maio 16, 2009
A Fronteira Final - A Primeira Temporada de Star Trek a Série Clássica
“Tempo de nudez” foi mais uma inovação da turma do Gene Roddenberry. Naquela época não existia essa coisa de séries “sérias” tirarem um dia de folga pra curtir com a cara dos personagens. Embora até tenha uma corrida contra o tempo pra evitar que a Enterprise caia no planeta que está orbitando, o episódio é basicamente uma gozação com o capitão Kirk e seus comandados, que têm um péssimo dia quando uma molécula de água modificada deixa todo mundo a bordo cheio de cachaça nas idéias.
A coisa toda começa até num tom grave, com uma patrulha da Enterprise descendo a um posto avançado e encontrando todos mortos de maneira irracional: alguns se suicidaram, outros se deixaram congelar, outros foram assassinados, uma maluquice completa. O roteiro culpa a tal H2O mutante pela coisa, com um efeito depressor sobre o centro das inibições no cérebro, similar ao álcool, o que tornaria a descontaminação ineficaz, mas mesmo assim faz um tripulante que desceu ao planeta tirar sua luva de proteção para poder coçar o nariz e deixar uma gota de sangue cair em sua mão – a ideia não era de que esse pessoal aí eram profissionalíssimos, a nata da nata?
Esse sujeito tem uma crise de consciência digna de um romance anticolonialista de Conrad (“os mortos naquele planeta... estamos nos metendo em assuntos que não nos dizem respeito”) e perde a vontade de viver, morrendo por um ferimento leve na mesa de operações do McCoy, sem antes contaminar um monte de gente. Um deles é o tenente Riley, que se apossa do setor de engenharia, se intitula o novo capitão e começa a dar ordens como “mulheres, a partir de agora, usem os cabelos soltos pelos ombros e usem menos maquiagem... mulheres não devem parecer maquiadas”. E a cantar, cantar sem parar a mesma música insuportável. Bruce Hyde fez seu personagem tão engraçado que ele ganhou uma raríssima segunda aparição de destaque na série, no interessantíssimo “A Consciência do Rei”.
Olhando retrospectivamente, é difícil não rir quando o hoje ativista gay George Takei aparece nos corredores só de calça justa, com uma espada na mão e sussurrando a seu companheiro de leme coisas como “encontre-me mais tarde no ginásio, meu jovem, para um pouco de ação”. A série podia ser ousadamente multicultural para sua época, mas dá ao japa uma paixão pela esgrima ocidental e pelos três mosqueteiros - catanás e samurais ainda não haviam penetrado (epa! Ato falho!) o subconsciente coletivo ocidental e muito menos o dos escritores de tevê americanos. Pelo menos fica estabelecido de vez que o sr. Sulu é um espírito alegre (não resisti), com fumaças de romântico aventureiro.
A cachaçada geral, aliás, serve muito bem pra explorar mais as personalidades da tripulação. Kirk, num diálogo mal escrito e mal interpretado, lamenta tudo que jogou fora pelo amor ao comando e à sua nave – o único bom momento é quando arriscando um lance maluco pra salvá-la, ele diz pra ela “eu nunca vou perdê-la... nunca...”. Azar da ordenança, que Kirk diz não poder comer por ser seu superior. Mais uma vez aparece em destaque os coxões de Janice Rand. Ao contrário de Uhura, o personagem nunca conseguiu deixar de ser a secretária gostosa e acabaria desaparecendo da série junto com a problemática atriz.
Já Spock desfaz de uma vez por todas um equívoco geral de que os vulcanos não têm emoções. Eles as têm, mas como ele diz, numa crise de choro, em seu planeta sentimentos não são considerados de bom tom e imagina como deve sofrer sua amada mãe humana, tão passional, entre essa turma. Spock, aliás, é contaminado pela enfermeira Chapel, que revela sua paixão pelo imediato da Enterprise. Quem estranhar humanas com ares românticos pra cima do alienígena frio e lógico vai ficar surpreso ao saber que Leonard Nimoy virou uma espécie de símbolo sexual à época. Segundo Uhura, ele é o gostosão da nave, não o Kirk, e não, não estou falando da Uhura do novo longa: revejam “O Estranho Charlie” e prestem atenção na letra da música que ela canta pro Spock (1).
Uhura, aliás, nesse episódio, ao contrário da ordenança, começa a deixar de ser a telefonista da nave e a parecer uma oficial da Frota Estelar, finalmente preenchendo pelo menos parte do papel que Roddenberry queria para ela. Além de substituir o doidão Sulu no leme, ainda paga um esporro no capitão Kirk quando ele dá um de seus frequentes pitis com os amigos. Infelizmente o Gene não conseguiria fazer os executivos da rede engolirem-na comandando a Enterprise na ausência do trio capitão-imediato-engenheiro e sua posição como quarta em comando permaneceria para sempre teórica.
Com tantas revelações de caráter, “Tempo de nudez” foi considerado perfeito pra ser encaixado logo no início da série e familiarizar os espectadores com a tripulação, apesar de sua trama pouco cósmica e aventureira, gambito que seria repetido vinte anos depois na Nova Geração, que enfrentou a mesma molécula de água doidona no começo de seus voos. Nos dois casos o povo que estava começando a acompanhar as aventuras espaciais das Enterprise ficou decepcionado. O dos anos 80 porque chegou à conclusão que nunca nenhuma ação ia acontecer sob a égide de Picard e e dos anos 60 porque depois de um monstro que sugava sal, viu dois semideuses caçoarem de Kirk e seus comandados até outros semideuses pegarem eles.
Pra quem via anúncios de naves espaciais gigantescas, alienígenas superfortes disparando phasers e toda aquela tecnologia, devia ser tremendamente desapontador ver que aquilo tudo era só cenário pra outros seres brilharem. A galera da Enterprise passa dois episódios só olhando e também quase põe tudo a perder aqui por uma falta básica de profissionalismo de um tripulante. O crítico Glenn Erickson explica que na época não se ligou na série justamente porque todos os primeiros episódios eram sobre controle mental e semideuses. Não foi à toa que Jornada nas Estrelas brigou com os índices de audiência durante toda sua existência. Além de conceitos estranhos, roteiros diferentes e problemas de produção envolvendo tantos cenários e objetos de cena, o programa ainda evitava dar a seu público algumas emoções baratas para dourar a nutritiva pílula.
Felizmente tudo melhoraria com o sensacional episódio seguinte, Inimigo Interior, já resenhado aqui e aqui, pelo blogueiro convidado. A partir desse ponto Jornada nas Estrelas daria um pouco mais de satisfação ao público torcendo por seus heróis, mas talvez um pouco tarde demais para antecipar o pantagruélico sucesso que gozaria em reprises nos anos 70.
Digno de nota:
- Contagem de corpos: a equipe de cientistas no planeta agonizante e um tripulante.
Eddie Paskey, que fazia o papel de um dos oficiais da ponte, tem aqui seu primeiro diálogo. De ponta em ponta ele apareceria na série em 57 episódios, mais do que Sulu ou Chekov. Somente em “A Consciência do Rei” seu nome, tenente Leslie, seria dito.
- No final, a solução pra salvar a nave a joga três dias no passado. O planejamento original os levaria 300 anos atrás, no século XX, fazendo deste a primeira parte de um episódio em dois capítulos – o segundo seria o que acabou se tornando “O amanhã é ontem”. Um dos motivos foi que Roddenberry odiava episódios desmembrados. Para o enroladíssimo “Deep Space 9” ser feito, esperaram o sujeito morrer, já que ele era expressamente contra histórias em continuação.
Amanhã: "E as Meninas, de Que São Feitas", pelo blogueiro convidado Roger Filósofo, e seus toques sobre teoria cognitiva.
(1) Na Enteprise tem alguém que parece Satanás/ com os ouvidos e os olhos do diabo/ que poderiam arrancar seu coração/ Primeiro seus olhos hipnotizam/ depois seu toque a derruba/ e seu amor alienígena a possui/ e poderia arrancar seu coração/ é por isso que mulheres astronautas/ esperam aterrorizadas/ pra descobrir o que ele fará/ oh moças atronautas, cuidado!/ Sabemos o que ele fará
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