A Hora do Fantasma
O fade-in é o Sol nascendo no horizonte e um zoom out revela-o enquadrado por uma janela de antigas e belas esquadrias de madeira, enquanto um galo canta. Ouvem-se baques surdos e insistentes vindos de fora do quarto sugerido. Um corpo passa pela tela, só se vendo um diáfano vestido antigo e cabelos cacheados louros à moda do final do século passado. Um braço aparece à janela, revelando que a loura está vendo o Sol nascer, prenunciando um belo dia quente e dourado. Os baques continuam. A câmera desce até seus pés descalços, que se afastam da janela e passam por uma cadeira de balanço com alguém sentado, que a moça empurra ou na qual esbarra, já que depois de sua passagem, ela começa a se mexer para frente e para trás, movimento que a câmera acompanha por um instante antes de voltar a seu traveling atrás da jovem, não a encontrando mais. Os baques continuam. A câmera gira devagar à procura dela, mas encontra apenas a porta do quarto a vibrar, é dela que vêm os baques, em segundo plano. A porta se abre violentamente, acabou de ser arrombada. Um grupo de homens pára na soleira, com os olhos arregalados e, em primeiro plano, o movimento da cadeira de balanço traz dentro de quadro o rosto de uma velha senhora, morta. Seu pescoço perfurado por uma agulha de crochê. Enfim termina o plano-sequência e a câmera enquadra um homem do grupo na soleira da porta um pouco mais de perto, dizendo que chegaram tarde demais. Corte. O Sol se põe em câmera acelerada e vem uma noite sem estrelas, escura, nublada - sabemos disso por um raio que cai, enquanto aparece a legenda, Tantos anos (dez? dezessete?) Depois.
Corta para um sujeito na mesa de um restaurante e outro ao fundo olhando para o raio pela tempestade e comentando que ainda por cima vai cair uma tremenda chuva. O da mesa é um escritor, Alex e o outro seu agente, ou editor, ou amigo que lhe deu carona - tanto faz, ele só aparece nessa cena - que tenta demovê-lo de passar algum tempo na mansão de um fã que lhe escreveu. Alex retruca que precisa de férias, quer conhecer bem a cidade e tanto as fotos que recebeu da casa quanto as cartas que recebeu do sujeito atiçaram sua curiosidade. O agente fala que na verdade ele quer se esconder por causa de uma mulher - não fica claro se apenas uma grande paixão ou sua ex-esposa, nada nesse filme é claro, que saco - quando subitamente, em primeiro plano, em contra--plongée, uma bengala corta a tela e separa os dois amigos conversando ao fundo. Com citações eruditas, aparece Ennyo, um sujeito com roupas e maneiras de nobre inglês decadente, olhos esbugalhados e nariz adunco, num ar que lembra fotos de alemães da República de Weimar e que fala sem parar. Ele tranquiliza o agente, fala de como admira os livros de Alex e diz para o amigo que está tudo bem, ele está em boas mãos. E leva Alex, deixando o agente sozinho.
Na viagem de carro, Ennyo mostra mais de sua erudição. Alex fala que queria muito conhecer a cidade, uma cidade antiga, mas cuja decadência econômica parou-a no tempo (na verdade, pelo décor e arquitetura, nunca saberemos exatamento em que época, mais ou menos dos anos 50 pra cá, se passa a história). Ennyo fala que Alex então vai aproveitar bastante a estada na cidade, que ele pode levar Alex a conhecer muita decadência na cidade e que Alex está certo, a decadência é sempre a parte mais interessante de qualquer história. Ennyo pára o carro em frente à impressionante mansão. Alex, um pequeno ponto perdido frente à grande construção, olha as nuvens caminhando e os raios, por detrás da casa tão fantasmagórica quanto o solar dos Usher.
Alex arruma suas coisas e Ennyo o leva a conhecer um pouco da casa. Explica que Lídice, o nome da cidade, se deve ao fundador, que deu o nome da esposa ao local e não à aldeia tcheca massacrada pelos nazistas e cuja memória é homenageada em todos os países com um município batizado à sua semelhança. "Pense bem", chama a atenção Ennyo, "pode-se dizer que esta é a Lídice ideal, das quais emanam todas as outras... inclusive a que sofreu o massacre". Alex pergunta a Ennyo sobre a história da mansão e da família, mas este desconversa, falando que é melhor dormir, pois amanhã ele pretende que Alex tenha um dia bastante cheio. Quando o excêntrico anfitrião apaga as luzes da sala, percebe-se uma tênue mancha branca, quase uma sombra, que segue os dois homens, mas ela se dissolve muito antes que tenhamos tempo de discerir qualquer coisa sobre ela. Chove na janela.
E continua chovendo na manhã seguinte, na janela de um ônibus chegando na cidade. Um sujeito calado e de ar grave desce do ônibus com suas coisas. Um rapaz se acerca dele, perguntando se ele quer comprar mapas ou quer informações turísticas sobre a cidade. O calado diz que não, não deseja saber de nada sobre a cidade, não desejava sequer estar naquela cidade. O homem grave vai indo embora, mas o rapaz o segue, insistindo nas belezas do lugar, o que é só uma deixa para cortar para Ennyo e Alex visitando uma falésia com uma igreja em ruínas que domina a visão de uma praia. Ennyo só lamenta que esteja chovendo e Alex não possa curtir a praia. O escritor diz que não se importa. O excêntrico explica que seu organismo não se entende bem com vírus e fica no carro. O visitante explora as ruínas da igreja. Ainda encontra vestígios da grande festa de casamento que Ennyo explicara ter sido a última celebração nela ocorrida. Ele desce por um caminho íngreme, juncado de cruzes, até a praia. Quando chega na areia, uma loura está sentada displicentemente sobre uma das cruzes. Alex indaga se ela não acha que é falta de respeito. A moça diz que não. Aquele a quem a cruz se refere está em estado muito menos apresentável do que ela, sua família se extinguiu e, afinal, aquelas cruzes só estão ali para marcar os afogamentos que houve na praia. Ela explica que, apesar da aparência plácida daquelas águas, elas às vezes se agitam em ressaca. Como são águas represadas pela baía, têm correntes traiçoeiras. Os dois começam uma conversa sobre a história daquela igreja e sobre simbolismos, mas a chuva aumenta e a moça diz que tem que ir. Alex sorri, pergunta se já chegou a hora dela, ela diz que não, pelo contrário, ela tem que esperar chegá-la. Antes de ir, ela faz Alex prometer que não contará que a viu para Ennyo. Ele acaba cedendo e a observa se afastar na chuva, seu cabelo e seu vestido soltos ao vento, o que é bastante estranho, já que está chovendo bastante e suas próprias roupas e cabelo estão empapados, incapazes de tremularem.
Alex volta ao carro. No meio da conversa, pergunta ao excêntrico se ele tem alguma namorada ou amiga mais íntima. Ennyo diz que tem muitas. E que irá apresentá-las ao escritor.
Corte para um show de cabaré estranhamento antigo e demodê. Coristas sentam-se no colo de Ennyo e do constrangido visitante. Pianistas com camisas com ligas tocam clássicos americanos. Depois de muita farra, enquanto o Sol nasce, os dois estão caminhando bêbados por uma ladeira que leva ao mar, bêbados, segurando uma garrafa de conhaque e tecendo loas às mulheres calipígias e seus ventres mornos e amorosos. Ennyo diz que está bêbado demais para dirigir e Alex nem sabe fazê-lo, então o anfitrião diz que vai levá-lo a outro referencial da cidade que ele precisa conhecer. Vão para outra grande casa. Lá a rechonchuda baixinha, extremamente simpática Agatha, a tia solteirona de Ennyo, os recebe e os trata não como homens, mas sim como adolescentes depois de uma de suas primeiras noites de farra, acomoda-os e os põe para dormir, enquanto Alex ri do jeito da carismática senhora, falando sobre estes jovens rapazes e suas loucuras.
Na biblioteca da cidade, numa imponente e silenciosa sala, o homem calado que chegou de ônibus é o único ocupante. Ele está às voltas com exemplares de jornais antigos. Bem antigos. Finalmente ele acha a manchete que está procurando. Herdeira Morta na Noite de Núpcias. Vê a data do jornal. A câmera mostra outros volumes abertos sobre a mesa noticiando diversos outros assassinatos horrendos. Os intervalos são de tantos (dez? dezessete?) anos, mas sempre na mesma época. Ele põe desesperado a cabeça entre as mãos. A câmera avança até um relógio com calendário e vemos que faltam poucos dias para a data dos assassinatos.
Ennyo e Alex acordam. Agatha pede ao sobrinho que visite seu advogado. Precisa de uma declaração de bens, inventário, algo assim meio obscuro. Os dois vão ao escritório do rábula. É um sujeito velho, de monóculo, cabelos brancos, alto da cabeça calvo, usa fraque, parece uma coruja, é brincalhão e fala alto. Ele abre um enorme livro e fala sobre os muitos bens da família de Ennyo. Termina comentando, aquela menina tinha muito dinheiro, não é, Ennyo?
Os dois voltam para a mansão. Vemos sua chegada através das janelas da casa, como se fora uma câmera subjetiva de alguém - aliás, o estilo visual de enquadramento do filme é sempre desequilibrado, como se faltasse alguém no quadro para harmonizar a composição ou como se alguém estivesse espionando através de alguma fresta. Já é noite e chove finamente. Ennyo acende a lareira e se serve um conhaque. Alex conversa com ele. Pergunta porque seu anfitrião vive naquela cidade, bela, é verdade, mas melancólica e sem opções, logo ele, um homem tão culto e inteligente. Ennyo reage inesperadamente irritadamente, dizendo que aquela é sua terra, ele tem suas raízes ali, que um homem não deve se afastar do seu ninho de poder, o centro de suas amizades e paixões. Alex retruca que ele, aparentemente não tem fortes laços afetivos com ninguém, excetuando-se sua velha tia, que não se enquadra no tipo de relacionamento a que eles se referiam. Ennyo diz que Alex não entende, aquela é uma cidade mais antiga que os dois e a casa em que estão é originalmente ainda mais antiga do que a cidade (foi reformada diversas vezes). Que Alex não entende a relação do anfitrião com os (olhar algo diabólico e sorriso enigmático) espíritos da terra. Que não há como escapar do que nos faz ser o que somos. Que aqueles que deixaram a cidade nada conseguiram em sua fuga insana de suas raízes.
Corte para o sujeito calado que chegou de ônibus, trancado no quarto de um hotel. A câmera passeia por seus pertences, uma mala com etiquetas de diversos lugares do mundo, fotos jogadas por cima da cama, mostrando o homem em paisagens as mais diversas, sempre praticando alguma coisa arriscada e perigosa que trai um secreto desejo de auto-destruição, tal como dirigir carros de corrida no Paris-Dakar ou pular de altos precipícios. Continuando o traveling, mostra-se uma antiga foto em preto-e-branco do sujeito abraçado a Ennyo, os dois bem jovens, passa por um cinzeiro cheio de cigarros e chega ao ocupante do aposento, que depois de ver as fotos, está olhando para um desenho que terminou. Ele acende outro cigarro, caminha até a janela para olhar a chuva e vemos que ele atirou um retrato em cima da cama - um retrato da moça loura que estava na praia.
(É assim mesmo, tirando Ennyo, que fala sem parar, esse filme tem muito poucos diálogos).
Na mansão, Alex se retira para dormir. Ennyo fica avivando as cinzas da lareira, murmurando que não se pode deixar o fogo morrer.
O dia seguinte amanhece com mais chuva fina e fria. Alex resolve caminhar pelos imensos jardins da mansão. Encontra um caramanchão, um bote e um lago do qual não se vê a superfície. No caramanchão, meio barracão, há uma velha pintura jogada a um canto. De uma bela loura, é claro. Enquanto Alex olha para o quadro, chega Ennyo falando que o tempo anda úmido, mas não entende porque a maioria das pessoas se sente melancólica por causa disso, afinal água é símbolo de fertilidade. Alex comenta com o amigo sobre quem é a menina no quadro. O excêntrico comenta que ele precisa de diversão e movimento, já que anda se interessando por quadros de mulheres mortas há muito, parece Dana Andrews em Laura. Uma festa, eles precisam de uma festa esta noite. Com bastange gente, muita gente. O escritor pergunta como eles vão conseguir chamar tanta gente. Ennyo arregala ainda mais os seus olhos e levanta um dedo, enquanto sorri com seu sorriso algo diabólico, algo inocente. O escritor olha estranhamente e corta para ele ainda com esta expressão, meio sorridente, é verdade, já que agora ele está vestido de homem-sanduíche, com placas anunciando a festa e tocando uma daquelas buzinas a ar usadas por palhaço, enquanto seu bem trajado anfitrião, como um político em campanha, beija mãos e dispara charme convidando para a festa, com suas luvas brancas e sua convincente fala. Eles terminam quando o Sol já está se pondo. Close em Ennyo falando que agora só lhes resta aguardar e olhando para o relógio. Corte em semelhança para o homem calado olhando para o relógio em seu quarto. Ele sai e desce a soturna escada de seu hotel.
E outro corte em semelhança, desta vez para um casal bêbado, subindo a ampla e expressionista escada da mansão de Ennyo, beijando-se às vezes pelo caminho a um dos muitos quartos. Música e luzes. Homens e mulheres passam dos limites pelos cantos e adentram os aposentos para se dedicarem aos transportes do amor. Suas sombras projetam-se sobre os muitos ângulos e móveis da habitação como em filmes expressionistas. Os PV da câmera sugerem sempre um voyeur.
E um deles é Alex, que não se integra à festa. Ele observa que seu anfitrião, ao longe, cerca-se de mulheres sequiosas. O escritor evita contactos e vai mais e mais se afastando da festa, até que percebe uma presença em algum obscuro e protegido recanto da casa. Sobe até lá. Não vê ninguém. Senta-se, cansado e passa ele a observar a festa. Finalmente, aparece a moça. Os dois começam a conversar contando como se sentem um tanto deslocados na festa. O visitante, insinuando-se, pergunta desajeitadamente à moça se o motivo dela não se sentir à vontade é ciúmes de Ennyo. Ela não responde diretamente, apenas pergunta ao artista se este não seria o motivo dele. Embora a jovem - uma adolescente - tenha dito isto gravemente, Alex sorri, contente com a inteligência de sua interlocutora. Ele fala de seu recente e fracassado caso de amor e conversam sobre a festa, desejo, a cidade. Enfim, Alex, evitando encará-la, já que está bastante atraído, pergunta se ela tem alguém. Como ela demora a responder, ele a procura com os olhos. Não há ninguém.
Corte para o homem calado caminhando em segundo plano, lateral e bidimensionalmente, por uma rua de trottoir. Em primeiro plano vemos as costas de uma prostituta encostada a um poste. Close do homem calado interessado. Volta ao PV anterior, ele caminha na direção da meretriz. Os rostos dos dois ficam fora de quadro. O homem calado diz que quer apenas que ela durma na cama dele. Apenas isso. Ele dorme no sofá. Ele quer apenas a companhia dela, mas não quer ter de tocá-la de maneira nenhuma. Se ela aceita. Não vemos a resposta dela, mas ele diz para ela segui-lo, o que nos diz que ela aceitou. Quando eles se vão, vemos as costas dela.
Ela é uma loura de cabelos cacheados.
Nasce mais um dia nublado. Alex levanta de ressaca, com uma discussão. O velho advogado está levantando a voz contra Ennyo, dizendo que ele deveria ao menos pensar em sua tia. O senhor da casa não quer nem ouvi-lo, tem uma bolsa de gelo sobre a cabeça e diz para o rábula procurá-lo depois, trancando-se num quarto. O escritor se aproxima do mal humorado causídico e pergunta porque tanta exasperação. O homem das leis explica que Ennyo é muito rico e, sem descendentes, deveria deixar um testamento (ou algo parecido), mas ele nem quer ouvir falar do assunto. O hóspede retruca que seu anfitrião é um homem saudável e relativamente jovem. O advogado resmunga que já são quase x anos (dez? dezessete?), está chegando a Noite Vermelha, ele nem se importa, sempre passou incólume, mas ele é um dos últimos. Alex quer saber mais, mas o advogado vai saindo e entrando em seu carro, dizendo que já, já, ele vai ter uma bela demonstração do que ela seja e que vai ver se fala com Agatha para que ela convença o sobrinho. O visitante bate na porta de Ennyo, querendo indagar sobre isto, mas ninguém atende.
Alex vai até a biblioteca local. Pede à bibliotecária (fora de quadro, nem vemos seu rosto) os jornais de x anos atrás, 2x anos atrás, assim por diante, em busca de um ciclo, dos dias em torno da data em que se está na história. A bibliotecária comenta que ele é o segundo nesta semana a pedir estes jornais. Corta para Alex folheando os exemplares antigos. Lê sobre o assassinato de uma criança. Corta para uma criança caminhando como se em uma procissão, carregando uma vela. Ele lê sobre o assassinato de um senhor. Corta para um senhor grave, carregando uma vela em uma procissão. Ele lê sobre o afogamento de alguém e corta para o rosto de alguém na procissão, assim por diante, até ele ler sobre o assassinato de uma velhinha com sua própria agulha de crochê e corta para o rosto da velha que vimos na primeira cena do filme carregando uma vela, numa procissão pelas ruas estranhamente vazias da cidade. O homem calado acende um cigarro em segundo plano, perto da janela. Em primeiro plano, na cama, estão as costas nuas de uma mulher adormecida. O homem olha pela janela e vê a procissão. A procissão se aproxima de sua janela. A líder da procissão é uma adolescente. De louros cabelos cacheados. Joga o xale sobre os ombros e o encara. É claro que é a moça que conversou com Alex. O homem olha para a cama. Ela está vazia. Ele olha de novo para a procissão, as velas paradas. Vê os cabelos louros entrarem no prédio. Ele, assustado, pega uma camisa, joga sobre o corpo tentando abotoá-la e pega a maçaneta, mas a maçaneta se transforma numa mão feminina. O homem congela de terror. O resto do corpo da moça atravessa a porta fantasmagoricamente e encara o homem, que recua, até que ela o puxa fortemente para perto de si mesma. O homem diz, "Me desenganaram". A moça somente acede. "Leucemia. Sangue ruim". A moça acede novamente. "É sempre o sangue, não? Todo o sangue culpado". A moça o olha até compassivamente e o leva através da porta.
Atrás deles está o corpo dele, morto, com um ricto de terrível agonia.
Na biblioteca, Alex encontra o mais antigo assassinato relacionado a estas datas. O da rica herdeira. Lê a matéria que fala sobre o casamento na igreja da falésia. Sobre como a loura, última descendente da família fundadora da cidade foi encontrada morta. Ele vê uma ilustração mostrando os noivos casando. A moça é muito parecida com a jovem com quem ele conversou na véspera. Ele corre o dedo até a data do jornal, mil oitocentos e tanto. Na próxima cena, ele está no caramanchão. Vê a data do quadro. É a mesma do jornal. E a moça é indubitavelmente a mesma. Não há mais dúvidas. Uma sombra se projeta sobre o abaixado Alex pesquisando o quadro. É Ennyo. E quer saber porque o escritor está obcecado pelo quadro. Alex quer que o amigo explique quem é ela, mas Ennyo fica furioso. Os dois discutem. Ennyo diz que ela foi a primeira esposa de um antepassado dele. Alex pergunta se foi o antepassado quem a matou, o anfitrião desconhecia que o escritor apurara a história. O hóspede pergunta se o marido dela a matou mesmo na noite de núpcias. Ennyo diz que nada nunca foi provado. Alex pergunta se é culpa ou maldição que o prende à cidade. Ennyo diz que é sobrevivência e que ele está enganado, muito enganado sobre a mulher do retrato. Alex pergunta por quê, mas Ennyo já está de saída, diz que precisa ver sua tia e que se Alex continuar querendo saber mais sobre a moça do retrato, vai acabar descobrindo no próprio sangue porque ela é perigosa.
O escritor vai procurar o advogado e o inquire sobre a história. O causídico tenta se esquivar, mas Alex o cerca e pressiona e consegue que ele conte a história da noite vermelha. A moça loura era a única filha do último varão da família fundadora da cidade, um homem conservador e duro. Mas, apesar de toda a vigilância, sua filha se apaixonou pelo capataz de suas terras. Ele fez de tudo para impedir, inclusive terríveis surras, mas tudo que conseguiu foi apenas que ela mantivesse a virgindade, continuou encontrando-o. Numa das discussões que pai e filha tiveram sobre o assunto, ela o enfrentou e ele passou mal, morrendo de apoplexia ou ataque, ou febre cerebral. Ela tinha apenas dezessete anos e, para evitar problemas legais, juntou com amigos de família, forjou um documento dizendo que o capataz era herdeiro do pai dela, sendo um primo distante da família e marcou seu casamento com o homem pelo qual era apaixonada. Só que na sua noite de núpcias ela foi assassinada, antes mesmo de conseguir consumar sua paixão. Tudo indicava que o capataz e os amigos de família planejaram tudo e a mataram para ficarem com seus bens. Inclusive falou-se que o capataz seria filho natural do pai da moça e por isso queria mantê-la afastada dele. De qualquer forma, a imensa fortuna da família dividiu-se e a cidade, sem sua força orientadora, iniciou sua decadência econômica, enquanto vários de seus ricos habitantes dedicavam-se ao hedonismo.
Porém, ao que tudo indica, em seu último suspiro, a moça disse que se vingaria. Que traída por seu grande e obssessivo amor, voltaria sempre. Que canalizaria a força de sua desiludida paixão e de seu negado desejo contra os que a atraiçoaram. Até que todo o sangue culpado fosse derramado. Todo o sangue culpado. Por isso que a cada certo número de anos (pode ser aleatoriamente dez anos ou dezessete, para refletir o ciclo de vida da menina), uma influência fantasmagórica começava a se sentir na cidade, culminando na noite de aniversário do casamento, quando o fantasma da moça ganhava um corpo, um corpo sólido e material e saía fisicamente assassinando todos os descendentes dos envolvidos em sua morte. E ela voltaria e cometeria os assassinatos até que todo o sangue culpado fosse derramado.
O advogado conta a história e fala a a Alex do sujeito encontrado morto nesta manhã. Diz que é um primo distante de Ennyo e que provavelmente foi a influência funérea do fantasma da moça começando a ganhar corpo que o matou. Alex ouve tudo, não sabe se acredita ou não. O rábula o leva até a porta, ao fim de um longo corredor, com várias janelas. As janelas são ilhas de luz cinzenta e nublada no grande corredor e suas cortinas balançam com o vento. Está um dia muito frio. O advogado vem desde a porta ao fundo, depois de se despedir do escritor até o primeiro plano lentamente, fechando cada janela, até que não ouvimos mais o barulho uivante do vento. Ele passa pela câmera, andou tanto, está tão perto que está em close, olha significativamente para o lado e se vai.
A mansão está vazia. A porta se abre. Agatha entra, procurando por seu sobrinho, mas não há ninguém. Ela o procura na biblioteca, no segundo andar, e encontra um velho álbum de fotos aberto. Há o daguerreótipo de um senhor com cara de duro e soturno, de vastos bigodes, ao lado de uma moça de louros cabelos cacheados. A tia ouve alguma coisa. Procura pela fonte do ruído, em vão. Em segundo plano, sai da biblioteca. Em primeiro plano, está o daguerreótipo.
Só que nele, não está mais o retrato da moça...
A tia caminha pelo segundo andar da mansão. Está tudo escuro. As únicas fontes de luz são as janelas baças, mostrando a nublada luz do crepúsculo frio. Agatha percebe uma silhueta se movendo rapidamente contra esses pontos de luz. Em pouco tempo, a silhueta está girando em torno dela, como um leão em torno da vítima. Quando Agatha pergunta quem está ali, a silhueta explica rapidamente. Finalmente, a loura sai das sombras e aparece na luz. Agatha se assusta. A loura, sem som, parece explodir e sua essência se espalhar por toda a casa. Há um momento de silêncio. Então uma janela bate. Depois, uma porta. A mesa treme. Agatha fica desesperadamente apavorada e corre pelo corredor.
O chão e/ou o apoio do corredor cede. Agatha rola pela escada ou cai do segundo para o primeiro andar. Seu crânio bate primeiro, abre-se e seu sangue se espalha pelo chão.
O sangue culpado.
A moça loura olha de cima para o cadáver.
A porta se abre.
Ennyo, chegando, vê o corpo de sua tia.
Música sobe. Closes de rostos de Alex, advogado e Ennyo. Um caixão baixa à sepultura. Uma mão serve um copo de conhaque em frente a uma lareira. No cemitério, a câmera se abre mostrando o padre fazendo os últimos ritos e o caixão da tia baixando à sepultura, observado somente pelo advogado e por Alex. Na mansão, Ennyo se serve de conhaque, com o olhar calmo e furioso, afundado numa opressora poltrona. No momento em que a primeira pá de terra é jogada sobre o caixão, uma janela bate. Outras batem. Em pouco tempo, a casa inteira está batendo, portas e janelas, mas Ennyo permanece impassível, durante o longo tempo em que a câmera se afasta lentamente de sua poltrona.
Corta para Alex num bar, bebendo. Ele está abatidissimo. Finalmente, parece tomar uma decisão e sai. Vai à mansão. Ennyo lhe antede. Alex pergunta por que ele não foi ao enterro da tia. Ennyo diz que não quis. E que é melhor que o escritor vá embora. Alex pergunta se é por causa do fantasma. Ennyo responde que é porque ele, Ennyo, não o quer mais ali. Ele é tão perigoso quanto ela. Ele tranca-se e não atende mais ao amigo.
Alex, resignado, arruma suas coisas. Antes de sair, caminha até o caramanchão e o quadro. Está anoitecendo. Mas lá está a moça, perguntando se ele vai mesmo embora. Alex tenta abraçá-la, mas ela foge. Conta-lhe que é um fantasma. Intangível. Não conhece o gosto do abraço, do calor humano. Que quando tem um corpo, é somente para matar. Fala de sua maldição, de sua história, que Alex não sabe metade do que ela sofreu. Os dois conversam e ela termina contando que já teve que matar crianças, recém-nascidos, velhos que viveram em paz a vida toda, nada disso mais faz sentido. Ela começa a soluçar. E começa a chover. Muito fortemente. Uma lágrima corre pelo rosto dela e se mistura aos primeiros pingos de chuva que a atingem. Alex estica o dedo e pega a lágrima e a prova docemente. A moça está sólida. Sua intangibilidade acabou mais cedo do que ela esperava. Os dois se beijam ao som de I'll do my crying in the rain e a câmera se afasta.
Sugerindo que alguém os observa pela janela.
Os dois correm até a mansão e se amam, enquanto a música ainda não acabou.
O galo canta. Amanhece. Os dois estão dormindo nus. A porta se abre. É Ennyo, que vê a cena, tranca a porta e sai. Alex não acordou, mas a moça sim e, nua, vai até a cozinha e procura por uma faca. Na porta, Ennyo aparece com o facão e pergunta se é por isso que ela está procurando. Se ela pode amar outros, ele diz, ela pode morrer também. Ela foge. Ennyo a persegue declamando poesias de amor, declarações e insultos. Alex acorda e tenta deter o amigo, mas é facilmente posto de lado. A perseguição continua. A moça tenta emboscar Ennyo, mas dá errado e acaba que ela está no quarto onde finalmente perdeu a virgindade, nua, desarmada e jogada ao chão, à mercê do excêntrico dono da mansão. Quando parece que é o fim, a janela se quebra e Alex entra por ela, tentando detê-lo, mas apanha muito e também é jogado ao chão, enquanto Ennyo avança rapida e furiosamente em sua direção, pronto a esfaqueá-lo. No momento decisivo, Alex agarra um grande caco de vidro no chão e levanta o braço. Ennyo, que corria descontroladamente, se transfixa no vidro, que penetra seu abdomem. Ele cai segurando o vidro e morre. Alex pega o lençol da cama para cobrir a nudez da moça loura. Ela pega o lençol mas não se cobre, só sorri e diz ser bobagem, nascemos assim. E diz que se vai. Sua maldição finalmente acabara. Ela abre o lençol, mostra a mancha de sangue de sua virgindade perdida e diz que finalmente todo o sangue culpado fora derramado. E pede um último beijo. Alex e ela se beijam sofrega e apaixonadamente, num abraço apertado e luxurioso. Ela se vai. Pede a ele que viva bastante. Close nele concordando. A câmera abre e mostra ele sozinho outra vez. Ele caminha perto do corpo de Ennyo, pela mansão vazia, atravessa os jardins e vai embora rumo ao Sol, que finalmente aparece vencendo as nuvens.
novembro 15, 2008
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