maio 21, 2009

A Fronteira Final - A Primeira Temporada de Star Trek a Série Clássica



Equilíbrio de Terror


“Equilíbrio de Terror” é Jornada nas Estrelas em sua melhor forma, com todas as engrenagens girando perfeitamente e a maquinaria rodando suave toda a potência adiante, disparando em todas as câmaras. Um dos episódios favoritos de qualquer um que já tenha tido algum contato com a Enterprise, funciona perfeitamente em praticamente todos os níveis e dá à televisão uma de suas melhores horas de aventura.

Nossa espaçonave favorita chega à fronteira com o Império Romulano e descobre que todos os postos avançados da Frota Estelar foram obliterados, com exceção de um, sob ataque naquele exato momento. O atacante indetectável dispara uma arma capaz de atravessar defletores e blindagem como se estes não existissem e reassume seu manto de invisibilidade sob o olhar atônito de Kirk e sua tripulação. E é contra este inimigo invencível que a Enterprise deve se bater antes que ele volte à Zona Neutra e fique fora do alcance da Federação, que não pode violar a área sob pena de iniciar uma guerra.

“Equilíbrio de Terror” é um bom e velho filme de submarino, com a Enterprise no papel do destróier. Gene Roddenberry pediu a Paul Schneider que fizesse uma adaptação do ótimo “A Raposa do Mar” e recebeu até mais do que pretendia, com a mecânica do episódio refletindo as idéias positivistas do criador da série com eficiência. Reunido com seus tripulantes, Kirk debate se vale a pena engajar-se com o misterioso adversário – será que há uma mínima chance de vitória? O capitão, apesar de impulsivo, é um grande comandante e está aberto a sugestões. E, pouco a pouco, juntando-se as peças trazidas pelos competentes profissionais presentes, vai se montando um quadro melhor e um plano de combate. Um conceito e tanto para quem normalmente espera desse tipo de premissa 40 minutos de mocinhos fugindo sempre por um triz e de repente alguém aparecendo com uma idéia brilhante vinda do nada (raios, posso até visualizar Wesley Crusher ou Data e Geordi na Nova Geração dizendo “Eles devem desviar a luz polarizando os íons do casco! Se criarmos um inversor de prótons podemos induzir uma despolarização e deixá-los visíveis!”).

A nave inimiga só pode manter sua invisibilidade gastando muita energia, o que impede que tenha bons escudos ou propulsão warp. Seu dispositivo de camuflagem tem mão dupla – ela também não pode ver seus inimigos. Sua arma é realmente irresistível, mas tem alcance limitado. Ela precisa ficar visível para disparar. E quando Uhura capta uma transmissão do misterioso atacante, o que revela sua posição, começa um jogo de gato e rato entre Kirk e seu êmulo romulano. Êmulo mesmo, porque ele é tão astuto e moralmente sólido quanto o capitão da Frota Estelar.

A primeira reação de um trekker vendo esse comandante romulano, inclusive, é “Epa! Esse aí é o Sarek!” E é mesmo. O ator Mark Lenard, que mais tarde interpretaria o pai de Spock tanto na série clássica quanto na Nova Geração, aqui debuta no universo trekkie comandando sua espaçonave com extrema competência, solenidade e dúvidas quanto ao pensamento belicista de seu imperador. Talvez ele tenha sido reaproveitado como vulcano mais tarde porque a produção já tinha prontas as orelhas pontudas protéticas – e se você acha que isso é piada, saiba que os outros romulanos usam capacetes justamente para poupar esta despesa.

Mas eles combinam perfeitamente com a cenografia do interior da nave romulana. Seu design apertado, com os tripulantes todos cercando o computador principal (e, consequentemente, impedindo uma boa visão dele e poupando à produção ter que arrumar mais um cenário cheio de gráficos psicodélicos e luzinhas piscantes), embora criado para poupar despesas, é também uma inversão da ponte da Enterprise, fisica e ideologicamente.

No cruzador da Frota Estelar há um líder no centro, mas seus comandados desempenham suas funções de costas para ele, olhando para fora e não para dentro, com bastante espaço para cada um, num design igual ao da távola redonda arturiana. Na nave romulana, o regime totalitário é belamente sugerido pelo cenário reduzido e, portanto, opressor, com a iluminação em meia luz tornando-o ainda mais sinistro, enquanto os tripulantes apertados em torno do controle central, voltados para dentro, ignorando o exterior, imitam visualmente o próprio fáscio, o machado romano adotado pelos fascistas, em que muitos frágeis feixes unidos em volta da lâmina criam uma arma de guerra, simbolizando os cidadãos subservientes unidos para sustentar o líder militar. Só quem fica longe do console principal é o capitão.

Mas esse capitão está à parte exatamente porque ele não concorda com o pensamento militarista romulano. Com um amigo comenta que, bem sucedida a missão, demonstrando a vulnerabilidade da Federação, seu presente a seu povo será mais uma guerra. Provavelmente por desnecessário, o roteiro não lhe dá um nome, mas assim como o design da nave, tal fato apenas adiciona ao sucesso do episódio, tornando o futuro Sarek a encarnação de um homem como todos nós à mercê dos sonhos militaristas megalomaníacos de George W. Bush líderes que atacam outros povos apenas por não terem armas tão boas.

Assim, a democrática Enterprise, com seu comandante atento anotando as contribuições individuais de seus oficiais cumprindo com competência suas atribuições, dispostos em círculo para mostrar sua igual importância, parte para a batalha com o inimigo que de início parecia invencível. Neste ambiente não há lugar para o racismo demonstrado pelo sr. Stiles depois que se descobre que os romulanos são iguais aos vulcanos (o que propicia um dos melhores dentre os muitos ótimos diálogos do episódio, com o sr. Stiles perguntando “por que não damos o código romulano para o sr. Spock decifrar?” e Kirk retruca, “acredito que o senhor esteja se referindo às habilidades de decriptação do sr. Spock, não, sr. Stiles?”).

A nave romulana, apesar de seu brilhante comandante, não tem nenhuma chance. Depois de muito improviso tático de parte a parte, ela tem a oportunidade para fugir incólume de volta para casa, mas o pensamento militar fascista exige a destruição da Enterprise – sob os protestos do futuro Sarek - e acaba condenando toda a missão. A metáfora se completa e em apenas 50 minutos “Jornada nas Estrelas”, ao contrário dos romulanos, conseguiu um verdadeiro triunfo, com um episódio que funciona em todos os níveis – como aventura, como pensamento filosófico e como comentário de época. Um episódio para figurar em qualquer antologia de grandes momentos da história da tevê.



Digno de nota:

- Contagem de corpos: todas as equipes de oito postos avançados, toda a tripulação de uma nave romulana e um oficial da Enterprise.
- Os torpedos de fótons ainda não haviam sido criados pelos roteiristas, daí os phasers se comportarem neste episódio exatamente como eles, sendo disparados em pulsos (como em “Guerra nas Estrelas” ou no novo longa), ao invés dos tradicionais raios, e explodindo perto da nave inimiga (como cargas de profundidade).
- Além do discurso de Kirk a todos os credos no casamento, a noiva mais tarde aparece ajoelhada, o que sugere que ela é católica, na época pouco tolerados na tevê.
- O grande escritor e também roteirista de Star Trek, Harlan Ellison, deixou de falar com Paul Schneider, quando este lhe contou que havia adaptado “A Raposa do Mar” para a tevê.
- Depois do leme, Uhura assume a navegação da Enterprise, mostrando de vez que é bem mais do que a telefonista.

A seguir: O blogueiro convidado Roger Filósofo analisa "As Mulheres de Mudd".

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