Este poema lindíssimo já foi publicado aqui há alguns anos, mas Carlos Pena Filho é estranhamente negligenciado quando se ensina poesia brasileira, então vale a pena reprisar. Quanto mais gente conhecer, melhor:
A Solidão e Sua Porta
Quando mais nada resistir que valha A pena de viver e a dor de amar E quando nada mais interessar (Nem o torpor do sono que se espalha)
Quando pelo desuso da navalha A barba livremente caminhar E até Deus em silêncio se afastar Deixando-te sozinho na batalha
A arquitetar na sombra a despedida Deste mundo que te foi contraditório Lembra-te que afinal te resta a vida
Com tudo que é insolvente e provisório E de que ainda tens uma saída Entrar no acaso e amar o transitório
Putz, entrou o Rei e a diferença dele pra elas é como se tivesse chegado a seleção brasileira (das boas) depois de um Vasco x Fortaleza (jogadores esforçados, algumas boas jogadas, mas não dá pra comparar).
"É perda de tempo regravar Roberto Carlos. A versão do Rei vai ser melhor mesmo..." (Zé José)
Uma merda o show até agora. Só gostei da Hebe (com uma interpretação de quem entendeu o Rei e a única a escolher uma música obscura) e, sacaneiem-me, mas gostei da megahiperoverultraexagerada rainha de cabaré da Marília Pêra.
Claro que implorei E Deus se importou? Tanto quanto se um pássaro batesse o pezinho em pleno ar e gritasse "me dá" Minha razão - vida - Sem Ti não a teria Talvez fosse mais piedoso Deixar-me encerrada na sepultura do átomo Feliz e um nada, alegre e entorpecida Do que este lúcido sofrer (Tradução minha do original abaixo)
Of course I prayed--and did God care? He cared as much as on the air A bird had stamped her foot And cried "Give me!" My Reason -- Life -- I had not had -- but for Yourself -- 'Twere better Charity To leave me in the Atom's Tomb -- Merry, and Nought, and gay, and numb -- Than this smart Misery.
Fui ao jogo do Vasco na quarta - tudo bem, só empatou, mas faz parte. A festa da arquibancada estava muito bonita, tanto que filmei e fotografei muito com meu celular.
Até alguns anos atrás, fotografar com o celular só gerava pequenas fotinhos que serviam apenas para serem vistas na minúscula tela do aparelho, mas com o Nokia 95, de 5 megabytes de resolução, bom sensor e minilente de responsa assinada pela Zeiss, a única coisa que faz falta é um zoom ótico. Desde meu Nokia anterior, um 6265, que esse combo câmera-telefone já gera imagens bastante superiores à minha primeira megapixel, uma Kodak que comprei no final de 2000, com resolução de 1152 x 964 pontos e que deixava as pessoas boquiabertas com a qualidade - e que custou mil reais d'antanho.
E agora eu carrego no bolso, junto com meu telefone portátil, uma câmera com resolução de imagem VGA - 640 x 480, o quádruplo da minha primeira VHS que me foi tão fiel (e caríssima em 1986). É claro que a compressão digital atrapalha um pouco, mas ainda assim o celular filma bem, fácil, e com os preços de cartões de memória desabando, por muito tempo.
Daí me ocorreu: todo mundo anda preocupado com a indústria fonográfica e os jornais se estabacando por causa da Internet, mas quanto tempo vocês acham que vai levar pra gente poder transmitir em tempo real o que está filmando no celular, com qualidade bastante satisfatória? A banda larga está cada vez mais barata, rápida e onipresente. Os aparelhos de telefone de hoje já podem subir prum blogue imediatamente o que você fotografou, algo inimaginável não faz muito tempo.
E aí? Sem direitos de transmissão de tevê pra bancar clubes de futebol ou fórmula-1, como é que vai ser a negociação de esportes? E cobertura jornalística? Transmissões de shows? Já há um bom tempo se fala que televisão pela Internet tem um futuro promissor, mas pouco ainda se fez. Mas se já sabemos que reality shows dão o maior ibope e em breve todo mundo vai ter um estúdio portátil no bolso, o paradigma das emissoras de tevê vai ter que mudar tanto quanto o resto da mídia, que anda sofrendo pra burro desde que a Internet democratizou arte para todos.
E ainda me lembro de uma hippie nos anos 90 no meu curso de teatro escrevendo como a Internet era nociva às pessoas realmente sensíveis... suspiro.
Alguém já disse que Gene Roddenberry só tinha uma ideia pra roteiro: a tripulação da Enterprise encontrava Deus. E, levando-se em conta que “Onde homem nenhum jamais esteve”, sobre um tripulante da Enterprise com poderes quase onipotentes que o corrompem por não estar preparado, foi o terceiro episódio, logo em seguida a “Charlie X”, sobre um garoto na Enterprise com poderes quase onipotentes que o corrompem por não estar preparado, até que a frase não está muito longe da verdade.
Na verdade, “Onde homem nenhum jamais esteve” foi o segundo piloto de “Jornada nas Estrelas”. O primeiro, “The Cage”, com Jeffrey Hunter, foi considerado bom, mas cerebral demais e, fundamental, difícil de preparar semanalmente. Roddenberry então ganhou uma segunda chance pra adicionar mais ação e diminuir na produção até satisfazer os executivos da tevê. Que preferiram estrear a série com o monstro que sugava sal, mas depois puseram em seguida dois episódios sobre semideuses fazendo a tripulação da Entrerprise de gato e sapato, com ambas as situações sendo resolvidas por outros semideuses que apareciam convenientemente, num verdadeiro semideus ex machina. Logo no princípio do seriado mostrar nossos heróis tão passivos e ineficazes não era uma boa isca pra audiência. Sendo o piloto, “Onde homem nenhum jamais esteve” foi filmado um ano antes de começar mesmo o seriado. Os uniformes são diferentes, o médico de bordo é outro, Sulu usa camiza azul e parece também ser médico, e Spock não tem o jeitão condescendente a que estamos acostumados. É muito mais sério e frio, o que por osmose empresta um ar mais adulto ao capitão Kirk. E o clima geral na Enterprise, apesar da diversidade cultural e sexual também é bem mais preconceituoso.
Gary Lockwood interpreta um tripulante da Enterprise que recebe estranhos poderes quando a nave atravessa um daqueles convenientes e misteriosos campos de energia que a Frota Estelar parece estar sempre encontrando. Quatro anos depois ele seria assassinado por Hal em “2001 – Uma Odisséia no Espaço, mostrando que espaçonaves encontrando personificações divinas não eram a área dele. Mas, curiosamente, além de ganhar córneas prateadas (tomadas emprestadas das crianças paranormais de “Village of the Damned”), a primeira manifestação de sua meta-humanidade é começar a ler muito e rápido, o que deixa Spock seriamente preocupado. Parece que só vulcanos podem lidar com o racionalismo extremo.
E com tanto conhecimento adquirido, o sujeito acaba começando a ler pensamento e exibir dons telecinéticos, invulnerabilidade... enfim, o pacote semidivino completo. “Jornada nas Estrelas” ainda não decolara rumo anos anos 60 e mostrava o mesmo medo da ciência que toda ficção científica dos anos 50 até então, o preconceito contra a racionalidade que criara a bomba atômica e deixara o mundo à beira de um ataque de nervos. Se tivesse prosseguido com essa extremamente explícita postura anti-intelectual, certamente a série não teria se tornado o sucesso pantagruélico que se tornou entre os nerds.
Não se pode negar, entretanto, o poder de certas cenas, como o Gary Lockwood tentando atravessar o campo de força de sua cela, só para ser atingido, voltar a ter olhos normais e lentamente eles se tornarem novamente prateados – e a cada tentativa, ficar enfraquecido menos tempo. Ajuda muito ser o piloto e ter uma direção mais caprichada. A pintura do planeta é mais cuidada e a iluminação do cenário rochoso picareta lhe confere um aspecto bem melhor do que os mundos alienígenas das temporadas regulares, filmados em sobras de estúdio e subúrbios de Los Angeles.
Outra tripulante recebe os poderes estranhos – uma mulher gostosa e psicóloga (Sally Kellerman, a “Lábios Quentes” do “Mash” do cinema), ou seja duplamente perigosa. Essa intelectual provavelmente já não mais virgem ainda por cima se torna parceira do outro semideus, que junto com sua humanidade abandonara também sua namoradinha do começo do episódio. O restante vivente racional da espaçonave, o sr. Spock, sem uma gota do humor, da condescendência ou mesmo da distante compreensão dos sentimentos humanos a que estamos acostumados, passa o tempo todo sugerindo matar o amigo de adolescência do capitão Kirk antes que ele se torne poderoso demais.
Mas como a psicóloga ganhou seus poderes depois do Gary Lockwood e seu mestrado é em ciências humanas, ela ainda tem um pingo de humanidade e, vendo o que eles se tornaram, enfrenta seu parceiro até que ele perde quase todos os seus dons semidivinos e a partir daí Kirk assume. O bom e velho homem de ação americano, o bronco incapaz de entender como Espinoza é facinho, resolve tudo de uma maneira bastante significativa: com uma pedrada. Neandertal mesmo.
O episódio funciona graças à direção e à mecânica do roteiro que controla bem o suspense e a ação, mas se Gene Roddenberry não tivesse se cercado de escritores com pensamento mais provocador e levado a série para outra direção, “Jornada nas Estrelas” poderia se tornar apenas mais uma preconceituosa série com milicos e malvados alienígenas comunistas, como “Viagem ao Fundo do Mar” e congêneres. Felizmente Kirk & Cia. traçaram um curso para o desconhecido e mapearam o caminho que muitas séries de tevê acabariam seguindo.
Digno de nota:
- Contagem de corpos: três - o engenheiro de bordo, o que é ótimo, pois seria substituído pelo sr. Scott, e os dois tripulantes que receberam superpoderes ao atravessarem o “misterioso campo de energia”. - As mulheres todas usam calças; - Pela segunda vez seguida, Kirk vence Spock no xadrez tridimensional, mostrando a superioridade dos humanistas sobre os racionalistas puros. - A cova que Gary Lockwood cava com a força da mente pro capitão Kirk tem a inscrição “James R. Kirk”. Todas as outras menções da série seriam “James T. Kirk” e, no desenho animado e no filme “A Terra Desconhecida”, seria esclarecido que o “T” é de “Tiberius”.
A Seguir: Hitler, Shakespeare e Enterprise - o brilhante "A Consciência do Rei"
“O Estranho Charlie” é sobre um jovem que, depois que seus pais morreram explorando outro planeta, foi criado desde pequeno pela misteriosa e arcana espécie nativa, o que o levou a desenvolver grandes poderes mentais, mas o deixou despreparado para o convívio com humanos. Resgatado no final da adolescência e tentando aprender mais sobre a cultura terráquea, interessa-se afetiva e sexualmente pela primeira (e bela) mulher que vê e sua alteridade o leva a sérios conflitos com as autoridades. Peraí, da última vez que conferi, essa história se chamava “Estranho numa terra estranha” e era um livro do Robert A. Heinlein.
O livro ainda estava na crista da onda em 1966, quando este show foi produzido, e se tornaria um clássico, adotado como referência pela contracultura. Mas o empréstimo de trama na verdade apenas serviu para dar uma origem aos poderes do Charlie do título, outra apropriação de um clássico, mas desta vez da própria televisão – ele é a versão púbere do garotinho onipotente de “It´s a good life”, de “Além da Imaginação”, um episódio tão marcante que seria referenciado desde “Os Simpsons” no primeiro especial de dia das bruxas, a Johnny Bravo. O molequinho, diga-se de passagem, era interpretado por Bill Mumy, cinco anos antes de se imortalizar como o Will Robinson de “Perdidos no espaço”.
Em “Além da imaginação”, o garotinho tem seis anos e já nasceu onipotente. O criador de “Jornada nas Estrelas”, Gene Roddenberry, autor do argumento de “O Estranho Charlie”, pegou emprestado do clássico de Heinlein uma explicação para os poderes do fedelho e a idéia de dar alguns anos e muitos hormônios a mais ao personagem, encontrado por um cargueiro de pesquisa e deixado na Enterprise para ser levado a algum posto avançado no caminho. Como um Tarzan espacial, o rapazola, sozinho desde os 3 anos, aprendeu a falar, ler e escrever assistindo às fitas dos computadores. O povo da NCC 1701 tem dúvidas sobre como ele sobreviveu sem suprimentos e se ele viu algum sinal dos lendários tausianos, os supostos poderosíssimos antigos habitantes do planeta, mas a partir do momento em que Charlie bota os olhos na ordenança gostosa, ele não tem cabeça para discutir qualquer outro assunto. E com todas as suas ampliadas capacidades mentais, ele vai ensinar a Kirk e sua tripulação o verdadeiro significado da palavra “aborrecente”.
A metáfora é óbvia. Eram os anos 60 e estava todo o mundo maluquinho com a juventude. Em 1966 a sociedade americana estava passando por um monte de percalços com os “baby boomers”, que estavam chegando à adolescência exatamente nessa época e com valores que não eram aqueles de seus pais. Delinquência juvenil, revolução sexual, rock'n'roll, verão do amor, para os adultos ianques de então aquela garotada parecia tão alienígena quanto Charlie. E criados no império da cultura de massa – cinema, televisão, rádio, gibi –, cercados de fartura sem precedentes na história, eles certamente deviam parecer ao povo com mais de 30 tão onipotentes quanto o estranho numa terra estranha. Mas Charlie não sabe que grandes poderes trazem grandes responsabilidades e eles acabam só lhe trazendo infelicidade. Imaturo, ele se apega ao capitão Kirk e à ordenança, óbvias figuras paterna e materna. O moleque aceita de Kirk muito mais esporro do que de outros que desintegra. E quando a ordenança tenta lhe apresentar uma gostosinha adolescente, Charlie a dispensa rudemente, já que sua fixação em Janice é obviamente edipiana. Assumindo sua posição de pai postiço, Kirk tenta corrigir a personalidade do fedelho ensinando-o a lutar. Na visão positivista de Roddenberry, a luta não é uma maneira de derrotar um adversário, mas de autoajuda, com seu enfoque em disciplina e análise estratégica. No entanto Charlie não tem paciência para começar pelos fundamentos de defesa – é o ataque que ele quer aprender logo, a parte violenta da coisa. Obviamente leva uma queda do experiente capitão e um tripulante que ri é desintegrado. A reação de Kirk não é de medo, mas de firme cobrança. Não é à toa que ele é capitão. Tenham essa atitude ao criar seus filhos em vez de demonstrar medo e em duzentos anos estaremos levando a utopia a toda uma galáxia!
Ao final, quando tudo parece perdido, os tausianos aparecem pra reclamar o garoto de volta. De uma maneira que hoje é clichê, Roddenberry deixa claro o que entende como raiz dos problemas: o moleque implora que não o deixem ir, já que seus mentores são incapazes de ternura e carinho – eles nem ao menos “podem ser tocados”, grita o aterrorizado adolescente. Kirk se apieda e tenta interceder por ele, mas é caso perdido. Pra época, explicar à classe média que aquela juventude mimada e degenerada decorria do hábito de largar as crianças sem atenção na mão da televisão (“assistindo às fitas”) era bastante ousado.
O programa é maneiro, mas um tanto parado. Roddenberry pretendia fazer dele o primeiro a ser exibido, o que é estranho, já que não é uma história que apresente a tripulação e a ação é bastante passiva, com o povo da nave no final sendo salvo por um deus ex machina, deixando uma certa insatisfação no espectador.
A direção e a fotografia são melhores do que “Inimigo interior”, e pela primeira vez no seriado aparecem os seus afamados closes bem iluminados e com bastante filtro difusor pra embelezar as mulé-gostosa (bem como para disfarçar as rugas dos oficiais da ponte). Mas o ponto alto do episódio é Robert Walker Jr. como Charlie. O filho de Robert Walker e Jennifer Jones consegue fazer um perfeito adolescente alienígena (alienado?), ameaçador e infantil, lembrando obviamente a lendária atuação do pai como o milionário entediado e gay de “Pacto Sinistro”.
Digno de nota:
- Contagem de corpos: 20 tripulantes da nave de carga Antares. Aparentemente todo mundo desintegrado ou metamorfoseado na Enterprise foi restaurado pelos alienígenas no final. - Erro de continuidade grosseiro: Kirk entra no elevador com Charlie e quando eles saem, nosso capitão de astronave predileto está com uma camisa diferente. Na versão remasterizada devem ter apagado com computador. - Mulheres de bege aparecem também de microssaia neste episódio, estragando minha bela teoria de que só elas usariam calças. - Ninguém se dá ao trabalho de rearrumar as peças pra começar outra partida de xadrez tridimensional. Como são as regras desse jogo? - “D. C. Fontana”, que roteirizou o argumento de Roddenberry, era na verdade sua secretária, que assinava com as iniciais pra não dar pinta de ser mulher, que não eram levadas muito a sério pelos executivos de tevê da época. Pense nisso da próxima vez que achar que as tripulantes da Enterprise não têm cargos tão importantes assim.
A seguir: O segundo piloto (o que colou) virou o terceiro episódio da série com o nome "Onde Homem Nenhum Jamais Esteve" (frase que foi depois aproveitada você sabe onde).
O jornalista, escritor e filósofo Sílvio Rabaça viu Sinédoque e adorou. Por isso marcou aqui em casa pra gente rever "Quero Ser John Malkovich". Presentes eu, ele, o PHD Roger Filósofo, o jornalista Luiz Bello e a produtora cultural Marissa Gorberg. Embora nem de longe tão organizado quanto o debate de Robocop, eis aí o que rolou aqui ontem de madrugada:
Poucos são os que conseguem chegar à velhice com saúde e lucidez. Com medo do que possa lhe acontecer, a maioria prefere evitar ao máximo a entrada na última fase da vida. Por conta disso, fazem a fortuna da escória da medicina e indústria de cosméticos. Farmacêuticos, cirurgiões plásticos e todo tipo de charlatões vendem caro cirurgias estéticas, tinturas, pomadas, cremes e injeções na testa. Tudo para alimentar a vaidade e futilidade de quem pouco fez para merecer a prata dos cabelos. Houve até uma geração que cantou preferir morrer jovem a ter de ficar velha.
As mulheres de Mudd, que dão título a um memorável episódio da série clássica de Jornada nas Estrelas, são dessas que fazem tudo para manter a beleza de sua juventude, até mesmo se submeterem ao tráfico humano para conseguirem o que querem. Harcourt Fenton Mudd (Roger C. Carmel) é um notório mentiroso, contrabandista e rufião, mas muito falastrão e popular – tanto que foi reaproveitado em outros episódios como Eu, Mudd (1967) e A Paixão de Mudd (1973), este na série de animação; seria eleito fácil presidente do Brasil. Sua nave, um cargueiro clandestino, é interceptada pela Enterprise que para alcançá-la gasta todo suprimento de energia, o que obrigará uma parada no posto planetário mais próximo para reabastecer.
Depois de teletransportado, Mudd traz consigo uma carga valiosa: três beldades – uma morena e duas loiras – prometidas a seus clientes em um quadrante remoto do universo. Logo se descobre que ele tem uma vasta ficha de golpes aplicados pelas galáxias afora. Contudo, mesmo na iminência de ser levado ao tribunal da Federação, não perde a oportunidade de fazer um bom negócio.
Sua “mercadoria” exerce um efeito lascivo sobre a tripulação masculina, menos no Sr. Spock (Leonard Nimoy), que acha o “sex appeal” das mulheres e a reação de seus colegas, tudo muito curioso. Embora metade da tripulação da Enterprise seja feminina – provavelmente escolhida a dedo pelo capitão Kirk (William Shatner) -, sempre com suas belas curvas e pernas em evidência, neste episódio, apenas a insubstituível oficial de comunicação Uhura (Nichelle Nichols) é obrigada a cumprir suas funções diante das câmaras. Convenientemente, as demais moças estão ocupadas longe da tela.
Em As Mulheres de Mudd, toda a sensualidade latente de Jornada nas Estrelas está à flor da pele. Em primeiro plano, surgem as formas das mulheres que Mudd pensa em transformar em riqueza, vendendo-as para os solitários e milionários mineiros de dilítio – cristal sem os quais os motores da nave não funcionam – do planeta aonde a Enterprise vai “encher o tanque”.
Porém, como nada é tão simples quanto aparenta, as moças, que não são tão moças assim, necessitam de um ingrediente a mais em seus estojos de maquiagem para permanecerem tão belas e atraentes. Mudd consegue mantê-las em plena forma, graças às “lendárias drogas de Vênus”, umas cápsulas vermelhas, no formato de coração, que impedem a velhice de cobrir seus corpos. Quando Ben Childress (Gene Dynarsky), um dos mineiros, descobre o artifício, a transação cai por terra. Apenas um ardil, engendrado pelo capitão, fará com que as mulheres consigam se casar e a Enterprise arrumar o dilítio que tanto precisa. Ao ingerir um placebo, a autoconfiança de Eve (Karen Steele, na vida real namorada do diretor Budd Boetticher), uma das loiras, fará com que ela consiga restaurar sua verdadeira beleza e ser aceita em casamento por Ben.
Assim, do tráfico de mulheres à dependência de drogas medicinais, em pouco mais de 45 minutos Jornada nas Estrelas discute temas tão antigos e universais, quanto delicados, que causam polêmicas acaloradas ainda hoje. Mas isso não é tudo, no final também há espaço para se levantar uma última questão sobre qual seria a mulher ideal para casar. Por certo, as soluções propostas pelo roteirista Stephen Kandel estão abertas às críticas de feministas em seus evidentes pontos sexistas e conservadores. Não obstante, As Mulheres de Mudd, como tantos outros episódios, guarda aquelas características dos clássicos que renovam suas leituras ao longo do tempo.
A Seguir: Um adolescente esquisito (que redundância) põe a NCC 1701 em polvorosa em "O Estranho Charlie".
O chato era quando a gente rodava o prédio todo e não achava ninguém que tivesse bola. O jeito então era sentar em cima dos carros na garagem e ficar conversando e ouvindo a música que vinha de uma das janelas:
- Eu sou um moço velho... que já viveu muito... que já amou muito... que já sofreu tudo...
Devia vir lá do terceiro ou quarto andar, nunca deu muito pra saber direito, ricocheteava no bloco de trás e aí é que confundia tudo, lá tinha eco à beça. A gente até gostava de ficar berrando em frente ao segundo bloco, mas quase sempre aparecia o porteiro pra dar esporro. Menos o seu Geraldo, que era legal, mas também pedia pra gente parar.
A cara dela eu fiquei conhecendo um dia de Cosme e Damião, quando ela apareceu com uma sacola do Mar & Terra distribuindo os saquinhos pra garotada, foi aquele empurra-empurra, então um colega meu depois falou que achava que era ela quem ficava o dia inteiro ouvindo música lá no apartamento dela e ficava no terceiro andar.
Nessa época, depois do jantar, a gente ficava conversando sobre naves espaciais e robôs e outros assuntos. Discos-voadores, todo mundo já tinha visto pelo menos um, em casa ou na casa dos parentes no interior do Rio ou de Minas e eu via ela à beça, tava sempre saindo com um garotão, os dois entravam no fusca dele e iam embora.
Depois veio as aulas e depois do jantar a gente ficava em casa vendo televisão e fazendo o dever de casa, que, por mais que a gente se esforçasse, acabava sempre por fazer na véspera do dia da entrega, à noite. Só no começo das aulas é que dava pra ser mais organizado.
A gente então gostava já tanto de conversar quanto de jogar bola, até mesmo por hábito, porque sempre descia o síndico com problema na perna do segundo bloco quando a gente começava, reclamando do barulho, dizendo que a gente ia estragar os carros e que já éramos muito grandes praquilo, íamos machucar as crianças menores ou o maluco mais velho que a gente do quinto andar, argumentos que ele não parava de usar nem quando a gente falava que quando passava alguém o jogo parava, ficava todo mundo paralisado (se bem que havia um pessoal que aproveitava a hora de passagem de gente ou carro pra se aproximar da bola), pois é, nessa época ela parou de sair na noitinha, a gente não via nem o sujeito e nem o fusca, apenas ouvíamos a música dela o tempo inteiro, você foi o maior dos meus casos, de todos os abraços o que eu nunca esqueci. Inclusive a aparelhagem de som dela dela deve ter mudado na época, parecia ter trocado sua eletrola por um PHILIPS estéreo, devia ser um daqueles que tinha uma luz verde retangular para avisar que a vitrola tava ligada e que tinha duas caixas pequenininhas de madeira. Eu tive uma dessas, tinha aquele cabeçote prateado e preto e aquele braço de uma espécie de plástico. Tinha até aqueles garfos pra você botar vinte discos empilhados e ia caindo um por um, era automático.
Depois a gente acabou se desinteressando de jogar bola e, pensando bem, como é que a gente conseguia jogar dentro daquela garagem, cheia de quebra-molas, com o gol sendo marcado pela altura do goleiro, usando a parede pra tabelar e enganar o marcador, tendo que ficar a três passos do jogador quando a bola caía embaixo do carro? Foi nessa época que eu fiquei sabendo o nome dela, Neyla, foi um amigo meu que contou, a gente tava conversando encostados num pára-lama de fusca, a música tava tocando, quando você me deixou, meu bem, me disse pra ser feliz e passar bem, com Agnaldo Timóteo e tudo. Aí ele virou pra mim e disse, puxa, a Neyla não pára de ouvir essa música, eu falei hum e não dei atenção, nesses grupinhos a gente sempre sabia quem é que toda noite subia lá no terceiro andar e só aparecia em casa horas depois e além disso ele gostava de ficar se gabando dessas coisas, falando dessas coisas e eu não gostava de dar papo pra ele, ele era um metido a besta desgraçado.
Foi na época em que ela escutava muito Minha História, aquela do minha mãe se entregou a esse homem perdidamente, com a Ângela Maria cantando uma música em volta, que fiquei sabendo o número do apartamento dela. Ela passou por mim na saída da portaria e falou "você não era aquele menino que ficava aqui embaixo jogando bola, puxa, como você está grande, já tem namorada?" e eu pensei na Bia e disse "tenho" e ela falou dos discos dela, das músicas dela que ela tinha no apartamento, eu tinha que ver. Naquela noite, antes do jantar deu pra ouvir "Se acaso me quiseres sou dessas mulheres que só dizem sim" lá de casa. Ela tinha mesmo um monte de discos lá. Eu vi.
Depois ela se mudou. Engraçado. As crianças de hoje não gostam de jogar bola aqui no prédio. Graças a Deus também não têm a mania de ficar gritando pra ver se tem eco.
“Equilíbrio de Terror” é Jornada nas Estrelas em sua melhor forma, com todas as engrenagens girando perfeitamente e a maquinaria rodando suave toda a potência adiante, disparando em todas as câmaras. Um dos episódios favoritos de qualquer um que já tenha tido algum contato com a Enterprise, funciona perfeitamente em praticamente todos os níveis e dá à televisão uma de suas melhores horas de aventura.
Nossa espaçonave favorita chega à fronteira com o Império Romulano e descobre que todos os postos avançados da Frota Estelar foram obliterados, com exceção de um, sob ataque naquele exato momento. O atacante indetectável dispara uma arma capaz de atravessar defletores e blindagem como se estes não existissem e reassume seu manto de invisibilidade sob o olhar atônito de Kirk e sua tripulação. E é contra este inimigo invencível que a Enterprise deve se bater antes que ele volte à Zona Neutra e fique fora do alcance da Federação, que não pode violar a área sob pena de iniciar uma guerra.
“Equilíbrio de Terror” é um bom e velho filme de submarino, com a Enterprise no papel do destróier. Gene Roddenberry pediu a Paul Schneider que fizesse uma adaptação do ótimo “A Raposa do Mar” e recebeu até mais do que pretendia, com a mecânica do episódio refletindo as idéias positivistas do criador da série com eficiência. Reunido com seus tripulantes, Kirk debate se vale a pena engajar-se com o misterioso adversário – será que há uma mínima chance de vitória? O capitão, apesar de impulsivo, é um grande comandante e está aberto a sugestões. E, pouco a pouco, juntando-se as peças trazidas pelos competentes profissionais presentes, vai se montando um quadro melhor e um plano de combate. Um conceito e tanto para quem normalmente espera desse tipo de premissa 40 minutos de mocinhos fugindo sempre por um triz e de repente alguém aparecendo com uma idéia brilhante vinda do nada (raios, posso até visualizar Wesley Crusher ou Data e Geordi na Nova Geração dizendo “Eles devem desviar a luz polarizando os íons do casco! Se criarmos um inversor de prótons podemos induzir uma despolarização e deixá-los visíveis!”).
A nave inimiga só pode manter sua invisibilidade gastando muita energia, o que impede que tenha bons escudos ou propulsão warp. Seu dispositivo de camuflagem tem mão dupla – ela também não pode ver seus inimigos. Sua arma é realmente irresistível, mas tem alcance limitado. Ela precisa ficar visível para disparar. E quando Uhura capta uma transmissão do misterioso atacante, o que revela sua posição, começa um jogo de gato e rato entre Kirk e seu êmulo romulano. Êmulo mesmo, porque ele é tão astuto e moralmente sólido quanto o capitão da Frota Estelar.
A primeira reação de um trekker vendo esse comandante romulano, inclusive, é “Epa! Esse aí é o Sarek!” E é mesmo. O ator Mark Lenard, que mais tarde interpretaria o pai de Spock tanto na série clássica quanto na Nova Geração, aqui debuta no universo trekkie comandando sua espaçonave com extrema competência, solenidade e dúvidas quanto ao pensamento belicista de seu imperador. Talvez ele tenha sido reaproveitado como vulcano mais tarde porque a produção já tinha prontas as orelhas pontudas protéticas – e se você acha que isso é piada, saiba que os outros romulanos usam capacetes justamente para poupar esta despesa. Mas eles combinam perfeitamente com a cenografia do interior da nave romulana. Seu design apertado, com os tripulantes todos cercando o computador principal (e, consequentemente, impedindo uma boa visão dele e poupando à produção ter que arrumar mais um cenário cheio de gráficos psicodélicos e luzinhas piscantes), embora criado para poupar despesas, é também uma inversão da ponte da Enterprise, fisica e ideologicamente.
No cruzador da Frota Estelar há um líder no centro, mas seus comandados desempenham suas funções de costas para ele, olhando para fora e não para dentro, com bastante espaço para cada um, num design igual ao da távola redonda arturiana. Na nave romulana, o regime totalitário é belamente sugerido pelo cenário reduzido e, portanto, opressor, com a iluminação em meia luz tornando-o ainda mais sinistro, enquanto os tripulantes apertados em torno do controle central, voltados para dentro, ignorando o exterior, imitam visualmente o próprio fáscio, o machado romano adotado pelos fascistas, em que muitos frágeis feixes unidos em volta da lâmina criam uma arma de guerra, simbolizando os cidadãos subservientes unidos para sustentar o líder militar. Só quem fica longe do console principal é o capitão. Mas esse capitão está à parte exatamente porque ele não concorda com o pensamento militarista romulano. Com um amigo comenta que, bem sucedida a missão, demonstrando a vulnerabilidade da Federação, seu presente a seu povo será mais uma guerra. Provavelmente por desnecessário, o roteiro não lhe dá um nome, mas assim como o design da nave, tal fato apenas adiciona ao sucesso do episódio, tornando o futuro Sarek a encarnação de um homem como todos nós à mercê dos sonhos militaristas megalomaníacos de George W. Bush líderes que atacam outros povos apenas por não terem armas tão boas. Assim, a democrática Enterprise, com seu comandante atento anotando as contribuições individuais de seus oficiais cumprindo com competência suas atribuições, dispostos em círculo para mostrar sua igual importância, parte para a batalha com o inimigo que de início parecia invencível. Neste ambiente não há lugar para o racismo demonstrado pelo sr. Stiles depois que se descobre que os romulanos são iguais aos vulcanos (o que propicia um dos melhores dentre os muitos ótimos diálogos do episódio, com o sr. Stiles perguntando “por que não damos o código romulano para o sr. Spock decifrar?” e Kirk retruca, “acredito que o senhor esteja se referindo às habilidades de decriptação do sr. Spock, não, sr. Stiles?”).
A nave romulana, apesar de seu brilhante comandante, não tem nenhuma chance. Depois de muito improviso tático de parte a parte, ela tem a oportunidade para fugir incólume de volta para casa, mas o pensamento militar fascista exige a destruição da Enterprise – sob os protestos do futuro Sarek - e acaba condenando toda a missão. A metáfora se completa e em apenas 50 minutos “Jornada nas Estrelas”, ao contrário dos romulanos, conseguiu um verdadeiro triunfo, com um episódio que funciona em todos os níveis – como aventura, como pensamento filosófico e como comentário de época. Um episódio para figurar em qualquer antologia de grandes momentos da história da tevê.
Digno de nota:
- Contagem de corpos: todas as equipes de oito postos avançados, toda a tripulação de uma nave romulana e um oficial da Enterprise. - Os torpedos de fótons ainda não haviam sido criados pelos roteiristas, daí os phasers se comportarem neste episódio exatamente como eles, sendo disparados em pulsos (como em “Guerra nas Estrelas” ou no novo longa), ao invés dos tradicionais raios, e explodindo perto da nave inimiga (como cargas de profundidade). - Além do discurso de Kirk a todos os credos no casamento, a noiva mais tarde aparece ajoelhada, o que sugere que ela é católica, na época pouco tolerados na tevê. - O grande escritor e também roteirista de Star Trek, Harlan Ellison, deixou de falar com Paul Schneider, quando este lhe contou que havia adaptado “A Raposa do Mar” para a tevê. - Depois do leme, Uhura assume a navegação da Enterprise, mostrando de vez que é bem mais do que a telefonista.
A seguir: O blogueiro convidado Roger Filósofo analisa "As Mulheres de Mudd".
O desejo de possuir mecanismos com formas humanas que nos substituíssem e ajudassem nas tarefas rotineiras, em casa e no trabalho, é tão antigo quanto a Ilíada (séc. VIII a.C.) de Homero, onde se narra que Hefesto – ou Vulcano – operava suas fornalhas com o auxílio de belas moças feitas de ouro. Muito tempo depois, o filósofo francês Julien O. de la Mettrie, radicalizando a concepção mecanicista cartesiana, já defendia audaciosamente que o próprio ser humano em nada seria diferente de uma máquina. E notem que ele tinha em mente apenas os precários autômatos que seu conterrâneo e contemporâneo Jacques de Vaucanson construíra na primeira metade do século XVII – bugigangas como patos que batiam asas, flautistas etc. Uma definição melhor de semelhança entre máquinas e humanos só surgiria em 1950, quando o gênio de Alan M. Turing propôs o Jogo da Imitação, como um teste para avaliá-la. Pelo Teste de Turing, seria considerada inteligente a máquina que conseguisse responder perguntas, da mesma maneira que humanos fariam, sem ser descoberta por estes.
Em algum momento no início do século passado, no entanto, a ideia de fabricar inteligência artificial passou a ser vista como uma ameaça aos seres de carne e osso. Operários de inspiração ludita sabotavam máquinas que, mesmo sem terem a inteligência mais rudimentar, competiam com eles pelos escassos postos de trabalho. A peça R.U.R. (1920), do dramaturgo tcheco Karel Capek, pode ter sido crucial para que os temores contra os robôs fossem consolidados – foi Capek que cunhou nesse texto a palavra robô e previu uma revolta das máquinas contra a exploração humana de seus trabalhos. Metrópolis (1927), de Fritz Lang, também deu sua contribuição para aumentar o pavor.
Muito barulho por nada. Os primeiros computadores dignos do nome só começaram a ser fabricados depois de 1946. Armários gigantescos que tinham a proeza de fazerem cálculos que hoje qualquer calculadora de bolso faz. Terminada a primeira década do tão esperado século XXI, robôs inteligentes ainda estão muito longe de serem projetados, sequer construídos.
Mesmo assim, a série original de Jornada nas Estrelas, pelo menos em seu famoso episódio “E as Meninas de que são Feitas?” – primeiro a ser reprisado, em 1966 -, permaneceria cética quanto a uma convivência pacífica entre andróides e humanos, em um futuro mais distante. Os pesadelos vividos em R.U.R e que mais tarde tornariam clássico o definitivo O Caçador de Andróides (1982), de Ridley Scott, foram compartilhados pelo excelente roteiro de Robert A. Bloch (autor de Psicose, 1959). Está tudo lá: o cientista maluco que fabrica robôs para lhe fazerem companhia; um casal ameaçador de andróides que ganha sentimentos humanos e a eterna dúvida sobre o que nos faz humanos. Aparência e força são logo descartadas. Os andróides podem ser mais belos e fortes do que nós. Inteligência também fica de fora, pois um programa de computador pode fazer contas mais rápido e jogar xadrez melhor do que qualquer humano. Restam apenas nossas “fraquezas”. Máquinas não sentem fome, nem o prazer de saciar suas vontades. Entretanto, se por algum desvio de sua programação ou um efeito secundário lhes fosse gerado algum sentimento subjetivo, então, mais nada sobraria para marcar a diferença. Com uma década de antecedência, “E as Meninas...” expõe esse problema com a perturbadora nitidez que se encontra em O Caçador de Andróides.
Só mesmo um preconceito muito forte em favor de seres sencientes restringiria o direito de tais maquinas existirem. Como o robô Andrew Martin, em O Homem Bicentenário (1976), de Isaac Asimov, a andróide Andrea (Sherry Jackson) e a enlouquecida cópia do Dr. Roger Korby (Michael Strong), de “E as Meninas...”, têm todo direito de continuarem vivendo como são, apesar de decidirem por experimentar a consciência da morte. Talvez a única condição que nos faz verdadeiramente humanos.
Em tempo, à primeira vista, esse medo de robô desapareceu na nova geração de Jornada nas Estrelas, pois o andróide Data (Brent Spiner) pôde assumir sem traumas parte das funções que antes eram exercidas pelo Sr. Spock (Leonard Nimoy).
A Seguir: Uma cerebral batalha naval em pleno espaço, o antológico "Equilíbrio do Terror".
Quando o mar tiver devorado os navios E os pináculos e torres tiverem voltado às montanhas E todas as cidades se confundirem com as planícies E a beleza do bronze E a força do aço Se dispersarem sobre continentes silentes Assim como a areia do deserto é dispersa Minhas cinzas junto às suas para sempre
Quando não mais a loucura, a sabedoria Ou mesmo o fogo Porque não mais o homem Quando o mundo morto girando lentamente vagar e decair através do vazio Minha luz junto à tua Na luz das luzes para sempre!
(Tradução apressada minha; abaixo, o original em inglês)
When the sea has devoured the ships, And the spires and the towers Have gone back to the hills. And all the cities Are one with the plains again. And the beauty of bronze, And the strength of steel Are blown over silent continents, As the desert sand is blown-- My dust with yours forever.
When folly and wisdom are no more, And fire is no more, Because man is no more; When the dead world slowly spinning Drifts and falls through the void-- My light with yours In the Light of Lights forever!
“Tempo de nudez” foi mais uma inovação da turma do Gene Roddenberry. Naquela época não existia essa coisa de séries “sérias” tirarem um dia de folga pra curtir com a cara dos personagens. Embora até tenha uma corrida contra o tempo pra evitar que a Enterprise caia no planeta que está orbitando, o episódio é basicamente uma gozação com o capitão Kirk e seus comandados, que têm um péssimo dia quando uma molécula de água modificada deixa todo mundo a bordo cheio de cachaça nas idéias.
A coisa toda começa até num tom grave, com uma patrulha da Enterprise descendo a um posto avançado e encontrando todos mortos de maneira irracional: alguns se suicidaram, outros se deixaram congelar, outros foram assassinados, uma maluquice completa. O roteiro culpa a tal H2O mutante pela coisa, com um efeito depressor sobre o centro das inibições no cérebro, similar ao álcool, o que tornaria a descontaminação ineficaz, mas mesmo assim faz um tripulante que desceu ao planeta tirar sua luva de proteção para poder coçar o nariz e deixar uma gota de sangue cair em sua mão – a ideia não era de que esse pessoal aí eram profissionalíssimos, a nata da nata?
Esse sujeito tem uma crise de consciência digna de um romance anticolonialista de Conrad (“os mortos naquele planeta... estamos nos metendo em assuntos que não nos dizem respeito”) e perde a vontade de viver, morrendo por um ferimento leve na mesa de operações do McCoy, sem antes contaminar um monte de gente. Um deles é o tenente Riley, que se apossa do setor de engenharia, se intitula o novo capitão e começa a dar ordens como “mulheres, a partir de agora, usem os cabelos soltos pelos ombros e usem menos maquiagem... mulheres não devem parecer maquiadas”. E a cantar, cantar sem parar a mesma música insuportável. Bruce Hyde fez seu personagem tão engraçado que ele ganhou uma raríssima segunda aparição de destaque na série, no interessantíssimo “A Consciência do Rei”. Olhando retrospectivamente, é difícil não rir quando o hoje ativista gay George Takei aparece nos corredores só de calça justa, com uma espada na mão e sussurrando a seu companheiro de leme coisas como “encontre-me mais tarde no ginásio, meu jovem, para um pouco de ação”. A série podia ser ousadamente multicultural para sua época, mas dá ao japa uma paixão pela esgrima ocidental e pelos três mosqueteiros - catanás e samurais ainda não haviam penetrado (epa! Ato falho!) o subconsciente coletivo ocidental e muito menos o dos escritores de tevê americanos. Pelo menos fica estabelecido de vez que o sr. Sulu é um espírito alegre (não resisti), com fumaças de romântico aventureiro.
A cachaçada geral, aliás, serve muito bem pra explorar mais as personalidades da tripulação. Kirk, num diálogo mal escrito e mal interpretado, lamenta tudo que jogou fora pelo amor ao comando e à sua nave – o único bom momento é quando arriscando um lance maluco pra salvá-la, ele diz pra ela “eu nunca vou perdê-la... nunca...”. Azar da ordenança, que Kirk diz não poder comer por ser seu superior. Mais uma vez aparece em destaque os coxões de Janice Rand. Ao contrário de Uhura, o personagem nunca conseguiu deixar de ser a secretária gostosa e acabaria desaparecendo da série junto com a problemática atriz.
Já Spock desfaz de uma vez por todas um equívoco geral de que os vulcanos não têm emoções. Eles as têm, mas como ele diz, numa crise de choro, em seu planeta sentimentos não são considerados de bom tom e imagina como deve sofrer sua amada mãe humana, tão passional, entre essa turma. Spock, aliás, é contaminado pela enfermeira Chapel, que revela sua paixão pelo imediato da Enterprise. Quem estranhar humanas com ares românticos pra cima do alienígena frio e lógico vai ficar surpreso ao saber que Leonard Nimoy virou uma espécie de símbolo sexual à época. Segundo Uhura, ele é o gostosão da nave, não o Kirk, e não, não estou falando da Uhura do novo longa: revejam “O Estranho Charlie” e prestem atenção na letra da música que ela canta pro Spock (1).
Uhura, aliás, nesse episódio, ao contrário da ordenança, começa a deixar de ser a telefonista da nave e a parecer uma oficial da Frota Estelar, finalmente preenchendo pelo menos parte do papel que Roddenberry queria para ela. Além de substituir o doidão Sulu no leme, ainda paga um esporro no capitão Kirk quando ele dá um de seus frequentes pitis com os amigos. Infelizmente o Gene não conseguiria fazer os executivos da rede engolirem-na comandando a Enterprise na ausência do trio capitão-imediato-engenheiro e sua posição como quarta em comando permaneceria para sempre teórica.
Com tantas revelações de caráter, “Tempo de nudez” foi considerado perfeito pra ser encaixado logo no início da série e familiarizar os espectadores com a tripulação, apesar de sua trama pouco cósmica e aventureira, gambito que seria repetido vinte anos depois na Nova Geração, que enfrentou a mesma molécula de água doidona no começo de seus voos. Nos dois casos o povo que estava começando a acompanhar as aventuras espaciais das Enterprise ficou decepcionado. O dos anos 80 porque chegou à conclusão que nunca nenhuma ação ia acontecer sob a égide de Picard e e dos anos 60 porque depois de um monstro que sugava sal, viu dois semideuses caçoarem de Kirk e seus comandados até outros semideuses pegarem eles.
Pra quem via anúncios de naves espaciais gigantescas, alienígenas superfortes disparando phasers e toda aquela tecnologia, devia ser tremendamente desapontador ver que aquilo tudo era só cenário pra outros seres brilharem. A galera da Enterprise passa dois episódios só olhando e também quase põe tudo a perder aqui por uma falta básica de profissionalismo de um tripulante. O crítico Glenn Erickson explica que na época não se ligou na série justamente porque todos os primeiros episódios eram sobre controle mental e semideuses. Não foi à toa que Jornada nas Estrelas brigou com os índices de audiência durante toda sua existência. Além de conceitos estranhos, roteiros diferentes e problemas de produção envolvendo tantos cenários e objetos de cena, o programa ainda evitava dar a seu público algumas emoções baratas para dourar a nutritiva pílula.
Felizmente tudo melhoraria com o sensacional episódio seguinte, Inimigo Interior, já resenhado aqui e aqui, pelo blogueiro convidado. A partir desse ponto Jornada nas Estrelas daria um pouco mais de satisfação ao público torcendo por seus heróis, mas talvez um pouco tarde demais para antecipar o pantagruélico sucesso que gozaria em reprises nos anos 70.
Digno de nota:
- Contagem de corpos: a equipe de cientistas no planeta agonizante e um tripulante. Eddie Paskey, que fazia o papel de um dos oficiais da ponte, tem aqui seu primeiro diálogo. De ponta em ponta ele apareceria na série em 57 episódios, mais do que Sulu ou Chekov. Somente em “A Consciência do Rei” seu nome, tenente Leslie, seria dito.
- No final, a solução pra salvar a nave a joga três dias no passado. O planejamento original os levaria 300 anos atrás, no século XX, fazendo deste a primeira parte de um episódio em dois capítulos – o segundo seria o que acabou se tornando “O amanhã é ontem”. Um dos motivos foi que Roddenberry odiava episódios desmembrados. Para o enroladíssimo “Deep Space 9” ser feito, esperaram o sujeito morrer, já que ele era expressamente contra histórias em continuação.
Amanhã: "E as Meninas, de Que São Feitas", pelo blogueiro convidado Roger Filósofo, e seus toques sobre teoria cognitiva.
(1) Na Enteprise tem alguém que parece Satanás/ com os ouvidos e os olhos do diabo/ que poderiam arrancar seu coração/ Primeiro seus olhos hipnotizam/ depois seu toque a derruba/ e seu amor alienígena a possui/ e poderia arrancar seu coração/ é por isso que mulheres astronautas/ esperam aterrorizadas/ pra descobrir o que ele fará/ oh moças atronautas, cuidado!/ Sabemos o que ele fará
Quando comprei meu primeiro CD player que tocava cd de MP3, em 2001, ainda não existia banda larga - baixar música pela rede era tedioso e trabalhoso. Associei-me então a uma locadora de discos numa galeria na Voluntários e comecei a comprimir montes de artistas que mal conhecia. Entre eles, Simonal.
Meu pai adorava Simonal e Martinho da Vila. O primeiro show a que fui na vida foi do negão. Minha tia nos arrumou ingressos grátis. Guardo poucas lembranças - uma delas que foi na Princesa Isabel, no teatro homônimo (antigamente cantores davam shows em teatros); outra, da luz que seguia o cantor o tempo todo e de que meu pai me apontou na saída o Simonal saindo, "num conversível". Eu não sabia o que era conversível e nem me lembro de tê-lo visto, mas me lembro do meu pai me explicando o que era um carro que arria a capota - e aquele, ainda por cima, automaticamente!
O Cláudio Manoel agora está lançando um documentários sobre o Simonal. Não vi o filme, mas já vi entrevistas do Casseta explicando que o Wilson foi perseguido por ter recebido o epíteto de dedo-duro e ligado ao regime militar. Bem, pra fazer o longa, o Cláudio certamente devia ser fã do negão e fãs têm uma irritante mania em não entender como os mortais podem não apreciar as infindáveis qualidades de seu ídolo... e, trabalhando diariamento ao lado de Marcelo "cansei" Madureira, achar que as "patrulhas ideológicas" foram as culpadas pelo ocaso de seu objeto de admiração acaba sendo uma conclusão lógica.
O que teve de gente nos anos 70 e 80 creditando seu insucesso às "patrulhas ideológicas" não foi mole. Curiosamente, o sujeito mais perseguido intelectualmente, aquele que era o próprio símbolo-mor da alienação e da rendição à indústria cultural, virou essas décadas batendo récorde após récorde de vendagem e se tornando uma lenda viva. E ainda hoje Roberto Carlos é vítima de preconceito: João Máximo, alguns anos atrás, numa matéria justamente sobre Simonal, dizia que ele tinha sido substituído no gosto popular por "artistas menos talentosos, como Roberto Carlos".
Para quem, como eu, gosta de ouvir Wilson Simonal, mas não é seu fã incondicional, outros fatores ficam muito mais claros. Até porque a intelectualidade de esquerda dos anos 70 adoraria ter todo o poder que os fracassados daquela época lhe atribuíam. Simonal saiu de moda simplesmente porque seu estilo saiu de moda. A reportagem de hoje no Globo conta como ele estava falido em 1972 e mandou dar uma surra no seu contador, a quem acusava de roubo. Tudo bem que seu mau-caratismo pode ter criado um clima inamistoso no meio musical, mas essa época marca o fim de toda uma era da música brasileira. A começar pelos Festivais da Canção, que desapareceram por essa altura, 72, 73.
Ainda em 68, 69, não me lembro bem, Caetano levou uma vaia estrondosa por se fazer acompanhar de guitarras (tocadas pelos Mutantes) na apresentação de festival de É Proibido Proibir. Em 1972, 1973, todo mundo usava guitarra. Enquanto isso, ouvir um disco de Wilson Simonal era viajar até a época de Frank Sinatra produzido por Nelson Riddle. Uma big band ao fundo para acompanhar um puta cantor, é verdade, mas num esquema quase de crooner. Como ele não compunha e mantinha esse estilo anos 60 (início de anos 60), foi alienando seus compositores. Antônio Adolfo lhe escrevera Sá Marina, mas nos anos 70 estava trabalhando com arranjos mais "soul", como os do Trio Ternura. Caminho também enveredado, por exemplo, por cantores como Toni Tornado, citado na reportagem do Globo e no longa.
Como sambista, ele estava ficando para trás à velocidade da luz. Ouvir as então emergentes Clara Nunes e Beth Carvalho e comparar com ele era covardia. E elas lideravam justamente uma ressurreição do samba como música de sucesso. Mesmo os artistas menos queridos pela intelectualidade, como Originais do Samba e Benito di Paula, tinham uma sonoridade muito mais contemporânea. Ouçam a gravação dele de "Pata Pata", muito mais conservadora do que o original de Miriam Maakeba. Também é bizarro ouvir letras com humor um tanto grosseiro de duplo sentido com toda aquela elegância orquestral ao fundo.
Sem grandes compositores para lhe dar apoio, seu repertório perdeu em muito a qualidade. Lembro-me de um vinil do começo dos anos 70 que meu pai tinha do Simonal, em que usei uma das músicas num trabalho de colégio, (não me lembro do nome, mas era uma que tinha o estribilho "Credo em cruz Ave Maria É feitiço É mandinga É bruxaria Credo em Cruz Ave Maria") e que não tinha nenhuma canção de destaque. E tudo com big band ao fundo. Também não deve ter ajudado muito que ele mesmo chamasse seu estilo musical de "pilantragem". Ao fim do milagre econômico, às vésperas das eleições que o MDB levou de lavada, mostrando o início do descontentamento com a ditadura, o clima não estava para se ouvir sujeitos cantando como gostavam de levar vantagem em tudo e que o mundo era dos mais espertos (ei, isso soa muito neoliberal; será coincidência que ele tenha sofrido uma reavaliação nos últimos tempos?). Roberto Carlos, por exemplo, mudou sua sonoridade e nessa época, antes de aderir à trepada musicada, fazia tremendo sucesso com letras deprimidas. O Brasil, apesar de todo EU TE AMO MEU BRASIL tinha inegavelmente um clima meio triste na época (sem contar que o mundo podia acabar a qualquer momento envolto em chamas atômicas, quem não esteve lá não sabe o que era essa paranóia).
Simonal fazia um sucesso estrondoso e saiu de moda. Maria Alcina e Toni Tornado também. Martinho da Vila, outro que meu pai adorava, lançou dois discos que venderam feito água, CANTA CANTA MINHA GENTE e AQUARELA BRASILEIRA, e depois sumiu durante um bom tempo. Benito di Paula foi eleito o cantor mais popular do Brasil e não faço a menor idéia de por onde ele anda. Enquanto isso o mais patrulhado ideologicamente artista de todos os tempos, Roberto Carlos, não lança um disco de verdade há muito, muito tempo, mas é notícia o tempo todo, enquanto que todos os seus companheiros de Jovem Guarda foram moídos pela Roda da Fortuna. Cultura de massa é assim mesmo - impiedosa e imprevisível. E, como na citada carta do tarô, jamais perdoa aqueles que teimam em permanecer agarrados à sua circunferência, mesmo quando ela já saiu de cima e se encaminha para baixo. O lugar para se estar é o centro.
maio 14, 2009
Dançando muito a quantidade de álcool não fazia muito efeito. É um velho truque índio, que a maioria desconhece porque homens que bebem muito não costumam gostar de dançar. A Cláudia tentava me explicar que o que estavam tocando era nau catrineta, que o Zeca Baleiro tinha popularizado no país todo, mas eu quase não conseguia prestar atenção, era a primeira vez desde que ela tinha ido me buscar no aeroporto que saíamos sós. Sim, algumas amigas tinham vindo com ela, além da Inês, a irmã, mas não o namorado, e bastava isso, bastava ele não estar ali ao lado dela que o resto do mundo poderia estar ao nosso redor e ainda assim eu estaria sozinho com ela, a sobrinha do jovem, talentoso e falecido artista de mamulengos, a pesquisadora, a moça de 23 anos que me mostrara as fotos de seu ex-namorada e grande paixão da vida, seu distante e brilhante primo médico quarentão, ambos fantasiados prontos para sair para o carnaval, ela de dominatrix, ele de camisa caindo pregueada sobre a imensa barriga, calça indiferente e apenas uma máscara, ele com um ar perdido e ela de lado, seu rosto olhando agressivamente e dominador para a câmera, e a câmera não mente jamais, entrega tudo, é objetiva, fria e imparcial, não racionaliza, não tenta se auto-iludir: aquelas mulheres com personalidades tão esplendorosas que as fazem atraentes e desejáveis são reduzidas à sua mediana beleza; aquelas namoradas que julgamos erradamente nos amar aparecem com seus olhos vazios e inexpressivos; aquele coroa tão jovial e cheio de energia aparece em toda a glória de sua decadência de telômeros curtos e células não mais se replicando.
Assim como aparece o espírito abusado e apaixonante de Cláudia, morena de pele de café como sempre sonhei, cantora e microbióloga, tantos nomes em latim e conhecimentos arcanos na mente e tão pouca roupa sobre o corpo, a barriga exposta pela blusa curta mostrando a curva da cintura feita para encaixar no braço masculino, perfeita para encaixar no braço masculino, e a nau catrineta, a nau catrineta que se foda, que se foda a Cláudia, que eu foda a Cláudia, é o que penso, é o que me passa pela cabeça, a cientista gostosa, a versão feminina para os heróis dos filmes americanos de ficção científica dos anos 50, não tenho mais desculpa, não tenho mais nenhuma razão para adiar, não tenho mais como postergar a tentativa de um beijo, a tentativa de provar a saliva dela, mesmo que ela me afaste, mesmo que ela diga que é um absurdo, ela não vai dizer, é claro que não o fará, eu estou louco de pensar uma coisa dessas, mas e se ela o fizer, não terá sido a primeira vez, preciso pensar, preciso jogar uma água no rosto, só para ser um pouco mais eu mesmo, para ter um pouco mais de certeza.
Um louco acorrentado grita "Deixe-me sair, tolo, você não sabe o que está perdendo"
Mas eu nem levanto os olhos do jornal encostado no balcão do bar Para ver a monumental morena passando requebrando E nem noto nela os vestígios dos grilhões arrebentados
Este é um dos episódios favoritos de todo mundo. Tem o capitão Kirk dando porrada num superomem, a galera da Enterprise dando lição de moral e, principalmente, o vilão que ficaria irado no segundo longa da franquia, que muito trekker considera o melhor.
O povo da NCC 1701 encontra uma nave terráquea do século XX, antes da invenção do voo interestelar, e a resgata para encontrar 72 viventes em animação suspensa. Como todos sabem, 13 anos atrás, em 1996, estourou a III Guerra Mundial entre os seguidores de líderes geneticamente aperfeiçoados e ao fim das hostilidades alguns deles sumiram.
Se você não lembra disso tudo, precisa da ajuda de uma historiadora, como a que tem na Enterprise e é convocada pelo capitão Kirk pra, como ele mesmo diz, finalmente ter alguma coisa pra fazer. Como falta do que fazer é sempre um problema – a mente ociosa é o jardim do diabo – a moça passou o tempo fazendo pinturas de seus ídolos, Napoleão, Alexandre, César, e fantasiando com os homens másculos e viris de outros tempos que não o século XXIII. Daí, quando ela bota os olhos naquele exemplar eugênico dormindo na nave “Botany Bay”...
Kirk e amigos logo descobrem que o caboclo que eles acordaram é Khan Noonien Singh, um dos líderes eugênicos e o melhor deles. Bem intencionado, pacífico, trouxe prosperidade ao seu povo e lhe tirou a liberdade. Spock não compreende a admiração da galera da Enterprise por ele, mas eles lhe explicam que admirar não é necessariamente concordar, o que devia soar muito estranho aos ouvidos do povo que vivia a Guerra Fria, onde o inimigo era sempre um sujeito desprezível com hábitos estranhos e provavelmente vinha do espaço exterior, daí o sotaque russo.
Khan é culto, educado, tem uma figura perfeita e fica visivelmente feliz quando descobre que seus oponentes são melhores do que imaginava. Mas sua obsessão por controle absoluto o torna uma pessoa de difícil convívio, embora faça dele um tremendo amante para mulheres com tendências submissas, o que é justo o caso da historiadora, insatisfeita com a perfeição liberal e racional dos homens positivistas do século XXIII – parece que Kirk é uma exceção e o resto dos machos futuristas está mais para Scott, McCoy e, por que não dizer, Sulu.
O subtexto sexual de “Jornada nas Estrelas” dificilmente afloraria tão à superfície quanto neste episódio. Depois de conferir a historiadora – finalmente ela arrumou algo pra fazer - e ser desmascarado, Khan é confinado a seus aposentos e recebe a visita de sua fã e, numa cena intensamente perversa, leva-a aos poucos a implorar para ficar (e obviamente dar umazinha). A moça ajoelha clamando por ter o privilégio da companhia dele e por um momento eu e meus incrédulos companheiros assistindo tivemos a claríssima sensação de que ela iria partir para o boquete. Mas eles partem mesmo é pra dominar a nave.
Khan consegue tomar a Enterprise com facilidade, com todo o seu avantajado intelecto, mas quando ameaça matar o capitão Kirk, é demais até mesmo para os hormônios da historiadora, que liberta o comandante da astronave e está tudo pronto para a porrada final entre o campeão da democracia e o da autocracia. Adivinhem quem vence.
Ao final, Kirk não prende Khan, mas solta o tirano, seus seguidores dele e a historiadora num planeta que é um inferno, para que lá ele possa construir seu império. Final estranhíssimo, sugerindo que a autocracia é um passo necessário antes da democracia, que a democracia é um luxo de tempos de fartura pela qual devemos zelar e que o comodismo de quem esquece isso leva a uma perda de virilidade – o que fará nossas mulheres darem para selvagens amorenados de outras culturas.
Essa idéia final de que para civilizar o planeta que é um inferno faz-se necessário um sociopata com delírios de grandeza é extremamente semelhante à visão amarga do John Ford dos anos crepusculares (confira “Rastros de Ódio” na seção “Blogue sem Lei”). Mas se para as mulheres o povo da democracia que vinha depois, com suas idéias de cooperação e igualdade, era mais adequado para o casamento, os psicopatas eram perfeitos para a vida na horizontal.
A controvertida visão é muito bem vendida pelos diálogos, os melhores até agora no seriado, explorando muito bem a interação do trio Kirk-Spock-McCoy, parte fundamental do charme do programa. A esgrima verbal entre Khan e o capitão, bem como o povo da Enterprise exaltando as virtudes de um tirano, pra surpresa do Spock, são momentos muito bem redigidos, embora o ponto alto seja mesmo a sessão sadomasoquista na cabine de Ricardo Montalban. Uma inacreditavelmente acurada visão sexual sobre o comodismo do homem urbano logo no alvorecer da emancipação feminina, antecipando em muito a atual moda de dominação e submissão, com cada vez mais casais fãs de algemas, vendas e lingeries, tentando simular a atração animal de tempos menos civilizados.
Pena que alguns anos depois Khan perderia todas as suas nuances para se tornar apenas mais um vilão malvado, numa inegavelmente excelente atuação de Ricardo Montalban, em “Jornada nas Estrelas II – A Ira de Khan”, no começo da reciclagem da Guerra Fria que a era Reagan traria.
Digno de nota:
- Contagem de corpos: Zero. Os escritores continuam piedosos com o povo da Enterprise. - No meio da luta com o Ricardo Montalban, dá pra ver claramente que William Shatner foi substituído por um dublê mais alto, mais longilíneo, tinha cabelo e penteado diferentes, um rosto mais comprido e feições pouco parecidas com o Kirk.
Amanhã: A galera da Enterprise cheia de cachaça nas ideias em "Tempo de Nudez"
O conhecimento de si é fundamental para o equilíbrio das emoções e sentimentos. De posse desse conhecimento podemos avaliar melhor os interesses e evitar os equívocos que geram as ações consideradas más e tentar acertar nas coisas tidas como boas. No entanto, a concepção dualista de bem e mal que prevalece na maioria dos mitos e religiões induz as pessoas a acreditarem que influências externas são as causas da maldade humana. Uma visão mais atenta, porém, permite compreender que a “essência do bem ou do mal” não está em um objeto específico ou em um sentimento arraigado em nossa origem.
A visão de que o bem e o mal existem como um valor intrínseco de algo avançou por séculos através de crendices populares ou mesmo por teorias psicológicas consideradas modernas. Por vezes, as emoções mais fortes e o desejo pelo máximo de prazer eram concebidos como aspectos da psicologia humana que precisavam ser controlados, sendo as doenças psíquicas fruto do descontrole desses impulsos por parte da razão ou algum outro setor da mente encarregado de aplacá-los. Desse modo, a vontade de satisfazer os prazeres carnais, o poder absoluto e o gosto considerado pouco nobre eram tidos por coisas más a serem condenadas, enquanto o inverso disso – amor, solidariedade e refinamento – seria elogiável e considerado bom.
O episódio de Jornada nas Estrelas chamado O Inimigo Interior se presta à consideração de outras abordagens que permitem uma melhor compreensão do papel dessas emoções e sentimentos considerados maus, enquanto sugere uma nova maneira de encarar o assunto. O roteiro é simples. Um defeito no teletransporte provoca a inesperada e indesejável separação da personalidade dos seres teletransportados. Antes do problema ser detectado, no entanto, capitão James Tiberius Kirk (William Shatner) sobe à nave e tem seu “alter ego” cindido de seu lado “positivo”. Agora, solto pelo interior da Enterprise o “alter ego” passa a assediar violentamente sua bela ordenança Janice Rand (Grace Lee Whitney) e atacar todos que se põem em seu caminho. Ao mesmo tempo, o lado positivo do capitão aos poucos vai perdendo sua capacidade de comando. Enquanto o teletransporte não é consertado, uma equipe eviada para explorar um inóspido planeta sofre com o frio congelante que cai por lá ao anoitecer. Assim, capitão Kirk precisa capturar seu lado “mau” fugitivo e se arriscar ao choque potencialmente fatal da fusão de seu caráter, antes de resgatá-los.
Diferente das teorias psicológicas existentes até a sua realização, esse episódio da série original de Jornadas nas Estrelas, possibilita, como em tantos outros, a representação de “experimentos mentais” de uma forma direta, sem muitos rodeios. Em O Inimigo Interior, ocorre a sugestão de que a força de vontade necessária para voz de comando ponderada exige a preservação da integridade mental do indivíduo, com seus sentimentos e emoções violentos e amáveis convivendo lado a lado com sua razão calculadora. Nada daquele dualismo simplista das correntes racionalistas e psicanalistas é subentendido. Avançando hipóteses que mais tarde a neurologia iria desenvolver, o roteirista Richard B. Matheson (autor de novelas de ficção científica como Eu Sou a Lenda, que também trabalhou em Além da Imaginação) lança o papel fundamental das emoções e sentimentos, que como marcadores-somáticos, interferem no processo deliberativo racional, a fim de que este chegue a um termo. O bem e o mal não decorrem, a final de contas, de um ou outro sentimento isolado de mentes partidas, nem pela intervenção de entidades espirituais estranhas a nós, mas são o resultado de nossas ações, com os efeitos positivos ou negativos que, respectivamente, causam aos interesses das outras pessoas envolvidas na circunstância. Não por acaso, Jornada nas Estrelas foi e ainda é considerada uma série “muito cerebral” para os padrões televisivos existentes.
Amanhã: Semente do Espaço, o episódio que apresentou ao mundo Khan Noonien Singh, que ria dar vazão à sua ira no segundo longa cinematográfico
Anteriormente: O novo longametragem Ao final de “Apocalypse Now”, Marlon Brando faz um dicurso sobre a “pureza” de objetivos dos vietcongues – após os americanos vacinarem todas as crianças de uma aldeia contra a varíola, os comunas vão lá e decepam todos os braços vacinados. Brando imagina o esforço necessário para homens que têm famílias e amigos como qualquer um de nós chegarem a tal gesto extremo, comparando com os soldadinhos ianques, garotos que iam pra guerra em turnos de seis meses e depois eram desmobilizados. O mesmo discurso poderia ser utilizado quanto aos planetas Eminiar VII e Vendikar, que estão em guerra há 500 anos quando a galera da Enterprise desembarca lá tentando negociar a cessão de um posto avançado da Federação. Só que pra surpresa do povo da Frota Estelar o mundo dos emirianos é limpinho, organizado, sem nenhum sinal de destruição. Os nativos até mesmo informam estar sob ataque exatamente naquele momento, mas Kirk e comandados não veem sinal de porra nenhuma acontecendo. Até que finalmente alguém os esclarece: após algum tempo de conflito arrasador, para continuar a briga com o mínimo de perturbação possível, as partes acordaram em ter computadores ligados em rede que simulariam ataques e contra-ataques. Os habitantes que constassem dos relatórios de baixas apresentar-se-iam a câmaras desintegradoras e assim poupavam-se os mundos do completo caos em suas civilizações.
“Apocalypse Now” foi feito em 1979, sobre a Guerra do Vietnã, que estava rolando a todo vapor quando “Um Gosto de Armageddon” foi ao ar, por isso mais surpreendente ainda é a premonição sobre a ineficiência de se travar um conflito com meios limitados. Quase como uma lição de Clausewitz para Principantes, o episódio demonstra exatamente como, sem a ameaça de uma escalada até a guerra total, os povos se acomodam e se acostumam a dois, três milhões de mortos por ano. Como já dizia Orwell em “1984”, o livro, não a data, “Guerra é Paz”, e o estado de constante e sub-reptício conflito é justificativa para a manutenção do “status quo”. Os guerreantes, por exemplo, conhecem a propulsão warp, mas nunca se aventuraram no espaço exterior. Obviamente todos os recursos financeiros e psicológicos que poderiam levar a um maior desenvolvimento estão empatados no impasse militar. Que não é militar, na verdade. E o mais curioso – e extremamente perspicaz – são os efeitos culturais dessa não-guerra. O líder planetário Anan 7 (em ótima atuação de David Opatoshu) passa o tempo todo apreciando o espírito guerreiro de Kirk, falando sobre os instintos guerreiros do homem, enfim, mostrando um elaborado código guerreiro – e usa um truque sujo atrás do outro. Coisa de quem não vivencia os efeitos de uma guerra de verdade – pense nos samurais japoneses, que passaram séculos todo só travando escaramuças entre si e elaboravam seus complicados rituais do bushido, e quando encararam os plebeus americanos armados com pólvora tomaram uma trolha. Ou os janízaros otomanos, com seus elaboradíssimos exercícios da furyytsa, que levaram uma cacetada dos proletários franceses de Napoleão. Seguindo o padrão, os próprios ianques, depois de várias guerrinhas limitadas em escopo e objetivo passariam a adotar uma cultura do guerreiro que não tinham quando de 20 em 20 anos iam à Europa salvar o mundo nas guerras mundiais. Nessa época eles sabiam que era um trabalho que precisava ser feito, mas era um trabalho sujo, muito sujo. Os efeitos especiais do episódio, como sempre, não estão à altura do roteiro, embora as lutas, apesar de sua péssima fama, sejam relativamente bem coreografadas e filmadas. Já a série estando bastante avançada na temporada, os atores e roteiristas já estão bem mais à vontade com seus personagens, bem como a equipe técnica. Os cenários estão melhor e mais elegantemente iluminados, com gradações pra disfarçar paredes lisas, sem abuso de filtros azuis, vermelhos e laranjas. Há menos inserts de closes e maior movimentação do povo dentro das cenas. A direção de arte enfatiza a idéia central, dando as eminiaranos uniformes fálicos, com faixas metálicas em malha de aço (que Worf usaria na Nova Geração), e enfeita seus aposentos com adereços que lembram arte bárbara, evocando sua cultura guerreira de fancaria.
Esse entrosamento geral dos atores e equipe técnica começa a levar também a momentos mais bem humorados, desenvolvendo melhor a personalidade dos tripulantes da Enterprise, responsável por boa parte do charme do seriado. Reparem por exemplo como uma cena de luta fica bem mais viva porque Spock, para distrair um guarda, fala, sem demonstrar a menor emoção, “Senhor, há uma criatura com múltiplas pernas rastejando em seu ombro”. Depois dos episódios em que a turma da Federação basicamente ficava assistindo a seres superiores resolverem seus assuntos entre si, também é bastante satisfatório ver Kirk e seus comandados por cima quase o tempo todo, aproveitando sua tecnologia e armas mais avantajadas pra darem lição de moral nos caras.
Falando sobre guerra, tanto “Apocalypse Now” quanto “Um gosto de Armageddon” metaforizam sobre a vida e fazem uma apologia contra a mediocridade, condenando as soluções de compromisso e meias medidas. É lógico que a fita do Coppolla é muito melhor, mais abrangente e complexa do que “Jornada nas Estrelas”, que em episódios posteriores tentaria abordar o Vietnã ou política tentando não ofender ninguém, mas aqui eles sabem que assumir posições e condenar uma sociedade comodista, onde pessoas que querem se mostrar diferentes fazendo tatuagens põem uma borboletinha discreta no tornozelo, pode ser um trabalho sujo, mas que precisa ser feito.
Digno de nota:
- Ninguém menciona o motivo da guerra. Talvez todos já tenham até esquecido.
- O personagem de Uhura ainda não tinha toda a proeminência que teria, ou seria ela, em vez de uma anônima ordenança, a descer com a turma de desembarque no planeta. Posteriormente, a mulher nessas ocasiões seria sempre a ex-amante de Roddenberry, a não ser que circunstâncias de roteiro exigissem uma que morresse ou se apaixonasse.
- Contagem de corpos: um casal de emirinianos que nós vemos ser desintegrados cumprindo a cota de mortes. Tirando “o sal da terra” e os tripulantes que viraram semideuses em “Onde homem nenhum jamais esteve”, a fronteira final não vem fazendo jus a sua fama de moedor de carne. Kirk também ainda não comeu ninguém. O povo ainda era muito inexperiente nessa época.
- Apesar de haver até um embaixador da Federação no episódio, ninguém menciona a Diretriz Primária e Kirk, para salvar sua pele e de seu grupo de desembarque, toma nas mãos o destino material de duas culturas. Os escritores não haviam bolado a diretriz ainda, o roteirista deste episódio convenientemente “esqueceu-a”, ou, como aventou um amigo meu, ela só vale para civilizações que ainda não tenham desenvolvido propulsão warp? Minha hipótese é que, como eles foram atacados num ato de guerra, tinham permissão para reagir à altura da ameaça, que vinha de sociedades tecnológicas e não de neolíticos com atiradeiras.
Amanhã: Inimigo Interior, na visão de Antônio Rogério da Silva, o Roger Filósofo.
Continuo escritor. Estou escrevendo roteiros de filmes e séries para a Conspiração Filmes e a Hybrazil Filmes, o que me fez largar um pouco as peças. A última novidade delas é que tem um sujeito tentando montar PARAÍSO PERDIDO, minha adaptação infantil (????) do clássico de Milton (John, não o Nascimento, como um ex-pretendente a produtor uma vez perguntou).
E, para garantir o pão de cada dia em tempos de vacas magras, trabalho no TRT.