Atendendo a pedidos, uma republicação de um velho artigo. Obama, cinema, armas idiotas da ficção científica, artigos mais atuais e bangue-bangues logo abaixo.
Houve quem dissesse durante o plebiscito do desarmamento, ano passado, que o cidadão precisa ter o direito de portar armas para se defender do Estado. Esta afirmação era válida na época em que os americanos escreveram sua Declaração de Independência. Eles estavam a caminho de se tornar a primeira democracia burguesa do mundo. Só faltava mulheres poderem votar e negros poderem ser gente, coisa que começou a acontecer uns cento e cinquenta anos depois. Mas pelo menos estavam apontando na direção correta. O resto do mundo ainda vivia sob monarquias e afins. Se o rei fosse um douto sábio com um certo desprezo por bens materiais e perseguindo realização espiritual, estava tudo bem com o povo. Infelizmente para o povo, gente com essas qualificações normalmente não ascendia ao trono, sendo derrubada ou assassinada pelo irmão ou general mais resoluto e decidido.
Mas mesmo no século XVIII essa linha de raciocínio de armas-contra-o-Estado-tirânico já não fazia muito sentido. Como qualquer historiador de meia-tigela (ou mesmo 1/8 de tigela ou menos) pode explicar, aqueles senhores feudais com seus reinos de 50 quillômetros quadrados ou menos tornaram-se impraticáveis depois da invenção da pólvora. Já não bastava uns bravos de cavalo e armadura cercados de um monte de infantes arrebanhados entre os homens válidos da propriedade para formar um exército. Eram necessárias armas de fogo. E pólvora. Caras demais para aqueles feudos sustentarem.
As primeiras armas de fogo de mão varreram as armaduras do mapa, tornando-as inúteis, transformando-as mais em um caro empecilho ao movimento do que em proteção adequada. Mas eram imprecisas e lentas na recarga. Quem dominava o campo de batalha era o canhão. A princípio sua grande utilidade era derrubar muralhas. Castelos bem construídos eram virtualmente impenetráveis pelo inimigo durante a idade do Ferro. Uma guarnição mínima, aproveitando a vantagem da altura e os muros inamovíveis, e que contasse com água e víveres, poderia se defender indefinidamente. Constantinopla, com as melhores muralhas que o mundo conheceu antes da Revolução Industrial, mesmo depois de ter perdido todo seu império, seus soldados e a grana pra pagar os soldados, só caiu depois da pólvora.
Com a chegada do demoníaco pó negro, aqueles condes e duques vassalos rebeldes não poderiam mais se esconder por trás de suas fortificações com meia dúzia de cavaleiros, vinte arqueiros e trinta vagabundas pra liberar geral nos momentos de tédio. Por favor, ignore completamente aquelas cenas do (ótimo épico) Cruzada, em que catapultas atiram de quilômetros de distância rochas enormes. Ridley Scott apenas achou que uma platéia contemporânea se sentiria mais no meio de uma batalha se reproduzisse um bombardeio aéreo. Na verdade, essas máquinas de assalto teriam sorte em mandar algumas pedras a mais de 100 metros de distância. Por motivos óbvios, esses pedregulhos descreveriam uma parábola e praticamente rolariam nos muros, ao invés de percorrer uma trajetória quase reta como uma bala. Em toda a Idade Média, a única vez em que um ataque à base de catapulta e aríete a uma cidade murada deu certo foi quando os europeus tomaram Jerusalém. Das outras vezes os invasores se valeram de traidores que lhes deram acesso ao interior, de golpes de sorte, como na queda de uma gigantesca fortaleza templária que foi invadida pela latrina (eca), ou de um longo assédio para que a guarnição defensora perecesse por fome ou sede.
Mas voltemos aos canhões. Até o século XVII, acho, era para destruir fortificações que eles serviam. Mas o avanço tecnológico levou à construção de canos melhores, que podiam ser mais leves e ainda assim não serem destruídos com as explosões em seu interior. Eles também ganharam rodas e passaram a ser móveis. Foi aí que se tornaram os soberanos dos campos de batalha, como arma antipessoal. Podiam ser carregados com balas, que atravessariam quinze soldados facilmente antes de cair ao chão, quicando e rolando, o que levaria ainda a várias fraturas na canela e nos pés de outros inimigos (é sério). Ou podiam ser carregados com metralha, um monte de chumbinhos, como se fossem escopetas gigantes, lançando uma verdadeira nuvem de destruição. O canhão tornou-se tão importante que até hoje, em conflitos convencionais, é o que causa o maior número de baixas.
O canhão no entanto era tão caro que acabou com a feudalização da Europa. Só ricos e poderosos estados centralizados podiam arcar com sua construção em massa, bem como dos rifles, munição e pólvora. É estranho, portanto, achar que hoje em dia, quando um exército nacional usa muito mais alta (e cara) tecnologia, uns sujeitos que gostam de andar armados vão poder se opor a ele. A não ser que se libere a venda de canhões, tanques e mísseis anti-tanques. Não? Ah, que pena, eu sempre quis ter um lança-chamas. E as revoluções guerrilheiras do século XX todas se fizeram praticamente sem armas. Fizeram-se com idéias. Por mais que se execre o que Mao Tsé-Tung, Lênin e Castro fizeram depois que chegaram ao poder, sua maneira de tratar o povo e as alternativas que lhes ofereciam conquistaram completamente a população para o seu lado, mais do que suas (poucas) armas.
Quanto a se defender de assalto, bem, aí há o problema de que o assaltante normalmente não avisa que vai assaltá-lo. Você também poderia criar o hábito de sacar sua arma sempre que visse alguém suspeito. E acabar matando alguém, como fez por exemplo o criativo pintor Iberê. Mas isso foi um caso isolado. Voltemos ao raciocínio puro. Há também o caso de muitos assaltantes atacando-o. Ou um arrastão. Como se defender com um 38? Melhor uma metralhadora. Não. Um fuzil de assalto. Ou uma metralhadora. Que tal plutônio? Entenderam? Michael Moore fez isso em "Tiros em Columbine", conversando com um americano psicopata que colecionava armas. Ele perguntou "e você também é a favor da venda livre de plutônio?" "Eu não. Tem muito maluco por aí".
Bem, então ninguém, nem mesmo um psicopata paranóico amante de armas, é a favor da completa liberação da venda de armas. É preciso um limite. Mas onde pôr o limite? Que tal este: fica proibida a venda de qualquer instrumento cujo único fim é causar ferimentos que podem levar à morte de seres vivos. Paremos nas facas. Elas são legais. Willie Garvin enfrentava sujeitos que queriam conquistar o mundo só com elas. Tive uma namorada há uns dez anos atrás, que tinha uns 22 anos. Ela adorava Modesty Blaise e só pouco tempo antes de me conhecer descobrira que era uma série de livros que tinha virado quadrinhos, não tinha começado já nas tirinhas. Mas o que mais a atraía era a relação da Modesty com Willie, o jeitão de irmão mais velho dele, o modo como ele a chamava de "Princesa". Para surpreendê-la, um dia fui na Cidade rodar sebos atrás dos livros originais da espiã. Um deles, perto da Praça Tiradentes (onde mais, dã?) é praticamente um monte de pilhas e pilhas de alfarrábios. Uma mulher um tanto gorda, envelhecida, com um ar desinteressado e de guarda-pó estava em pé à porta. Procurei um pouco na seção de policiais, mas não conseguia entender a arrumação da loja. Pensei em perguntar à mulher, mas achei que quando eu falasse "Modesty Blaise" ela ia mandar eu repetir três vezes antes de dizer que nunca tinha ouvido falar (isso me acontecia muito quando eu pedia a recém-lançada Diet Coke nos bares; tive que passar a pedir "coca sem açúcar"; também acontecia muito quando eu procurava bandas fora da parada de sucesso em lojas de discos).
Bem, sem paciência pra procurar naquelas pilhas todas e querendo ir logo ver em outra loja, perguntei pra mulher, por desencargo de consciência: "Tem livro da Modesty Blaise?", e a mulher respondeu (como um jesuíta): "Em inglês ou português?" (Cabe aqui acrescentar que a mulher era negra, o que obviamente a meus olhos tornava-a ainda mais incapaz de responder à pergunta). Comprei os livros, mas a namorada foi embora ainda antes de lê-los. Como ela andava muito de moto também e ela dizia que vez por outra se sentia vulnerável, dei-lhe também um canivete de mola. Ela adorou. Dei também um canivete suíço pruma namoradinha de São Luís. Ela tinha posto o maior olho no meu. Pediu pra dar uma olhada enquanto dirigia, abriu-o, o pôs contra a minha garganta. Eu pedi para que ela o tirasse e ela perguntou "você se acha sob meu poder agora?", "Não, eu acho que estamos andando numa estrada de terra e não quero morrer porque você está olhando pra mim e não viu o buraco à frente".
Eu só me meto com mulher maluca. Elas não podem andar armadas não.
novembro 05, 2008
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2 comentários:
Essa crônica é uma obra-prima. Quanto à Modesty Blaise, era a tira que eu mais rejeitava de toda a página de quadrinhos do Globo na minha Infância 80. Engraçado pensar que essa garota, da minha geração, tinha um pendor estético totalmente inverso ao meu. Se você pegar uma página de quadrinhos do Globo de segunda a sábado nos anos 80 (sempre a penúltima do Segundo Caderno), vai ver que, ao contrário da primeira parte, hiperreacionária, tinha dez tiras de cada lado e, conforme você descia na página, mais escuros ficavam os quadrinhos, porque o traço ia se tornando mais detalhado, mais sombrio (metido a sério) e com menos movimento (sim, o diagramador era um gênio, fosse quem fosse). A Modesty Blaise ficava na extrema direita inferior da página. É exatamente o fundo do poço no meu conceito. Acho que no seu lugar eu não conseguiria esconder minha rejeição e nada acabaria rolando. Sorte sua ter rolado. Um abraço.
Modesty Blaise no Globo foi desenhada por dois sujeitos. Um tinha o traço mais detalhado e parado, o outro mais limpo (embora tão sombrio quanto) e com mais movimento. Eu gostava porque tinha agente secreto e era a única HQ da página onde vez por outra rolavam peitinhos (por exemplo, quando ela e Willie foram largados nus no meio de um deserto) e bundinha.
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