junho 19, 2012

Paquetá, a Galeota Real e D. João VI

Depois da postagem sobre a casa de banhos, mais um pouco sobre o folclórico monarca cuja chegada disparou o Brasil para a condição de país:
A foto de 1899 aí acima é da Galeota Real, usada originalmente por Dom João VI e a Família Real, que dispunham de barcos similares em Lisboa. Foi construída em 1808 em Salvador e trazida para o Rio de Janeiro em 1809. Ei-la no famoso quadro abaixo, de Eduardo de Martino, comemorando a chegada da fragata Constitution ao Rio de Janeiro. Incidentalmente, a USS Constitution, lançada ao mar em 1797, já era à época um navio histórico, tendo afundado cinco naves  de batalha na Guerra de 1812 contra os britânicos e continua até hoje em serviço - o mais antigo barco nesta condição.

Clique para ampliar e conferir a galeota à esquerda, embaixo

A galeota era tripulada por 23 remadores que usavam uniformes especiais em serviço, como se pode conferir na pintura acima, e dispunha em sua popa de um castelo com forrações de veludo e ouro. Os remadores se chamavam "algarves" por serem tradicionalmente oriundos da província homônima. Assim que chegou ao Rio, o barco foi imediatamente posto a serviço da Família Real numa época em que os deslocamentos por terra eram lentos, tortuosos e custosos. Numa capital repleta de rios, mangues e pântanos, com duas baías e litoral oceânico, era ideal para alcançar as províncias costeiras e ribeirinhas.


D. João VI, influenciado pela forte religiosidade da mãe, D. Maria, era profundamente ligado à igreja, e costumava fazer retiros espirituais no então grande convento franciscano de São Boaventura, em Santa Ana (hoje Cachoeiras) de Macacu. O convento funcionou do século XVIII até o meio do século XIX, quando uma série de epidemias e febres esvaziou a região. Suas ruínas, na foto acima, foram tombadas em 1978 e são uma das atrações turísticas da cidade.

Numa de suas viagens ao Convento, depois de reunir-se com monges beneditinos na Ilha do Governador, D. João VI foi colhido por uma tempestade em plena Baía de Guanabara. Após longa luta dos algarves contra os elementos, a intempérie amainou e, exaustos, os remadores carregaram a galeota até o porto mais próximo. Uma praia em Paquetá, que até então nunca tinha sido visitada pelo ainda príncipe regente.

A chegada do manda-chuva da área na Ilha dos Amores causou comoção entre aquele povo pouco acostumado a alvoroços. Talvez o mais ilustre daqueles habitantes fosse o negociante português Francisco Gonçalves da Fonseca. Oficial de milícias, ele era dono da melhor casa da região, provavelmente a única em condições de hospedar um europeu acostumado ao luxo da nobreza absolutista. Assim, ofereceu-a ao regente para que passasse a noite, já que começava a anoitecer e os algarves não tinham a menor condição física de voltar ao Rio, um percurso que a barca leva quase uma hora e meia para fazer hoje em dia, movida a diesel.

Um dos canhões que saudava a chegada de D. João VI permanece lá até hoje, na Praia dos Amores. É o monumento circundado em vermelho acima








Se atualmente Paquetá tem um inegável clima de encanto e charme, no século XIX seu bucolismo devia ser irresistível e D. João VI foi mais um conquistado pela beleza da Ilha dos Amores. A partir de então o príncipe regente passaria a hospedar-se frequentemente na casa de seu novo amigo. Construiu-se na praia dos Tamoios, local de desembarque do ilustre Bragança, um pequeno estaleiro para guardar e reparar a Galeota Real, e dois canhões foram instalados para que seus disparos avisassem da chegada do eminente visitante. Um deles permanece no local como monumento até hoje.

O solar que hospedava D. João VI e abrigava a única biblioteca pública da ilha está interditado após anos de  abandono. Leia mais sobre a sua situação no sítio Ilha de Paquetá, de onde foi tirada esta foto

Mas não era só a beleza da ilha que atraía D. João. Retirada e isolada, Paquetá era ideal para... encontros amorosos! Muitas vezes o regente e posteriormente monarca usou o solar de Gonçalves da Fonseca como uma garçonnière. Sua vida conjugal com d. Carlota Joaquina começara já complicada quando, aos 18 anos, casou-se com a garota de... dez! E ainda tem gente que diz que nossa época sexualiza as crianças muito cedo.

Mas mesmo para os padrões pedófilos da época (1), a garotinha foi considerada nova demais para cumprir seus deveres conjugais e a consumação do casamento acabou posta em compasso de espera. O rapazola comentava "Cá há-de chegar o tempo em que eu hei-de brincar muito com a infanta. Se for por este andar julgo que nem daqui a seis anos. Bem pouco mais crescida está de que quando veio". Quase acertou, foram necessários cinco anos.

Carlota Joaquina gerou os herdeiros requeridos, mas esse começo não auguriava bem a vida do casal e em pouco tempo eles passariam a morar separados. E logo depois o o príncipe estava gerando bastardos (2). Boa parte deles tinham como mães servas ou camponesas, mas quando d. Eugênia de Menezes, da nobreza, dama de companhia e amiga de Carlota desde que ela casara mal chegada aos dois dígitos de idade, estourou um escândalo na Corte. Conta-se que Carlota Joaquina teria ordenado a morte de sua ex-amiga, já que seu sangue azul a fazia uma verdadeira rival à sua posição na família real. Assim D. João aprendeu a ser mais discreto em seus casos extraconjugais. E Paquetá era ideal para mantê-los longe de olhos curiosos e fofoqueiros. E, além disso, havia todo o clima romântico insular - o local não é conhecido como Ilha dos Amores à toa!

Tudo isso, é claro, acabou-se com a volta da família real a Portugal em 1821. Aliás, foi a galeota que transportou a realeza do porto até os navios. O barco permaneceu a serviço de D. Pedro I, de seu filho, D. Pedro II, e  prosseguiu como meio de transporte do Chefe de Estado durante a República Velha. Na foto que encabeça esta postagem, estava recebendo o presidente da Argentina.




A galeota no Museu da Marinha, com um manequim usando o uniforme dos viris (epa!) rapazes que cuidavam dos remos. Abaixo, uma miniatura da bichinha, exposta lá mesmo. Fotos com um velho Xperia X10


A galeota, sem similares em toda a América, permaneceu em serviço até 1920, quando foi usada para receber o Rei Alberto, da Bélgica - que também teve à disposição vagões e trens especiais, atualmente em exibição no Museu do Trem, ao lado do Engenhão. Depois foi aposentada e guardada na Ilha das Cobras. Em 1995 foi restaurada e posta em exposição no Museu da Marinha, na Praça XV, onde o visitante pode conferir todo seu luxo e esplendor, dignos da absolutista e elitista nobreza europeia do século XIX.

(1) Até porque o papel das mulheres no casamento era gerar filhos e as condições da época não favoreciam maternidades tardias. Como já descrevia Gilberto Freyre, elas casavam adolescentes, davam à luz uma vez por ano durante cerca de uma década (a mortalidade infantil elevada diminuía o número de herdeiros) e aos 25 anos eram matronas acabadas que passavam o dia na rede lânguidas e exaustas.

(2) Assim como Carlota. Alguns estudiosos proclamam que até cinco dos filhos do casal possam ter sido de outros homens.

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