Inimigo Interior
Richard Matheson, escritor de fantasia da pesada – autorou “Eu sou a Lenda” e “O incrível homem que encolheu”, entre outros – reciclou uma das obras-primas de Robert Louis Stevenson e dividiu o capitão Kirk em seus lados bom e mau, criando um dos episódios favoritos dos trekkers e que até hoje é tema de centenas de trabalhos a cada semestre nas faculdades de psicologia na Obamalandia.
Uma das grandes vantagens da série original sobre A Nova Geração e seus filhotes é que a parte científica é coadjuvante pras doideiras dos escritores. Assim, Matheson não se dá ao trabalho de explicar como uma máquina que trabalha com a desmontagem e remontagem de moléculas pode criar duplicatas e ainda por cima com personalidades diferentes. O que talvez até seja uma pena, pois ouvir um arcabouço teórico para moléculas boas e moléculas más poderia ser um dos momentos clássicos do show e juntar-se aos quarks “up”, “down”, “charm”, “strange”, “up” e “down” da física de partículas contemporânea. O sr. Spock conta que cobertores enviados para um planeta abaixo também foram replicados, deixando-nos bestuntando como seria um cobertor malvado.
Kirk sai do teletransporte meio zureta e a sala fica vazia. Logo depois ele reaparece, usando uma camisa diferente – além de moléculas boas e moléculas más, ainda tem moléculas guarda-roupa – e um ângulo de câmera de baixo pra cima, em grande angular, com luz infernal (1) deixa bem claro que esse James Tiberius não é boa coisa. Aliás, a direção deste episódio é bem melhor do que o resenhado anteriormente. A iluminação secundária vermelha e azul é usada bem mais expressivamente e não só pra vender recém-lançadas tevês em cores. Há mais movimentos de câmera, algumas tentativas de composições mais elaboradas e maior movimentação dos atores em cena – em suma, a cinematografia é consideravelmente mais dinâmica, o que é ótimo prum episódio que não tem muito suspense e que depende do interesse na instigante situação para prender nossa atenção. Infelizmente continua o abuso de cortes para closes em que os olhares não se dirigem para onde deveriam, com fundo vazio, ignorando o cenário onde se passa a sequência, parecendo um desenho do Rob Liefeld.
Essa história de lado bom e lado mau é um exemplo clássico para o seu “encaixe aqui seu significado”. Matheson, através de Spock, descreve-os literalmente, um como sendo os desejos mais baixos, cruéis, agressivos e mesquinhos (e com todo mundo dizendo a ele que ele é assim não vai melhorar nunca) de Kirk, e o outro com sua bondade, a ternura e a racionalidade. Podem ser o id e o superego, podem ser o complexo-R, o cérebro reptiliano por baixo de nossa mente, e o neocórtex, a massa cinzenta mamífera com sua capacidade de empatia e sua grande capacidade de simbolização, o que você quiser...
Mas a grande sacação para o moleque que eu era, e provavelmente também os pivetes americanos, os jovens adultos e homer-simpsons a quem o programa era dirigido, ainda mais numa época em que a maioria das pessoas ainda era caretaça, foi a ideia de que a energia vital vem do “lado mau”, que é ela quem fornece o combustível para a mente racional. Com o passar do tempo, incapaz de avaliar os dois lados de uma questão e de arriscar suas chances, o “lado bom” torna-se inapto para tomar decisões. Como medir as consequências sem o instinto para lhe dar o parâmetro moral onde basear seus argumentos? Quando o capitão Kirk desvela o ocorrido e decide esclarecer tudo para a tripulação, Spock lhe paga um esporro dizendo que é uma ideia de jerico contar pra marujada que tem dois capitães, ambos meio zuretas, pra comandar a nave. E a conclusão para a garotada assistindo em casa é que valores morais são muito bonitos, mas no mundo real mesmo os heróis carismáticos dependem fundamentalmente de hipocrisia e mentirinhas.
Já o “lado mau” não tem nada disso e de pronto sai pra encher a cara e dar em cima da gostosona de sua ordenança, cuja bunda tanto obseda a tripulação em “O sal da terra”. A ordenança não gosta e quase é estuprada, arranhando o rosto do capitão no processo, o que vai nos ajudar a diferenciar quem é quem no resto do episódio. Quando ela rememora o incidente, confessa que sempre teve uma certa atração por Kirk, mas numa das poucas boas demonstrações da arte de atuar num episódio que pede a William Shatner que seja duplamente canastrão, mas que sentiu-se profundamente degradada. Esse precoce caso de assédio sexual é um avanço sobre a política sexual do programa anterior e numa época em que uma cena clássica de piada era do patrão correndo atrás da secretária em volta de uma mesa (2). Mesmo admitindo seus desejos, a mulher sente-se ultrajada e mais uma vez se ressalta a hipocris... digo, a racionalidade nas relações humanas. Pra compensar, quando as duas metades se defrontam, a “sombra” de Kirk (a interpretação junguiana, que divide a personalidade em quatro, sendo a sombra a projeção de nossos piores defeitos percebidos), apesar de toda sua agressividade, é quem entra em pânico. É a razão que nos leva a superar o medo primal.
Um Papo sobre o episódio de Star Trek - The Original Series:
Enfim, o episódio é tão aberto a interpretações que pode ser até mesmo metáfora pra shows pretensiosos de ficção científica. A mente racional é quem manda, elaborando temas instigantes e relevantes, com ajuda da empatia, que nos leva a nos interessar por aquelas criaturas fictícias a quem tais coisas acontecem, mas como o lado mau é que tem o controle remoto, tem que ter umas brigas, mulheres de microssaia e tiros de laser. A Nova Geração seria uma série clássica sem o lado mau.
Digno de nota:
- Contagem de corpos: só algumas escoriações. Quando o Kirk mau ataca um tripulante que tentou ajudar a ordenança, ele o derruba e o soca fora de quadro. Em DVD fica visível que chega a haver um espirro de sangue.
- Na cena em que os dois capitães se confrontam na ponte, há um erro de continuidade e um deles está com os arranhões no lado direito do rosto.
- No final dos anos 70, início dos 80, Shatner foi o apresentador do Saturday Night Live e fez um esquete em que ia a uma convenção de trekkers e fazia um discurso mandando eles arrumarem uma vida, uma namorada, amigos, saírem da casa dos pais e deixarem de ficar discutindo detalhes irrelevantes de uma velha série de tevê. Os fãs só se acalmam quando alguém diz que na verdade o discurso foi dado pelo capitão mau deste episódio.
- Em uma subtrama, uma patrulha está presa num planeta congelante porque o teletransportador está quebrado. Apesar deles estarem morrendo, não há a menor menção às naves de serviço da Enterprise, como a Galileo, que apareceriam em outros episódios.
(1)No dia a dia estamos acostumados a ver tudo iluminado sempre de cima pra baixo, seja pelo sol, pela iluminação pública ou de casa. Para criar um clima extraordinário e dramático no cinema, diretores de fotografia costumam focar suas lâmpadas baixo pra cima, distorcendo nossa visão usual e dando a impressão de que os personagens recebem uma luz vindo diretamente das entranhas do hades, daí o nome “luz infernal”.
(2)Num desenho de Betty Boop de Max Fleischer, dos anos 30, ela arruma um emprego de secretária com um literal porco gordo e suado que começa a tentar agarrá-la assim que ela entra na sala com seu vestidinho apertadinho. Ela grita por socorro e durante todo o episódio bombeiros e policiais incompetentes tentam ajudá-la, apenas para, quando finalmente abrirem caminho, a encontrarem aos beijos com o suíno, e ela, irritada, fechar a porta (ou a cortina, não me lembro) pra ter privacidade. Um monte de mulheres que o patrão tentou agarrar devem ter achado engraçadíssimo.
Anteriormente: O Sal da Terra;
Amanhã: Se a pré-estreia não estiver lotada quando eu chegar, a resenha do novo longa.
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