Um Gosto de Armageddon
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Ao final de “Apocalypse Now”, Marlon Brando faz um dicurso sobre a “pureza” de objetivos dos vietcongues – após os americanos vacinarem todas as crianças de uma aldeia contra a varíola, os comunas vão lá e decepam todos os braços vacinados. Brando imagina o esforço necessário para homens que têm famílias e amigos como qualquer um de nós chegarem a tal gesto extremo, comparando com os soldadinhos ianques, garotos que iam pra guerra em turnos de seis meses e depois eram desmobilizados.
O mesmo discurso poderia ser utilizado quanto aos planetas Eminiar VII e Vendikar, que estão em guerra há 500 anos quando a galera da Enterprise desembarca lá tentando negociar a cessão de um posto avançado da Federação. Só que pra surpresa do povo da Frota Estelar o mundo dos emirianos é limpinho, organizado, sem nenhum sinal de destruição. Os nativos até mesmo informam estar sob ataque exatamente naquele momento, mas Kirk e comandados não veem sinal de porra nenhuma acontecendo. Até que finalmente alguém os esclarece: após algum tempo de conflito arrasador, para continuar a briga com o mínimo de perturbação possível, as partes acordaram em ter computadores ligados em rede que simulariam ataques e contra-ataques. Os habitantes que constassem dos relatórios de baixas apresentar-se-iam a câmaras desintegradoras e assim poupavam-se os mundos do completo caos em suas civilizações.
“Apocalypse Now” foi feito em 1979, sobre a Guerra do Vietnã, que estava rolando a todo vapor quando “Um Gosto de Armageddon” foi ao ar, por isso mais surpreendente ainda é a premonição sobre a ineficiência de se travar um conflito com meios limitados. Quase como uma lição de Clausewitz para Principantes, o episódio demonstra exatamente como, sem a ameaça de uma escalada até a guerra total, os povos se acomodam e se acostumam a dois, três milhões de mortos por ano. Como já dizia Orwell em “1984”, o livro, não a data, “Guerra é Paz”, e o estado de constante e sub-reptício conflito é justificativa para a manutenção do “status quo”. Os guerreantes, por exemplo, conhecem a propulsão warp, mas nunca se aventuraram no espaço exterior. Obviamente todos os recursos financeiros e psicológicos que poderiam levar a um maior desenvolvimento estão empatados no impasse militar.
Que não é militar, na verdade. E o mais curioso – e extremamente perspicaz – são os efeitos culturais dessa não-guerra. O líder planetário Anan 7 (em ótima atuação de David Opatoshu) passa o tempo todo apreciando o espírito guerreiro de Kirk, falando sobre os instintos guerreiros do homem, enfim, mostrando um elaborado código guerreiro – e usa um truque sujo atrás do outro. Coisa de quem não vivencia os efeitos de uma guerra de verdade – pense nos samurais japoneses, que passaram séculos todo só travando escaramuças entre si e elaboravam seus complicados rituais do bushido, e quando encararam os plebeus americanos armados com pólvora tomaram uma trolha. Ou os janízaros otomanos, com seus elaboradíssimos exercícios da furyytsa, que levaram uma cacetada dos proletários franceses de Napoleão. Seguindo o padrão, os próprios ianques, depois de várias guerrinhas limitadas em escopo e objetivo passariam a adotar uma cultura do guerreiro que não tinham quando de 20 em 20 anos iam à Europa salvar o mundo nas guerras mundiais. Nessa época eles sabiam que era um trabalho que precisava ser feito, mas era um trabalho sujo, muito sujo.
Os efeitos especiais do episódio, como sempre, não estão à altura do roteiro, embora as lutas, apesar de sua péssima fama, sejam relativamente bem coreografadas e filmadas. Já a série estando bastante avançada na temporada, os atores e roteiristas já estão bem mais à vontade com seus personagens, bem como a equipe técnica. Os cenários estão melhor e mais elegantemente iluminados, com gradações pra disfarçar paredes lisas, sem abuso de filtros azuis, vermelhos e laranjas. Há menos inserts de closes e maior movimentação do povo dentro das cenas. A direção de arte enfatiza a idéia central, dando as eminiaranos uniformes fálicos, com faixas metálicas em malha de aço (que Worf usaria na Nova Geração), e enfeita seus aposentos com adereços que lembram arte bárbara, evocando sua cultura guerreira de fancaria.
Esse entrosamento geral dos atores e equipe técnica começa a levar também a momentos mais bem humorados, desenvolvendo melhor a personalidade dos tripulantes da Enterprise, responsável por boa parte do charme do seriado. Reparem por exemplo como uma cena de luta fica bem mais viva porque Spock, para distrair um guarda, fala, sem demonstrar a menor emoção, “Senhor, há uma criatura com múltiplas pernas rastejando em seu ombro”. Depois dos episódios em que a turma da Federação basicamente ficava assistindo a seres superiores resolverem seus assuntos entre si, também é bastante satisfatório ver Kirk e seus comandados por cima quase o tempo todo, aproveitando sua tecnologia e armas mais avantajadas pra darem lição de moral nos caras.
Falando sobre guerra, tanto “Apocalypse Now” quanto “Um gosto de Armageddon” metaforizam sobre a vida e fazem uma apologia contra a mediocridade, condenando as soluções de compromisso e meias medidas. É lógico que a fita do Coppolla é muito melhor, mais abrangente e complexa do que “Jornada nas Estrelas”, que em episódios posteriores tentaria abordar o Vietnã ou política tentando não ofender ninguém, mas aqui eles sabem que assumir posições e condenar uma sociedade comodista, onde pessoas que querem se mostrar diferentes fazendo tatuagens põem uma borboletinha discreta no tornozelo, pode ser um trabalho sujo, mas que precisa ser feito.
Digno de nota:
- Ninguém menciona o motivo da guerra. Talvez todos já tenham até esquecido.
- O personagem de Uhura ainda não tinha toda a proeminência que teria, ou seria ela, em vez de uma anônima ordenança, a descer com a turma de desembarque no planeta. Posteriormente, a mulher nessas ocasiões seria sempre a ex-amante de Roddenberry, a não ser que circunstâncias de roteiro exigissem uma que morresse ou se apaixonasse.
- Contagem de corpos: um casal de emirinianos que nós vemos ser desintegrados cumprindo a cota de mortes. Tirando “o sal da terra” e os tripulantes que viraram semideuses em “Onde homem nenhum jamais esteve”, a fronteira final não vem fazendo jus a sua fama de moedor de carne. Kirk também ainda não comeu ninguém. O povo ainda era muito inexperiente nessa época.
- Apesar de haver até um embaixador da Federação no episódio, ninguém menciona a Diretriz Primária e Kirk, para salvar sua pele e de seu grupo de desembarque, toma nas mãos o destino material de duas culturas. Os escritores não haviam bolado a diretriz ainda, o roteirista deste episódio convenientemente “esqueceu-a”, ou, como aventou um amigo meu, ela só vale para civilizações que ainda não tenham desenvolvido propulsão warp? Minha hipótese é que, como eles foram atacados num ato de guerra, tinham permissão para reagir à altura da ameaça, que vinha de sociedades tecnológicas e não de neolíticos com atiradeiras.
Amanhã: Inimigo Interior, na visão de Antônio Rogério da Silva, o Roger Filósofo.
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