setembro 10, 2012

O Jogo da Crueldade



É apenas um jogo, é o que os defensores de videogames costumam responder quando começam as críticas à ultraviolência de jogos como Call of Duty ou Grand Theft Auto. Mas jogos, como toda manifestação cultural humana, costumam refletir o zeitgeist que o rodeia. No século XIX, aqueles joguinhos de tabuleiro com peões tentando chegar primeiro ao final ganharam na Inglaterra versões enfeitadas com elefantes, zulus e outros motivos colonialistas. Na década de 20 do século XX, a era de ouro do capitalismo selvagem e dos robber barons americanos, apareceu o Banco Imobiliário (Monopoly). E na década de 50, logo depos da II Guerra Mundial e no auge da Guerra Fria, surgiu War (Risk), com sua ênfase na conquista mundial. Seguindo essa tendência, na Alemanha dos anos 1930, Rudolf Fabricius lançou um colorido e movimentado jogo para até 6 jogadores, com uma mecânica misturando Ludo e Banco Imobiliário. Seu singelo nome: Fora Judeus (Juden Raus).



O jogador movimentava esse bonequinho colorido aí acima e ia coletando esses repugnantes cones pelo caminho, os judeus, encaixando-os no seu chapéu, como visto abaixo. O objetivo era capturar o máximo que pudesse dos 6 judeus espalhados pelo tabuleiro e levá-los para a fora da cidade, “rumo à Palestina”. Se você está, com toda a justificativa, chocado pela coisa, imagine como, digamos, um americano dos anos 50 ou um brasileiro dos anos 60 reagiria ao saber que os maiores sucessos entre o entretenimento da garotada envolvem matar líderes governamentais, assassinar rivais rumo à montagem de seu império criminoso ou simplesmente atropelar velhinhas?



Juden Raus, no entanto, não compartilhou do sucesso das franquias de videogames ultraviolentos. O jogo lançado em 1936 era de um mau gosto tão inatacável que os próprios nazistas o condenaram. Num artigo em Das Schwarze Corps, o órgão de imprensa da SS, os celerados da suástica argumentam que a iniciativa trivializa a Questão Judaica (que, como eles ressaltam, estão se “esfalfando para resolver”) e transforma o slogan político “Fora Judeus” em um passatempo para crianças. Pior ainda, diz que a ideia é o combustível perfeito para a “escória judia” internacional apontar para essa “enganosa peça” como exemplo da infantilidade dos esforços alemães. Caramba, ser chamado de antissemita pelas SS não é para qualquer um!



Imaginar que um desenhista de jogos e brinquedos pudesse conceber um bando de crianças - e talvez seus pais - em torno de um tabuleiro caçando judeus tão caricaturais e grotescos e se divertindo com isso só mostra a que ponto chegou a dessensibilização do povo alemão ao antissemitismo oficial governamental (como apontado pelos estudiosos de jogos Andrew Morris-Friedman e Ulrich Schädler). No entanto, a era de ouro dos seriados de bangue-bangue, que aqui aconteceu no final dos anos 60 e início dos 70, popularizou o revólver de espoleta a níveis inacreditáveis - todo garoto tinha pelo menos uns dois ou três. Hoje armas de brinquedo são consideradas diversões de gosto duvidoso. No entanto, os videogames, embora sob constante ataque e aconselhamentos de faixas etárias, continuam firmes e fortes.

Num ambiente que nos últimos 30 anos tem sido dominado pela visão neoliberal (e a popularização de Ayn Rand, mais amigável ao capitalismo selvagem do que o Nietszche que ameaçou entrar em moda no princípio dessa era), é mais do que compreensível que joguinhos exaltando o sucesso a qualquer preço, mesmo quebrando certas leis ou desdenhando das autoridades. Assim como a doutrina de guerra preventiva se transforma nas forças especiais de Call of Duty invadindo países inimigos e assassinando seus líderes. Quando os videogames apareceram, eles imitavam esportes e, refletindo a Corrida Espacial, estavam cheios de naves enfrentando alienígenas, o que parece ter desaparecido dos consoles, salvo edições nostálgicas e comemorativas de Space Invaders e seus dependentes.

Será que esses jogos são também apenas jogos, assim como o capitalismo selvagem de Banco Imobiliário (que era proibido nos países comunistas), ou no futuro, numa época mais pacífica e esclarecida, nossos descendentes irão olhar para essas peças de museu e pensar como podíamos treinar nossas crianças com tanta barbárie e violência gratuita e generalizada?

Sem comentários: