maio 25, 2009

A Fronteira Final - A Primeira Temporada de JORNADA NAS ESTRELAS - A série clássica


O Estranho Charlie

Anteriormente: As Mulheres de Mudd


“O Estranho Charlie” é sobre um jovem que, depois que seus pais morreram explorando outro planeta, foi criado desde pequeno pela misteriosa e arcana espécie nativa, o que o levou a desenvolver grandes poderes mentais, mas o deixou despreparado para o convívio com humanos. Resgatado no final da adolescência e tentando aprender mais sobre a cultura terráquea, interessa-se afetiva e sexualmente pela primeira (e bela) mulher que vê e sua alteridade o leva a sérios conflitos com as autoridades. Peraí, da última vez que conferi, essa história se chamava “Estranho numa terra estranha” e era um livro do Robert A. Heinlein.

O livro ainda estava na crista da onda em 1966, quando este show foi produzido, e se tornaria um clássico, adotado como referência pela contracultura. Mas o empréstimo de trama na verdade apenas serviu para dar uma origem aos poderes do Charlie do título, outra apropriação de um clássico, mas desta vez da própria televisão – ele é a versão púbere do garotinho onipotente de “It´s a good life”, de “Além da Imaginação”, um episódio tão marcante que seria referenciado desde “Os Simpsons” no primeiro especial de dia das bruxas, a Johnny Bravo. O molequinho, diga-se de passagem, era interpretado por Bill Mumy, cinco anos antes de se imortalizar como o Will Robinson de “Perdidos no espaço”.

Em “Além da imaginação”, o garotinho tem seis anos e já nasceu onipotente. O criador de “Jornada nas Estrelas”, Gene Roddenberry, autor do argumento de “O Estranho Charlie”, pegou emprestado do clássico de Heinlein uma explicação para os poderes do fedelho e a idéia de dar alguns anos e muitos hormônios a mais ao personagem, encontrado por um cargueiro de pesquisa e deixado na Enterprise para ser levado a algum posto avançado no caminho. Como um Tarzan espacial, o rapazola, sozinho desde os 3 anos, aprendeu a falar, ler e escrever assistindo às fitas dos computadores. O povo da NCC 1701 tem dúvidas sobre como ele sobreviveu sem suprimentos e se ele viu algum sinal dos lendários tausianos, os supostos poderosíssimos antigos habitantes do planeta, mas a partir do momento em que Charlie bota os olhos na ordenança gostosa, ele não tem cabeça para discutir qualquer outro assunto. E com todas as suas ampliadas capacidades mentais, ele vai ensinar a Kirk e sua tripulação o verdadeiro significado da palavra “aborrecente”.

A metáfora é óbvia. Eram os anos 60 e estava todo o mundo maluquinho com a juventude. Em 1966 a sociedade americana estava passando por um monte de percalços com os “baby boomers”, que estavam chegando à adolescência exatamente nessa época e com valores que não eram aqueles de seus pais. Delinquência juvenil, revolução sexual, rock'n'roll, verão do amor, para os adultos ianques de então aquela garotada parecia tão alienígena quanto Charlie. E criados no império da cultura de massa – cinema, televisão, rádio, gibi –, cercados de fartura sem precedentes na história, eles certamente deviam parecer ao povo com mais de 30 tão onipotentes quanto o estranho numa terra estranha.

Mas Charlie não sabe que grandes poderes trazem grandes responsabilidades e eles acabam só lhe trazendo infelicidade. Imaturo, ele se apega ao capitão Kirk e à ordenança, óbvias figuras paterna e materna. O moleque aceita de Kirk muito mais esporro do que de outros que desintegra. E quando a ordenança tenta lhe apresentar uma gostosinha adolescente, Charlie a dispensa rudemente, já que sua fixação em Janice é obviamente edipiana.

Assumindo sua posição de pai postiço, Kirk tenta corrigir a personalidade do fedelho ensinando-o a lutar. Na visão positivista de Roddenberry, a luta não é uma maneira de derrotar um adversário, mas de autoajuda, com seu enfoque em disciplina e análise estratégica. No entanto Charlie não tem paciência para começar pelos fundamentos de defesa – é o ataque que ele quer aprender logo, a parte violenta da coisa. Obviamente leva uma queda do experiente capitão e um tripulante que ri é desintegrado. A reação de Kirk não é de medo, mas de firme cobrança. Não é à toa que ele é capitão. Tenham essa atitude ao criar seus filhos em vez de demonstrar medo e em duzentos anos estaremos levando a utopia a toda uma galáxia!

Ao final, quando tudo parece perdido, os tausianos aparecem pra reclamar o garoto de volta. De uma maneira que hoje é clichê, Roddenberry deixa claro o que entende como raiz dos problemas: o moleque implora que não o deixem ir, já que seus mentores são incapazes de ternura e carinho – eles nem ao menos “podem ser tocados”, grita o aterrorizado adolescente. Kirk se apieda e tenta interceder por ele, mas é caso perdido. Pra época, explicar à classe média que aquela juventude mimada e degenerada decorria do hábito de largar as crianças sem atenção na mão da televisão (“assistindo às fitas”) era bastante ousado.

O programa é maneiro, mas um tanto parado. Roddenberry pretendia fazer dele o primeiro a ser exibido, o que é estranho, já que não é uma história que apresente a tripulação e a ação é bastante passiva, com o povo da nave no final sendo salvo por um deus ex machina, deixando uma certa insatisfação no espectador.

A direção e a fotografia são melhores do que “Inimigo interior”, e pela primeira vez no seriado aparecem os seus afamados closes bem iluminados e com bastante filtro difusor pra embelezar as mulé-gostosa (bem como para disfarçar as rugas dos oficiais da ponte). Mas o ponto alto do episódio é Robert Walker Jr. como Charlie. O filho de Robert Walker e Jennifer Jones consegue fazer um perfeito adolescente alienígena (alienado?), ameaçador e infantil, lembrando obviamente a lendária atuação do pai como o milionário entediado e gay de “Pacto Sinistro”.


Digno de nota:

- Contagem de corpos: 20 tripulantes da nave de carga Antares. Aparentemente todo mundo desintegrado ou metamorfoseado na Enterprise foi restaurado pelos alienígenas no final.
- Erro de continuidade grosseiro: Kirk entra no elevador com Charlie e quando eles saem, nosso capitão de astronave predileto está com uma camisa diferente. Na versão remasterizada devem ter apagado com computador.
- Mulheres de bege aparecem também de microssaia neste episódio, estragando minha bela teoria de que só elas usariam calças.
- Ninguém se dá ao trabalho de rearrumar as peças pra começar outra partida de xadrez tridimensional. Como são as regras desse jogo?
- “D. C. Fontana”, que roteirizou o argumento de Roddenberry, era na verdade sua secretária, que assinava com as iniciais pra não dar pinta de ser mulher, que não eram levadas muito a sério pelos executivos de tevê da época. Pense nisso da próxima vez que achar que as tripulantes da Enterprise não têm cargos tão importantes assim.

A seguir: O segundo piloto (o que colou) virou o terceiro episódio da série com o nome "Onde Homem Nenhum Jamais Esteve" (frase que foi depois aproveitada você sabe onde).

Sem comentários: