra, filosofia de botequim, literatura, mulher pelada, quadrinhos, aviões e cinema.

agosto 06, 2008

Tempo Tempo Tempo Tempo


Veja o tempo com olhos gentis
Ele provavelmente fez o melhor por você
Quão suavemente se põe o sol
No ocaso da natureza humana
(Emily Dickinson, tradução de Luiz Henriques Neto)

agosto 05, 2008

Pressentimento é aquela sombra alongada na relva
Indicando que o Sol está se pondo
O aviso à grama alarmada
De que a escuridão está para chegar

(Emily Dickinson, tradução de Luiz Henriques Neto)

Em 2050 a Morte Terá Acabado

É o que diz um artiguinho no InfoEtc. de segunda. Puxa, podia ser uns trinta ou pelo menos vinte anos antes...

Mas, lendo o artigo mais um pouco, vê-se que a idéia não é a imortalidade, mas sim baixar o conteúdo da mente de uma pessoa prum outro computador. Como é tradição na história em quadrinhos. Mas, na vida real, qual a vantagem? A minha consciência vai continuar no corpo que vai morrer. Se for baixada prum computador, não será nem ao menos parecida com algo humano, sem os hormônios, as sensações e os desejos do corpo físico. Quanto tempo pra OUTRA consciência, gêmea da minha (se é que a consciência realmente vai se formar quando derem o boot na máquina que fez o download) dissolver-se num tédio árido? E, se for prum corpo, clonado por exemplo, vai continuar não sendo eu, apenas alguém com as minhas memórias, talvez minha consciência, mas ainda distinto de mim.

Os animais de sangue frio não envelhecem, por isso que se contam por aí histórias de tartarugas ou iguanas de centenas de anos de idade. Eles nunca param de crescer, vão ficando maiores e mais fortes com a idade. A morte teoricamente não é uma NECESSIDADE, mas EVENTUAL. Na prática ela acaba sempre chegando na forma de doenças de tanto lixo que vai se juntando no organismo (por isso que gordos, que guardam mais detritos no corpo, são menos saudáveis), de acidentes ou de predadores. Mas os animais de sangue quente não têm essa moleza. Param de crescer a uma certa idade e vão se tornando cada vez mais fracos e incapazes com o tempo. O que seria de nós, humanos, se a morte estivesse ao fim de qualquer maneira, mas sem um prazo de validade definido?

Mas nós temos um prazo de validade definido e é isso que nos define. Aquele cientista, esqueci o nome agora, Richard alguma coisa, que escreveu um livro veementemente contra a idéia de Deus e Religião, conta como a grande superioridade da ciência o aumento da expectativa de vida. Viver dez, vinte anos a mais, num corpo em decadência não é tão grande vantagem assim. Sobre expectativa de vida, o que importa, o que sempre realmente importou, não é a quantidade, mas a qualidade. Não interessa adiarmos nossa partida daqui cinco ou dez anos, o que interessa é irmos em paz. Neste ponto a religião ainda leva vantagem, apesar de todos os monstruosos erros da religião organizada. Mas, quem sabe se conseguirem desligar o mecanismo que faz nossos corpos pararem de crescer? Ou aperfeiçoarem o congelamento?

Até lá vou continuar tentando descobrir como expandir minha consciência e entrar em contacto com o Todo.

Plástico de Carro

Gastei quase toda minha fortuna com mulheres, drogas e álcool.
O resto eu desperdicei.
(George Best)

agosto 03, 2008

Bilíngue


Aviões de Combate Parte II

Ok, você já leu sobre os bombardeiros. Agora é hora de ler sobre seus caçadores, os

Interceptadores

Desde que foi inventado por volta do século XIII, até a metade do século XIX, o canhão não mudou muito. Era um tubo oco e grosso de bronze, fechado numa das extremidades, apoiado num suporte, geralmente com rodas, para facilitar o transporte. Os artilheiros jogavam a pólvora lá dentro, socavam, punham a bala, socavam, substituíam e acendiam uma mecha que se comunicava com o interior do cano, a qual deflagrava uma explosão que, contida, pelas paredes metálicas, impulsionava o projétil - e empurrava toda a peça de artilharia vários metros para trás também, o famigerado recuo ou coice, que obrigava os soldados por perto a pularem na hora do tiro. Uma vez disparada, a arma tinha que ser recolocada no lugar certo, limpada e o ciclo reiniciava.

Algumas mudanças nas técnicas de fundição, nos metais usados e na fabricação dos projéteis, entre outras coisas, aumentaram o alcance e a confiabilidade da artilharia através dos séculos, mas os procedimentos para o tiro continuavam sendo os mesmos. No entanto, com a Revolução Industrial, a arma mudou radicalmente. A pólvora negra foi substituída pela mais potente nitrocelulose, sem fumaça. O avanço na metalurgia permitiu à carga ser feita pela culatra (traseira) e não mais pela boca - a cápsula metálica ajudava a selar a explosão e tornava desnecessário despejar pólvora e bala separadamente. E, finalmente, em 1897 os franceses inventaram um suporte hidropneumático amortecedor para o recuo da peça. Isso significava que o canhão não se movia durante o tiro e acarretava várias consequências importantíssimas:

- A mira podia ser mais perfeita, já que uma vez definida a posição da peça, ela não mais se moveria e, pelo menos em teoria, dispararia sempre no mesmo local. A precisão era ajudada também pelos novos canos estriados, ou seja, com raias espiraladas no interior; a bala, uma vez disparada, engata nelas e gira enquanto percorre o caminho até a boca, ganhando um movimento giratório que aumenta o alcance e a capacidade de acertar o alvo;

- Com a cápsula metálica e a carga pela traseira, um canhão podia ser recarregado enquanto o cano avançava lentamente de volta à sua posição original; como o suporte não se movia, os artilheiros podiam ficar calmamento do lado da arma, um abrindo a culatra, outro introduzindo o projétil e outro fechando tudo com um giro de 1/4 de volta, num destro movimento de punho. Por este motivo esses canhões ficaram conhecidos à época como "canhões de tiro rápido";

- E, como os soldados ficavam parados quietos do lado da peça, o suporte podia incorporar uma chapa de aço à prova de balas, que tornava os artilheiros quase invulneráveis a armas portáteis.

Já em 1870, o uso de canhões de aço com cano estriado pelos alemães ajudou a arrasar os franceses. Com a invenção do suporte hidropneumático então, a artilharia passou a ser a principal arma no campo de batalha. A produção de aço media a capacidade bélica de uma nação. E foi com essa mentalidade que toda a Europa entrou na I Guerra Mundial.

E, por consequência, o grande papel do recém-inventado avião (nem uma década de idade ainda!) era sobrevoar o campo inimigo e localizar os alvos para a precisa e mortal artilharia de longa distância (1). E também, claro, observar os movimentos de tropas inimigas.

Na verdade não era realmente um desperdício de uma grande arma. Os aparelhos da época tinham pouca potência e carregar metralhadoras ou bombas era complicado. Também era considerado muito complicado prum sujeito pilotar o avião, perseguir as aeronaves inimigas e ainda ter que fazer mira. E onde pôr a arma? Foi tentado em cima da asa superior, mas era difícil para recarregar e para acertar os tiros, já que envolvia um cálculo de paralaxe. O ideal seria uma arma bem na frente, alinhada com a visão do piloto e o eixo central da máquina, mas a hélice impossibilitava tal posição.

Assim os estados-maiores ficaram satisfeitos em usar aviões para observar alvos de artilharia e os projetaram para esta tarefa. Ou eles tinham dois lugares, com o segundo sendo ocupado por um observador, ou então, como o B. E. 2 inglês, eram desenhados com tanta estabilidade inerente que o piloto podia até tirar ambas as mãos dos controles e ficar desenhando o que via lá de cima. Sim, desenhando, pois não havia máquinas fotográficas que se prestassem a este papel. Saber desenhar era requisito para admissão na força aérea inglesa (que ainda não era a RAF). Os rádios d'antanho também não cabiam naqueles frágeis biplanos construídos com estrutura de madeira e recobertos de lona. Quando os generais precisavam de informações dinâmicas, eles subiam um balão cativo bem alto e, pelo cabo de amarração, corriam um fio de telefone para que o observador na cesta dissesse o que se passava além das linhas inimigas, lááááá longe no horizonte.

Os exércitos não gostavam de ter seus movimentos observados e nem que o inimigo soubesse onde estavam todas as suas baterias e seus alvos vitais e logo começou a se buscar uma maneira de abater aqueles observadores aéreos. Alguns aviões bipostos ou biplace (de dois lugares) ganharam uma metralhadora para o observador. Outros monopostos (de um lugar) receberam aquela arma em cima da asa. Mas tais improvisações não funcionaram bem. O aparelho que assumiria esse papel de matador viria de uma idéia de Anthony Fokker para instalar uma arma bem em frente ao piloto.

Numa guerra que se caracterizou pela falta de idéias criativas não é de se estranhar que alguém levasse tanto tempo para se tocar que podia fazer um interruptor que impedisse a metralhadora de disparar quando a hélice estivesse na frente dela. Roland Garros, o piloto que deu nome ao torneio de tênis que o Guga ganhou três vezes, chegou mesmo a blindar a hélice para poder disparar através dela, achando emocionante o zumbido das balas rebatidas que passavam perto (lembrava bolas de tênis?). Garros foi derrubado e os alemães, inspecionando seu avião, pediram a Fokker que fizesse algo parecido pra eles. O engenheiro, entretanto, sonhou que estava atirando pedras através das pás de um moinho de vento e pensou em um mecanismo de interrupção, um gatilho que girava junto com a hélice e, quando esta passava em frente à mira, travava momentaneamente a metralhadora. Instalado o dispositivo num monoplano relativamente rápido, o Eindecker (Gaivota), ele ajudou a criar a fama do aparelho como o Flagelo Fokker, tamanha a quantidade de naves inimigas que derrubou sem resposta. O primeiro interceptador.

O Eindecker não era um caça de combate aproximado, pois não tinha a agilidade e velocidade necessárias para tanto. Embora tenha varrido dos céus qualquer oposição, não era um caça de superioridade aérea, já que só existia um tipo de avião nos céus além dele, os de observação, e nenhum outro caça que ele tivesse que bater. Quando os aliados conseguiram criar um adversário para ele, ele saiu rapidamente de cena, vítima de suas vulnerabilidades. O aparelho lançado contra ele ainda não tinha mecanismo interruptor, era um biplano impulsionador, ou seja, a hélice ficava atrás da nacele do piloto, empurrando a aeronave, ao invés de puxá-la, como nos mais tradicionais modelos tratores. Assim, com o motor virado pra trás, a metralhadora não tinha nada na frente para impedir o tiro.

Mas durante dez meses o Eindecker fez a festa. O B. E. 2, por exemplo, com sua estabilidade inerente, era quase incapaz de manobrar. Praticamente um patinho numa galeria de tiro. E, além disso, os ingleses tinham problemas em casa, longe do campo de batalha na França. Embora os aviões da época fossem incapazes de levantar uma carga de bombas significativa, os alemães tinham os enormes zepelins, que pairavam mais alto, iam mais longe e carregavam mais tonelagem do que qualquer outra aeronave da época.

Os zepelins realizaram alguns bombardeios que tiveram mais efeito moral do que material (com exceção, é claro, das famílias dos poucos infelizes vitimados pelas explosões), mas ainda assim seu potencial alarmava os governantes e não havia nenhum avião que pudesse atingi-lo à altura em que ele flutuava. Até que os britânicos começaram a envenenar os motores de seus caças, tirar todo o peso excedente e armá-los com balas incendiárias. Como os dirigíveis eram na verdade enormes sacos cheios de hidrogênio inflamável...

O Eindecker e esses aviões foram os primeiros modelos de interceptador - um caça projetado especialmente para derrubar outros tipos de aviões de combate, não outros caças. Manobrabilidade, altos ângulos de ataque, leveza, nada disso é essencial para o interceptador. Ele precisa de alta velocidade de cruzeiro para chegar logo ao alvo antes que cause maiores danos, seja observando a artilharia, atacando o solo ou executando bombardeios estratégicos. Precisa ser bem armado, para derrubar máquinas enormes, cheias de motores e blindagem. E precisa ser capaz de aguentar o fogo defensivo de suas presas. O tamanho das armas e a estrutura sólida normalmente fazem do interceptador o maior dos caças, mesmo que grande alcance seja secundário, já que ele normalmente atuará apenas na defesa do território.

Com o desenvolvimento da aviação, muitos caças eram apropriados para múltiplas tarefas. O Spitfire, o melhor caça de combate aproximado europeu no começo da II Guerra, também funcionou à perfeição como interceptador na Batalha da Inglaterra, embora o mais lento e menos manobrável Hurricane fosse considerado uma melhor plataforma de armas, por mais pesado e estável. Ambos os modelos, no entanto, beneficiaram-se da ausência de bombardeiros estratégicos na Luftwaffe, a força aérea alemã. Tanto o Junkers Ju 88 quanto o Heinkel He 111 eram aeronaves pouco blindadas e com leve armamento defensivo (o 88 ainda seria bastante aperfeiçoado durante o decorrer das hostilidades). Os americanos, entretanto, com sua filosofia de pegar um enorme motor, cercá-lo de blindagem e armamento, e mandá-lo para a batalha, não tiveram resultados tão bons na multitarefa. O pesadão P-47 Thunderbolt, esplêndido interceptador, conseguia escoltar os B-17 quando eles iam atacar a Alemanha, mas se enrolava todo ao entrar em combate aproximado com os caças germânicos que iam interceptar os quadrimotores estadunidenses. Os ianques só conseguiriam seu caça de escolta de longo alcance ao encher todos os espaços vazios do Mustang P-51 com tanques de combustível.

Se os americanos tiveram problema em usar seus interceptadores como escolta, os alemães tiveram que se virar para fazer seus caças de superioridade aérea derrubar os quadrimotores aliados. Blindados e bem armados, esses bombardeiros exigiram que os aparelhos germânicos fossem adaptados para carregar canhões extras em gôndolas, além de armas de maior calibre no lugar das metralhadoras habituais. Tais adaptações diminuiram obviamente o desempenho dos aviões e os deixou em desvantagem quando os Mustangs começaram a conseguir acompanhar os ataques ao território alemão e ilustram bem a diferença entre caças e interceptadores.

Então, como vimos, os interceptadores da II Guerra eram grandes, pesados, bem armados e velozes. Daí a serem improvisados como caças-bombardeiro e aviões de ataque ao solo foi um pulo. A FAB fez sua fama destruindo trens na Europa com seus P-47 Thunderbolt. O P-40 Hawk já estava obsoleto quando os EUA entraram na guerra, mas sua robustez tornava-o difícil de ser derrubado pelos superiores Zero. Aproveitando sua alta velocidade de mergulho, sua blindagem e seu armamento, os Tigres Voadores, uma unidade de elite de americanos na China, deram uma surra nos japoneses. Essas mesmas qualidades o fizeram ótima arma de ataque ao solo.

Com o fim da II Guerra Mundial e o alvorecer da guerra eletrônica, os interceptadores ganharam sua última característica peculiar: o vínculo com o sistema de defesa de terra. Os ótimos caças MIG, por exemplo, com seus motores a jato de primeira geração que queimavam muito combustível, tinham pouquíssimo alcance. Eram guiados pelas estações de radar até o inimigo, disparavam suas armas e voltavam (incidentalmente, o curto raio de alcance, aliás, servia também para evitar que os pilotos fugissem para o Ocidente). Na década de 50 os americanos desenvolveram o Delta Dart, inesquecível para quem cresceu nos anos 70, no meio ainda da mania da era espacial, pois foi o primeiro supersônico com aquele característico perfil de asa em delta, sem cauda. Assim como o MIG ele era levado pelas torres de controle até o alvo, só que não era guiado pelos operadores, e sim diretamente pelos computadores de bordo em comunicação com o equipamento em terra. O Delta Dart é considerado por muita gente o melhor interceptador jamais construído.

Mas, como dizem, depois do ápice vem a decadência. E os anos 60 trariam o ocaso do interceptador. À medida em que o transistor ia expulsando a válvula da eletrônica e trazendo consigo a miniaturização, o alto comando americano começou a acreditar que as manobras aéreas e o combate aproximado estavam com os dias contados. A luta nos ares se resumiria a quem tivesse o radar mais poderoso, capaz de localizar o inimigo antes, ainda bem longe do alcance visual, e o melhor míssil, capaz de vir lááááááá dos cafundós e buscar a aeronave adversária. Pra comandar todo o complicado e computadorizado sistema de armas, o ideal seria ter um segundo tripulante e, pra isso, era necessário um avião grande, com um motor enorme e, já que estamos falando de tudo grande mesmo, capaz de efetuar missões de bombardeio.

Foi com essa filosofia em mente que surgiram o Phantom e o Thunderchief, dois enormes aparelhos pesadões, Mach 2. O Phantom nem canhão tinha. O que ninguém tinha levado em conta, entretanto, era que a eletrônica nos anos 60 não estava tããããão desenvolvida assim. Tão pouco confiável ela era, na verdade, que determinou-se que a identificação do adversário tinha que ser confirmada visualmente pra ninguém derrubar um colega ianque. E, a curta distância, perseguindo Migs de duas gerações atrás, ágeis e pequenos demais pra serem um bom alvo, a velocidade e os mísseis não eram vantagens tão boas assim.

Face aos primeiros resultados da luta aérea no Vietnã, a filosofia de combate nos ares dos americanos mudou toda. Os Phantom ganharam canhões improvisados e flapes especiais que aumentavam o tamanho da asa, o que lhe possibilitava curvas mais fechadas e capacidade de manobrar com o inimigo. O Thunderchief foi deslocado para missões de bombardeio - normalmente ele bombardeava as estações de radar e de mísseis antiaéreos, aproveitando ser um aparelho mais discreto e rápido do que os bombardeiros convencionais. E, mais importante, as especificações para as próximas aeronaves passaram a incluir requerimentos de alta manobrabilidade e capacidade de combate aéreo aproximado, gerando aviões como o soberbo caça de superioridade aérea F-15 Eagle e o jato que reinou um bom tempo como melhor caça de combate aproximado do mundo, o F-16 Fighting Falcon.

Com os soviéticos também encolhendo sua frota de bombardeiros e o grande desenvolvimento dos mísseis antiaéreos, mais do que capazes de buscar e derrubar alvos grandes, os interceptadores foram perdendo sua razão de ser. No mundo dos caças para múltiplas funções dos anos 70, que enfatizavam a agilidade, eles não tinham espaço. O Delta Dart foi repensado para o combate aproximado e, para surpresa de todo o mundo, revelou-se uma excelente aeronave neste papel, o que é completamente inesperado para aparelhos de asa delta sem cauda, pois os ailerons da asa precisam desempenhar seu papel e o daqueles da cauda (na verdade, seu desempenho é tão diferente do aileron de asa normal que ele é chamado de elevon).

É sintomático que, mesmo ganhando essa sobrevida e sendo uma máquina magnífica, o F-106 Delta Dart nunca tenha entrado em ação, nunca disparando suas armas contra inimigos de verdade, mesmo sendo contemporâneo da mais longa guerra travada pelos americanos. As novas lutas que os EUA travariam pelo mundo não seriam conflitos finais nucleares, mas confrontos limitados contra inimigos menos dotados tecnologicamente, sem acessos a equipamentos tão caros como bombardeiros. Não havia lugar no Vietnã para o melhor interceptador de todos os tempos, assim como não houve no Iraque, na América Central ou nos Bálcãs. O interceptador só se justificava quando existiam nos ares monstros de metal de mais de 100 toneladas, carregando o Armaggedon no ventre. Extintos os dinossauros, seus predadores seguiram o mesmo caminho, abrindo caminho para os mamíferos dos jatos, os
caças de múltiplas funções.

Um Celular na Gamboa

O Soldado se aproximou com a 38. O sargento com a automática - calada, negra como carvão, brilhante como o raio quando cuspindo chumbo. O tenente, um rapaz belo e vigoroso por quem tantas moças em seu bairro suspiravam, levantou o seu fuzil que enchia o ar de tanta bala que ninguém escapava de sua pontaria (era o que diziam, porque ninguém que tinha visto ele atirando sobrou pra contar). E mais soldado chegou com 38, mais sargento com automática, e umas eram escuras e quietas, cheias de vontade de ter histórias pra contar e outras eram claras e elegantes, niqueladas e brilhantes, como os feitos que queriam realizar. E entre tantos, tanta gente, as pessoas com os rostos preocupados, se escondendo nas esquinas e torcendo ora por um, ora por outro, era tanta a correria que mais queriam é correr, sem pra onde nem saber, vinham dos bares e das boates, das casas e dos carros, que vinham ouvindo o que de boca em boca ia correndo mais rápido que os soldados - "O homem lobo tá cercado, o homem lobo tá arranjado, vai tanta bala voar que ninguém vai escutar quando de morte ele gritar". Mas chegavam e viam tudo quieto e nada de barulho, só um pouco de zoeira, que é pra gente lembrar o lugar em que a gente está. E aparece mais soldado e aparece mais revólver e olha que aparece até um major de megafone. O major dá ordem aqui, o major dá ordem acolá - o major sabe comandar! O major fala com o tenente e fala com o soldado. As armas querem atirar, mas eles vão ter que esperar. E todo mundo olha, e todo mundo vê quando o major levanta o megafone e grita pra todo mundo saber - "Homem, Fera, o que lá que seja, você não é o primeiro que a gente vai enfrentar. Os outros da tua raça todos a gente enterrou. Então se entrega, criatura malfazeja, você não tem pra onde escapar!". E o povo ocupando as ruas, uns aplaudem e apóiam, outros vaiam e apupam. "O major e os tenentes, os sargentos e os soldados, tantos que nem dá pra contar, como o homem lobo vai escapar?", perguntam uns. "A Fera só quer saber de matar. O sangue que ele derrama não seria eu a querer limpar. Os mortos que ele faz não seria eu a querer enterrar. Há tanto tempo dele tão atrás que até já perdoaram as coisas que ele faz, até querem mais ver os crimes ele cometer. O homem lobo é um assassino, o homem lobo é um criminoso, grandes fugas ele sempre soube tecer mas não é isso o que ele melhor sabe fazer", respondem os outros que aplaudem o tenente, aplaudem o sargento, aplaudem o major.
O homem lobo ninguém vê, o homem lobo sabe se esconder. Pode estar cercado, pode estar arranjado, mas uma boa visada dele, ninguém ali nunca vai ter. Alguém grita - "Eu vi uma sombra se mexer!", outro comenta "Tem alguma coisa ali a correr", mas quem é que pode dizer onde o homem lobo foi se esconder?
E então fica assim, o lugar todo cercado e o homem lobo refugiado. Os policiais todos armados e o homem lobo isolado. E todo mundo preocupado, todo mundo assustado, menos o major, que pega o megafone e grita de novo, inflamado: "Homem, fera, lobo, não importa, se não se entrega, logo vai ser morto!"
E é então que finalmente o homem lobo responde, e é então que a gente toda ouve, é um uivo, é um lamento, se escuta e não se sabe de onde, o soldado esconde a arma, do tenente gela o sangue, e o sargento, crente e protestante, se benze e se prepara e só o major, impávido, ousado, atrevido e arretado, desafia o uivo do homem lobo, desafia a fala do homem lobo, desafia aquele de quem o grito corre nas veias de toda a gente e enche de medo o coração, pois quem ouve o homem lobo tá marcado de morte, tá pronto pra passar dessa pra melhor.
"Lobo, se tem gente em você, responde e se rende. Tenho o tenente, o sargento, o soldado e os 38. Já fiz teus ancestrais correr, já enterrei os que vieram antes de você. Se entrega logo ou você vai ver quanta bala a gente tem pra te matar", grita o major apertando o megafone. E ninguém responde, ninguém fala, o homem lobo já uivou, muito sangue já provou, muita gente já matou, e não foi proseando que o homem lobo chegou aqui hoje onde ele chegou.
Os soldados esperam, espera o tenente, espera o sargento, espera toda a gente. Uns sorriem e se distraem, outros rezam e se preparam, que hoje enfrentam o homem lobo. O major desiste, larga o megafone e fala pro tenente que o assiste, "Deixa pra lá, eu mesmo vou lá, vou o homem lobo enfrentar que ele não tem arma pra atirar e nem peito pra encarar". O tenente diz que não, que mais reforço tem que esperar, que é o homem lobo que está lá, não é qualquer um que eles conseguiram cercar. O major chama o sargento, o major chama o soldado, "Vamos entrar, vamos procurar, nas sombras ele está, hoje, homens, vamos um homem lobo matar". E as armas se engatilham e os homens vão à espreita, e o major lidera todos eles, vão entrar no beco e vão entrar nas casas, que o homem lobo tá entocado, de lá tem que ser tirado.
E andam perfilados, um atrás do outro, cada um protege o seu, e quando vão entrar na primeira casa pra investigar, outro uivo começa a gente toda a escutar. E das pessoas que estão lá, curiosas, só pra olhar, algumas começam a suar, outras a soluçar, o cabelo a arrepiar, o homem lobo está a uivar, o homem lobo está na tocaia, o homem lobo se prepara, o homem lobo sabe que vai lutar,coitados dos soldados que ele vai encarar.
E alguns também se medram, e alguns até vacilam, sem dúvida todos pensam "é o rei dos assassinos e o pai dos matadores, o senhor dos pecadores, o dono de toda a fúria que o mundo tem de seus moradores! Será que vou viver? Minha família rever? Pros meus netos contar o dia em que fui matar o carrasco dos perdedores?"
Uiva o homem lobo, grita a fera furiosa no meio dos prédios todos.
"Não tenho medo, só desejo de te pegar!" - fica o major a gritar. "Onde é que você está, que nem tem coragem de se mostrar?"
E então um rosnado, uma voz que mais parece um pano, um tecido rasgado, um raio, um trovão caindo nos nervos dos soldados.
"Não tenho medo do teu quepe, não tenho medo do teu uniforme, não tenho medo do teu revólver, não tenho medo dos teus homens, por mais fantasiados e armados que eles sejam! Eu tenho as minhas garras e os meus dentes e minhas tripas e com elas já transformei em carne um bando de homem vivente! Vem major, vem soldado, vem tenente! A Deus não sou temente, com o Demo não sou clemente! Vem, vem encontrar teu destino nas presas da fera demente!"
Soldados se benzem, pessoas se escondem - o homem lobo não se intimida, lança seu desafio! Vê o major assustados seus comandados e timorato, responde com o megafone:
"Bandido, marginal, maluco e demente - não tenho medo de nenhuma dessa gente! Vou botar bala pra voar, tua pele toda vou furar! Vem, vem me encarar de frente!"
O major dá mais uns passos, o tenente limpa o rosto. As carabinas engatilhadas, as armas preparadas. Mas não são nada, não são nada, responde o homem lobo:
"Não lhe vai adiantar nas balas se fiar. Só quem pode me matar é alguém honesto e justo ou aquele tão malvado que já a alma nem tem custo. Aquele que ganhou os céus ou aquele que o Diabo, respeitoso e temeroso, nem conta entre os seus. Essa é a minha bênção e a minha maldição, saber que meu corpo tem tanta proteção e minha alma, quando alguém assim conhecer, não vai admirar, temer nem respeitar."
"Chega então de conversar, vamos começar a lutar! Tenente, Sargento, Cabo, Soldados, palavras mais não há, é hora de atirar!"
Quem ficou ou quem chegou para a caçada assistir se deitou, se escondeu, se agachou. Altos e oxítonos, afinados e barítonos, os revólveres cuspiam chumbo de seus canos. Enchiam o céu de estrondo, o ouvido de estampido, as janelas de buracos, as paredes de orifícios. Bala e barulho a tropa fazia, o resto escondido pra não se ferir, o resto que, desarmado, só podia assistir.
E mais e mais troavam os canhões, as balas crivando as construções, os gritos, os tiros, as munições, quando, em pleno tumulto, o céu já cheio de decibel (continua)

Tarde na Praia III








Grandes Porradas do Cinema

Tudo bem, o Batman Cavaleiro das Trevas é um ótimo filme, mas eu realmente gostaria de ver como o morcegão sai na porrada tão bem se, por um diálogo no começo da fita, ele nem é capaz de virar a cabeça. Eu sei que Chris Nolan fez aquela montagem horrorosa com closes próximos demais para mostrar como o herói é furtivo (também serviria para disfarçar falta de predicados marciais dos atores, mas não vamos entrar nesse mérito), mas tal decisão diretorial acaba deixando como única verdadeira cena de ação do filme a longa demais, exagerada demais, implausível demais, perseguição com jamanta ao carro de polícia.

No final dos anos 80, Ridley Scott, no preconceituoso CHUVA NEGRA, mostra Michael Douglas lutando a boa e velha porrada americana de cinema contra um yakuza que sabe caratê, kung-fu ou similar e levando a melhor. Erro completo. De Duna a X-Men, de Agente Bourne a Buffy, a Caça-Vampiros, hoje em dia todo mundo que sai no braço bloqueia golpes com as mãos, desloca ombros em movimentos partidos e nunca chega a agarrar o adversário, ou levar a briga pro chão. O aumento de implausibilidade nos filmes de ação tornou as lutas tão fantásticas e ritualizada quanto as das fitas de Hong-Kong dos anos 70. Por isso resolvi relembrar aqui algumas boas porradas cinematográficas. Daquelas maneiras mesmo.

O Tesouro da Sierra Madre
Normalmente o sujeito que aplica contos de vigário em filmes americanos é um almofadinha, um intelectual. Faz parte da cultura americana desconfiar de gente com muito estudo, aqueles ateus pervertidos blasé. Educação demais é algo de que se deve desconfiar. Quase sempre, quando confrontados pelo mocinho que enganaram, precisam da ajuda de capangas broncos superdotados fisicamente. Mas John Huston era inteligente demais pra usar esse falso clichê. Seu golpista sobrevive enganando homens durões numa terra inóspita e, além de falar bem, precisa ser durão tmbém. Quando os protagonistas da fita, Humphrey Bogart e Tim Holt, mais jovens do que ele, o localizam e o pressionam, ele tenta levá-los na conversa até que subitamente os agride. A luta é longa, feia e suja, sem nenhum glamur. O vigarista é obviamente um melhor lutador, e só é superado por estar inferiorizado numericamente e pela falta de escrúpulos dos adversários em usar golpes baixos. Não só impressionante cinematograficamente, como também cheia de significados. Cinema é isso aí.

Moscou contra 007
Muita gente estranhou o Bond de Daniel Craig, mas à parte a falta de elegância, as primeiras aventuras do superagente na pele de Sean Connery mostravam-no não só como um assassino impiedoso como também... um espião, em missões de inteligência! Nada do super-herói bem-humorado consagrado com Roger Moore e Pierce Brosnan.

É claro que Moscou contra 007 tem um monte de exageros e cenas tão realistas quanto um seriado de cinema, mas basicamente é um filme de guerra-fria e espionagem. Neste contexto realista, a fita tem uma das mais impressionantes porradas já registradas em película: a luta entre James Bond e Red Grand (Robert Shaw, o pescador Quint de TUBARÃO) dentro do trem. O espaço apertado concentra os golpes e os adversários estão sempre se chocando contra alguma coisa, aumentando a violência. A edição é sensacional. Os lutadores não são super-homens hipermalhados executando coreografias partidas em catás, mas dois agentes fortes tentando se livrar do cara que quer matá-lo de qualquer jeito, na base do pescoção. Suja e violenta como dois homens brigando de verdade até a morte, não envelheceu até hoje - compare-a com os filmes com Roger Moore dos anos 70 e 80 pra ver como ela estava à frente de seu tempo.

Barrabás
Um dos esquetes preferidos no Coliseu é dar a um sujeito uma lança pra enfrentar Jack Palance, o gladiador superstar, numa biga. Jack Palance sempre sai ganhando até que põem um velho escravo como seu oponente. Como o velho escravo tem o nome do título, Palance está em maus lençóis.

Este tipo de cena costuma ser resolvido com uma demonstração de força de vontade ou superior habilidade marcial - ainda que improvável num velho - do protagonista. Mas este épico - talvez o único filme verdadeiramente religioso dentre todos os filmes bíblicos, realmente levantando questões sobre a relação do homem com a eternidade e a morte - é repleto de movimentos inesperados e Barrabás evita ser atingido nas passagens de Palance fingindo arremessar a lança e mantendo-a... até que tem a idéia de atirá-lo nos raios da roda, derrubando a biga e o gladiador, que se torna sua vítima indefesa. E, já que estamos falando nesse tipo de filme, que tal...

Demétrius e os Gladiadores
Este filme é um lixo em termos religiosos. Se a sua fé vacilar porque pessoas que você ama morrerem, não se preocupe, Deus irá ressuscitá-los e assim você ficará sabendo que sangue de Jesus tem poder. Também é um lixo em termos dramáticos. De bom mesmo só a plasticidade - Delmer Daves explora com muito mais competência a interminável tela colorida em cinemascope, inaugurada com a prequela desta fita, O MANTO SAGRADO - e a para a época violentíssima cena em que Demétrius, finalmente disposto a abandonar seu pacifismo cristão porque sua namorada morreu, massacra todos os outros gladiadores na arena. Ele depois se torna um apóstata, amante de uma mulher casada, general de Calígula, mas acaba vendo a luz quando o manto sagrado traz sua garota de volta à vida. Assim até o Dapieve se torna coroinha.

Mais Grandes Finais de Filmes

Continuando minha série sobre grandes finais de filmes, mais alguns que me vieram à lembrança - e outro que vi pela primeira vez semana passada:


A Sétima Vítima
Sempre li excelentes referências quanto a esta fita, produto da unidade de Val Lewton, especializada em filmes B na RKO nos anos 40. Trabalhando com baixo orçamento, mas com grandes roteiros (quase sempre reescritos por Lewton) e um olho clínico para localizar talentos na direção e na edição, usando atores talentosos subutilizados e um excelente diretor de fotografia, essa equipe conseguiu ganhar dinheiro com filmes originais e criativos, já que, sem grandes investimentos empatados, o estúdio não se preocupava em supervisionar as produções.

Depois de arrebentar com SANGUE DE PANTERA (Cat People) e I Walked with a Zombie (que eu saiba, ainda não lançado em DVD no Brasil), e conseguir bons resultados financeiros com O HOMEM-LEOPARDO (Leopard Man), o próximo produto desse pessoal foi A SÉTIMA VÍTIMA. Fui obrigado a baixar a fita, já que na Cavideo só tinha um filme homônimo do século XXI que não tinha nada a ver com a produção de 1943. E valeu a pena, eis um filme que está à altura de sua fama. Em pouco mais de uma hora, somos apresentados a um naipe de personagens exibindo todos em algum grau desespero ou uma profunda infelicidade. O filme abre com a heroína recebendo um aviso da diretora da escola para moças onde estuda que sua irmã - sua única família - não vem pagando mais as mensalidades, o que impossibilita sua estadia no corpo discente. No entanto, explica a diretora, ela poderá pagar por suas aulas trabalhando como professora auxiliar. A mocinha considera a proposta, mas primeiro quer tentar descobrir o que aconteceu com sua irmã. Quando ela vai saindo, a assistente da diretora fala a ela para não voltar e não aceitar o emprego que lhe foi oferecido, numa cena que não nos deixa nenhuma dúvida quanto ao desperdício que foi a vida daquela mulher.

E essa pequena desculpa de busca do paradeiro da irmã irá nos apresentar aos estranhos viventes da película: Jacqueline, a irmã sumida, é incompreendida por quase todo mundo. Seu próprio marido a ajuda a alugar um quarto onde só há um laço de forca com uma cadeira embaixo achando que é apenas mais uma das atraentes e encantadoras particularidades dela, mas que uma mulher tão cheia de vida e caçadora de emoções jamais daria fim à própria vida. O psicólogo dela a usa para conseguir sexo e dinheiro. Um poeta que cruza o caminho só consegue escrever alguma coisa se apaixonado por mulheres ilusórias. E ainda tem os Paladistas, aqueles estranhos adoradores do demônio e a macabrissima cena do copo oferecido a Jacqueline...

O final é de uma crueldade tal que nem vou contar aqui. Vocês que façam pressão pra lançarem esse pequeno clássico em DVD por aqui.

El Cid
A trilha sonora, de Miklos Rosza, baseada em música ibérica do século XI, sobe, enquanto El Cid, já morto e amarrado à sela de seu cavalo, avança pelos portões de Valencia contra a luz. O exército mouro levanta quase em uníssono, seus escudos, assustados e vai abrindo caminho para o lendário guerreiro. Um final digno de um épico, que poderia pertencer a qualquer canção de gesta.

Excalibur
E, por falar em épicos... Parsifal, carregando Excalibur, atira-a ao lago, onde ela é recolhida pela mão da Dama do Lago ao som estourado de Crepúsculo dos Deuses. A mão desce e se recolhe sob as águas, guardando a esperança e Parsifal volta ao campo de batalha para ver o corpo de Arthur sendo levado para Avalon. De uma plasticidade arrebatadora, antes da introdução da computação no cinema não se viam cenas mais visualmente espetaculares do que isso.