novembro 07, 2010

As Crianças de Hoje

O chato era quando a gente rodava o prédio todo e não achava ninguém que tivesse bola. O jeito então era sentar em cima dos carros na garagem e ficar conversando e ouvindo a música que vinha de uma das janelas:

- Eu sou um moço velho... que já viveu muito... que já amou muito... que já sofreu tudo...

Devia vir lá do terceiro ou quarto andar, nunca deu muito pra saber direito, ricocheteava no bloco de trás e aí é que confundia tudo, lá tinha eco à beça. A gente até gostava de ficar berrando em frente ao segundo bloco, mas quase sempre aparecia o porteiro pra dar esporro. Menos o seu Geraldo, que era legal, mas também pedia pra gente parar.

A cara dela eu fiquei conhecendo um dia de Cosme e Damião, quando ela apareceu com uma sacola do Mar & Terra distribuindo os saquinhos pra garotada, foi aquele empurra-empurra, então um colega meu depois falou que achava que era ela quem ficava o dia inteiro ouvindo música lá no apartamento dela e ficava no terceiro andar.

Nessa época, depois do jantar, a gente ficava conversando sobre naves espaciais e robôs e outros assuntos. Discos-voadores, todo mundo já tinha visto pelo menos um, em casa ou na casa dos parentes no interior do Rio ou de Minas e eu via ela à beça, tava sempre saindo com um garotão, os dois entravam no fusca dele e iam embora.

Depois veio as aulas e depois do jantar a gente ficava em casa vendo televisão e fazendo o dever de casa, que, por mais que a gente se esforçasse, acabava sempre por fazer na véspera do dia da entrega, à noite. Só no começo das aulas é que dava pra ser mais organizado.

A gente então gostava já tanto de conversar quanto de jogar bola, até mesmo por hábito, porque sempre descia o síndico com problema na perna do segundo bloco quando a gente começava, reclamando do barulho, dizendo que a gente ia estragar os carros e que já éramos muito grandes praquilo, íamos machucar as crianças menores ou o maluco mais velho que a gente do quinto andar, argumentos que ele não parava de usar nem quando a gente falava que quando passava alguém o jogo parava, ficava todo mundo paralisado (se bem que havia um pessoal que aproveitava a hora de passagem de gente ou carro pra se aproximar da bola), pois é, nessa época ela parou de sair na noitinha, a gente não via nem o sujeito e nem o fusca, apenas ouvíamos a música dela o tempo inteiro, você foi o maior dos meus casos, de todos os abraços o que eu nunca esqueci. Inclusive a aparelhagem de som dela dela deve ter mudado na época, parecia ter trocado sua eletrola por um PHILIPS estéreo, devia ser um daqueles que tinha uma luz verde retangular para avisar que a vitrola tava ligada e que tinha duas caixas pequenininhas de madeira. Eu tive uma dessas, tinha aquele cabeçote prateado e preto e aquele braço de uma espécie de plástico. Tinha até aqueles garfos pra você botar vinte discos empilhados e ia caindo um por um, era automático.

Depois a gente acabou se desinteressando de jogar bola e, pensando bem, como é que a gente conseguia jogar dentro daquela garagem, cheia de quebra-molas, com o gol sendo marcado pela altura do goleiro, usando a parede pra tabelar e enganar o marcador, tendo que ficar a três passos do jogador quando a bola caía embaixo do carro? Foi nessa época que eu fiquei sabendo o nome dela, Neyla, foi um amigo meu que contou, a gente tava conversando encostados num pára-lama de fusca, a música tava tocando, quando você me deixou, meu bem, me disse pra ser feliz e passar bem, com Agnaldo Timóteo e tudo. Aí ele virou pra mim e disse, puxa, a Neyla não pára de ouvir essa música, eu falei hum e não dei atenção, nesses grupinhos a gente sempre sabia quem é que toda noite subia lá no terceiro andar e só aparecia em casa horas depois e além disso ele gostava de ficar se gabando dessas coisas, falando dessas coisas e eu não gostava de dar papo pra ele, ele era um metido a besta desgraçado.

Foi na época em que ela escutava muito Minha História, aquela do minha mãe se entregou a esse homem perdidamente, com a Ângela Maria cantando uma música em volta, que fiquei sabendo o número do apartamento dela. Ela passou por mim na saída da portaria e falou "você não era aquele menino que ficava aqui embaixo jogando bola, puxa, como você está grande, já tem namorada?" e eu pensei na Bia e disse "tenho" e ela falou dos discos dela, das músicas dela que ela tinha no apartamento, eu tinha que ver. Naquela noite, antes do jantar deu pra ouvir "Se acaso me quiseres sou dessas mulheres que só dizem sim" lá de casa. Ela tinha mesmo um monte de discos lá. Eu vi.

Depois ela se mudou. Engraçado. As crianças de hoje não gostam de jogar bola aqui no prédio. Graças a Deus também não têm a mania de ficar gritando pra ver se tem eco.

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