Já que este mês saiu uma crônica minha na página LOGO, no jornal O GLOBO e como recordar é viver, minha primeira colaboração para a ilustre seção do diário, um texto sobre pirataria digital. Clique na imagem para ler o texto depois da edição ou leia-o abaixo, como originalmente enviado à redação. Saiu em setembro de 2007.
Não, não vi TROPA DE ELITE. Não por motivos éticos, afinal sempre poderia racionalizar que cinema no Brasil é feito às custas de dinheiro público e todo mundo já recebeu quando as fitas chegam - ou não! - nos cinemas, mas porque, desde que investi uma grana preta numa tevê widescreen, dou preferência a DVDs com ótima imagem. Nem sempre é possível. FACA NA ÁGUA e PLANETA PROIBIDO, por exemplo, tive que baixar, já que ninguém ameaçou até agora lançá-los por aqui. Também não aguentei esperar o longa dos Simpsons no cinema. Descobri que Bukowski não só é ótimo romancista, mas poeta ainda melhor. Não curto muito, mas tenho amigos que assistem a toda a temporada de sua série favorita antes de estrear por aqui. E MP3, então, nem vale a pena mencionar. Ainda não tenho um iPod, mas com certeza já o teria enchido com todos os CDs queimados com músicas guardados em estantes periclitantes lá em casa.
É que sou viciado em arte. Coisa de criação. Muitos pais ficam desgostosos quando vêem que o filho se dá melhor com livros do que com uma bola - e olha que tento até hoje! - mas os meus não tomaram nenhuma providência e logo eu estava num caminho sem volta - frequentando sebos, lendo gibis nos jornaleiros e gravando fitas K7 de discos de amigos. Meu presente de formatura foi um video-cassete e devo ter sido um dos 5 viventes que aprendeu a programar o temível aparelho sem evoluírem até seres de pura energia.
Mas ainda assim o mundo digital me pegou completamente desprevenido. A mim, às gravadoras, editoras e cinemíferas. Foi como o surgimento da pólvora, você não precisava mais enfiar uma espada na barriga de alguém, olho no olho, se sujando todo de sangue. Tudo passou a ser rápido, limpo e à distância, bastando apontar, disparar e esperar. Eu podia estar assaltando ou traficando para sustentar meu vício, mas estou apenas infringindo direitos autorais. Uma invenção recente. Coisa da revolução industrial. Segundo o saudoso João Bethencourt, as peças de Shakespeare são reconstruções de cabeça. Publicar o texto dos espetáculos significava que alguém poderia montá-los sem pagar um tostão. Teatros rivais contratavam sujeitos com boa memória para assistir às encenações e pô-las no papel. Graças a esses piratas hoje o Harold Bloom pode dizer que o velho Bill inventou a humanidade.
E o velho Bill tinha que tomar precauções mesmo, porque vivia dos ingressos. Parcamente. Artista rico só foi aparecer quando os irmãos Lumiére começaram a contar a verdade a 24 quadros por segundo e Edison girou um cilindro sob uma agulha. Até então ninguém seguia carreira artística por grana. Segundo os GÊNIOS DA PINTURA e VIDAS CÉLEBRES que eu lia quando moleque, esse povo morria tudo de tuberculose, era incompreendido pelos contemporâneos, tinha paixões não correspondidas e infelicidade geral. Raramente conseguiam uns trocados para uma existência decente e ainda assim tinham problemas familiares, com o álcool, com as autoridades...
Mas tudo isso mudou quando o cinema e o disco multiplicaram exponencialmente o público. Tudo bem, já tinha Gutenberg e a imprensa, mas quanta gente alfabetizada e com dinheiro para uma biblioteca existia antes da Segunda Revolução Industrial? Com essas novas tecnologias surgiram os astros - ricos, bonitos e famosos - e, quando Elvis rebolou aqueles quadris, foi a vez do superstar. É esse estilo milionário de vida de artista que está em risco com a pirataria digital. Ou não. Na verdade, nós não os idolatramos pelas suas obras. Ou pelo seu talento. A cultura pop, a grande ameaçada, não vive disso. Vive da atitude.
Muita gente era melhor do que Elvis, mas foi ele que virou o ícone. O mesmo de Marilyn. Ou muitos outros. Sua beleza, seu talento, mais do que sua obra, nos fizeram dar-lhes procuração para viver e simbolizar a vida que não podemos ou não conseguimos ter. Antes da cultura de massa, os valores eram outros, e artistas encarnavam profetas com uma visão coerente e desdém pelos valores materialistas da sociedade. Daí a tuberculose. O público mudou, os valores mudaram e o desdém agora é só pela sociedade, mas não pelo materialismo. Nós QUEREMOS que eles sejam ricos para projetarmos nossos sonhos, como já quisemos que fossem mártires miseráveis. E assim, que remédio, eles são ricos. Os conceitos de "Top Model" e "Big Brother" já pularam até a etapa da obra artística. Tudo bem, continua sendo uma vida difícil, cheia de álcool, drogas e relacionamentos vazios, mas pelo menos também cheia de grana, mansões e limusines.
Quanto à arte, vai ter sempre gente produzindo. Alguns anos atrás, eu explicava a um amigo que teria que ficar dias e dias enfunado em casa escrevendo uma peça sobre um assunto que não gostava, num estilo que não gostava, me matando para ganhar 500 reais. "Eu jamais escreveria uma peça por 500 reais", disse ele. "É porque você não é escritor", retruquei. Se você precisa saber por que escreve, não é escritor, já dizia um André desses, não me lembro se o Gide ou Malraux.
Mas tudo isso é racionalização. Pirataria é crime. É que nem gente que consome drogas e fica fazendo elocubrações para justificar-se. Não adianta. É contra a lei e ainda financia o crime organizado. Mais cedo ou mais tarde, vai ser que nem a Lei Seca, vai ter que liberar geral. Mas até lá é ilegal. O resto é desobediência civil. Essas coisas de artistas e profetas. Mas chega. Acabei de baixar MÓRBIDA CURIOSIDADE e pela primeira vez vou ver em seu aspecto original widescreen.
Espero que dê onda.
abril 25, 2010
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