novembro 02, 2008

Blogue Sem Lei III

Da Terra Nascem os Homens (The Big Country, de William Wyler, 1958)

Saindo do Odeon durante o Festival do Rio, o blogueiro comprou na banca ali em frente "Gunfight at OK Corral" por 7,99 e gostou tanto que resolveu rever westerns clássicos e postar sobre eles.

Esta fita deve ter feito bastante sucesso, já que foi imortalizada na série clássica de piadas sobre Campinas e Pelotas - (“quando os cinemas lá exibiram “Da terra nascem os homens” as ruas apareceram todas esburacadas”). O título em português é bem mais interessante do que o original, mas quem o criou não entendeu direito o filme, já que na verdade o macho que a produção endossa é mais afeito ao mar do que à terra e vem do leste, não do oeste. Jessamyn West era descendente de quacres e agressivamente pacifista. Não parece ser o tipo ideal pra escrever um western dos anos 50, mas foi nela que William Wyler confiou pra adaptar o romance de Donald Hamilton e mostrar que para a levar a civilização ao agreste selvagem a maneira certa era a inteligência, a cordialidade e principalmente a coerência e não a habilidade com o Colt Peacemaker 1873 (os enormes e anteriores Dragoon e Navy só foram aparecer no cinema quando Leone e os italianos resolveram escancarar seu simbolismo fálico).



Pra quem só conhecia o longa de versões dubladas da tevê da era da antena coletiva, a expectativa em vê-lo no formato original e em 50 polegadas digitais era a de que mais uma vez descobriria o esplendor perdido da projeção original, afinal o título era “the big country” e os personagens passam o tempo inteiro falando que “esta é uma grande região”. Mas as locações, embora confirmem a sensação de amplidão, não são das mais impressionantes e a fotografia é em sua maior parte indiferente – claro, há exceções, como a briga noturna (na verdade, numa noite americana, aquela com filtro na lente e tratamento químico pra fazer o dia parecer noite) e o arroio pivô da confusão, mas tudo parece superexposto demais, ainda mais quando se dá de cara nos créditos iniciais com os logotipos Technirama e Technicolor – um dos melhores processos widescreen e a melhor cor pra película.

É verdade que isso e as cores esmaecidas podem ser resultado de uma má digitalização da série Sucessos Clássicos Inesquecíveis, que relança em DVD as produções para as quais tinha direitos do VHS. Como o contrato falava apenas sobre vídeo caseiro, sem especificar a mídia, criou-se um limbo legal que povoou o mercado com disquinhos baratos e muitas vezes com horrorosa imagem, já que escaneada das matrizes para a fita de ¼ de polegada. “Da terra nascem os homens” é claramente originada de película, mas talvez não em 35 mm (ou 70, a bitola do Technirama) e nem com os melhores equipamentos disponíveis. Ainda assim, isso não justifica a falta de textura nos interiores e de vida nas cores. A produção toda tem um ar monocromático mais adequado a um western do Leone ou revisionista do que ao épico mitológico que (frustradamente) almeja ser.

Mas voltemos lá pro início. A história começa com o almofadinha Gregory Peck chegando num vilarejo no meio do nada e sendo recebido por Charlton Heston, que consegue camuflar seu carisma de superstar e tem excelente atuação num papel coadjuvante. Heston leva-o até Carrol Baker, que em sua viagem para o leste, por Peck se apaixonara. Assim que ele chega, ela pula nos braços e começa a demonstrar seu carinho efusivamente demais para o século XIX e para o cinema americano de 1958. Carrol, afinal, é o lânguido terremoto no centro de “Baby-doll” e obviamente tudo que lhe interessa é sexo. Bastou ela se afastar da fazenda pra e do pai pra agarrar um macho. E Peck, de uma família dona de uma frota, capitão de navio, alto, educado, em pleno domínio do ambiente no civilizado oriente americano, era uma isca irresistível.
Só que no caminho para a fazenda do pai dela, ambos são importunados pelos inimigos do pai de Carrol, os filhos do patriarca adversário e miserável que faz fronteira com ele e não venderá seu rancho. E Peck não reage às provocações deles. A loura indomável pega seu rifle e Peck é quem a detém. Quando tudo acaba, em vez de furioso, Peck apenas sorri. Pelo jeito, já estava treinando pra ser o Atticus Finch.

E assim ele vai passar o filme inteiro. Sem aceitar provocações e deixando todo mundo – inclusive sua noiva – preocupado com sua masculinidade. Ele percebe que Heston está tentando pregar uma peça nele e se recusa a montar o cavalo que lhe é oferecido, uma besta indomada na verdade. Mesmo sendo um ato racional, decepciona Carrol Baker. Ver seu amado, ainda que apenas por alguns segundos, tentando impor sua vontade sobre uma fera irracional que tem entre as pernas com certeza ia fazê-la morder os lábios em antecipação das núpcias.

Ninguém entende os hábitos de leitor de Thoreau que Peck cultiva. O pai da moça manda Heston e outros capangas até a fazenda de seus inimigos. Os homens não estão lá, então eles quebram um monte de coisas e furam o reservatório. E ainda vão à cidade pra encontrar os rapazes e se aproveitar de sua superioridade numérica pra enchê-los de porrada. Isso leva o pai deles, o patriarca do clã à fazenda de Carrol.

O patriarca é Burl Ives com ridículas sobrancelhas falsas. Ele pode viver numa cabana miserável, mas há uma rica poltrona de couro destoando. Uma metáfora para ele mesmo – rude, sem maneiras corteses, pouco elegante, ainda assim ele tem um código de honra e com um mínimo polimento poderia ser confundido com um gentleman. Seu filho, interpretado por Chuck Connors, no entanto, criado no árido agreste miserável de seu rancho, é pouco mais do que uma besta furiosa, que se apaixona pela amiga de Carrol Baker, Jean Simmons. Acontece que Jean Simmons é a herdeira do dono do arroio que irriga as terras de todo o mundo e que o pai de Carrol quer apenas pra si mesmo...



Jean Simmons também é o segundo nome nos créditos, atrás apenas de Gregory Peck e só os pobres de espírito não percebem por isso e pela sexualidade das primeiras cenas de Peck e Baker que eles não ficarão juntos. Casamento é algo muito mais sério e Simmons é muito mais do que uma menina mimada transpirando sexo. Ela cuida do rancho sozinha e conversa longamento com Peck quando ele se dispõe a comprar o arroio pra servir de intermediário entre os clãs brigões e assim trazer a paz. Pacifismo proativo, essa era a idéia de Jessamyn West. Tanto que, muitos incidentes depois, quando Jean Simmons é prisioneira de Chuck Connors e o grupo formado pelo pai de Carrol Baker para resgatá-la é emboscado num daqueles convenientes desfiladeiros do deserto, Peck aparece e vai ao encontro de Burl Ives e seu filho sozinho. Como não se envolveu na briga e não reagiu lá no começo da fita, ele tem credibilidade para passar por todos os atiradores tocaiados. O cavalheirismo se paga.


Os créditos, com o famoso tema, desenhados por Saul Bass

Depois disso o filme empilha clichê sobre clichê até uma conveniente situação em que Peck ganha o dia sem disparar um tiro. Burl Ives, apesar de sua rudeza, é um cavalheiro, mas criando seus filhos na miséria, não conseguiu lhes passar seu código moral. Do outro lado, o pai de Carroll Baker, por baixo de toda sua ostentação e pinta de tradicional senhor sulista, não tem escrúpulos ou senso de honra, apenas agressividade, que em ambiente tão agreste é confundida com força de caráter. Sua filha mede outros homens por ele e ele sub-repticiamente alimenta os desejos incestuosos da filha, tal é sua perversão de valores.

O filme, no entanto, comete um pecado mortal no seu terço inicial. Gregory Peck, quando ninguém está olhando, resolve tentar montar o cavalo indomado que lhe ofereceram... e consegue. Só quem observa a cena é Alfredo Bedoya, rebaixado do genial bandido de “O Tesouro da Sierra Madre” para o humilde servidor mexicano estereotipado, para mais tarde poder contar pra todo o mundo que o desprezou. Mas isso é só pra Jean Simmons mostrar que Peck realmente é um homem, ao contrário dos caubóis cheios de vazia hostilidade. A cena do cavalo na verdade é para NOS convencer de que Peck é um sujeito valoroso e com isso o filme se trai em sua própria essência: mais do que inteligência, caráter e personalidade, fundamental é ser macho – mesmo que em segredo. Neste momento o nível literário cai às primeirais histórias de Superman e Clark Kent, o que até não seria problema se não fosse o tom épico e sério do longa, reflexo de William Wyler, um dos diretores da era de ouro de Hollywood com mais pretensões autorais.

Se nem a equipe criativa de “Da terra nascem os homens” acredita no valor de um homem que não seja macho de verdade, por que nós deveríamos acreditar? Lutando contra si mesmo, o filme tem também alguns acontecimentos que aparecem com certo ar de gratuidade e, tirando Burl Ives e Chuck Connors, interpretações não muito inspiradas. William Wyler é um dos titãs do cinema sonoro americano e carrega o filme adiante, muito ajudado pelo famosíssimo tema musical, que durante muito tempo embalou o futebol de domingo na rádio Globo, mas não consegue fazer dele o grande épico pacifista anti-Guerra Fria que pretendia, intenção que fica clara quando finalmente Burl Ives e o pai de Carroll Baker se encontram, após o primeiro confessar a Peck que o verdadeiro problema sempre tinha sido mesmo entre os dois. Ficamos esperando a revelação de qual era esse verdadeiro problema por trás da rivalidade, mas ele nunca nos é revelado.

“Da terra nascem os homens” tem um título que é quase o contrário do que pretende dizer o filme, que prefere apostar na racionalidade do que no instinto, mas no entanto a produção também tropeça na hora de se explicar. E assim, em vez de majestoso épico temos uma fita ótima para ver na tevê tarde da noite, embora muito longa e com um elenco muito mais prestigioso do que o de costume.

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