novembro 28, 2024

Spartacus e o Carro Popular

 



“Carro popular” em 2023 é um erro. A começar pelos motivos práticos. O mundo inteiro está repensando automóveis e substituindo por melhor transporte coletivo e bicicletas. Encher as ruas com mais motores de combustão pra carregar uma pessoa nestes tempos de aquecimento global é tão século XX quanto o Lula. Que parece que ainda não captou totalmente outras coisas do terceiro milênio além de redes sociais. E, do modo como o mundo mudou, vamos acabar mesmo é financiando motorista de Uber. 


Esses veículos individuais sempre me lembram da frase do Elon Musk pra vender sua ideia de escavar túneis subterrâneos para melhorar o tráfego em já congestionados centros urbanos, de que ele não gosta de transporte público porque você nunca sabe se o sujeito à sua frente é um psicopata assassino (e neste momento aproveito para jactar-me de que nunca gostei do Elon Musk mesmo quando ele era modinha). Como já postei anteriormente (pesquise no meu perfile Celerado Acelerado), a contraposição ao neoliberalismo, ao “a sociedade não existe” é a amizade. E você não faz amigos dentro de um carro. Você está encastelado contra todos aqueles do lado de fora, em direta competição com você por um lugar mais ao sol na meritocracia (suspiro) capetalista. Como fala o Woody Strode em SPARTACUS, “eu não quero saber seu nome porque podemos acabar na arena tendo que matar um ao outro”.







E esse motivo metafórico é o outro ponto que o Lula parece não ter ainda compreendido direito. Em seus primeiros governos, a “inclusão pelo consumo” acabou reforçando essa ideia de que você é o que você consome. Financiar faculdades quando hoje em dia elas viraram basicamente cursos técnicos profissionalizantes avançados formou um bando de técnicos sem teoria, que não compreendem direito os algoritmos de seu trabalho e passam o tempo alternando entre apenas repetir fórmulas velhas ou procurar atalhos com consequências terríveis a médio prazo, com seu pensamento simplista e sem cultura geral que só conhece a Navalha de Occam. Que, aliás, é um macete e não um axioma. Esses cérebros assim moldados só conseguem pensar em seguir os mesmos batidos caminhos - ou então experimentar aquele que todo o mundo sabe que vai acabar deixando você entre o tigre e o precipício, com o galho que o segura partindo. E ainda vai olhar pro morango e berrar indignado, “tomar no cu, morango! Vai pra puta que o pariu” (1). Metaforicamente falando, o pensar fora da caixa seria abrir sua própria trilha, mas isso dá muito trabalho. O vício de raciocinar sempre simplisticamente acaba viciando nossos empreendedoristas em soluções fáceis. 


Tradicionalistas que só conseguem pensar em alternativas tresloucadas e radicais? Onde será que eu já vi isso antes? É por isso que ensinar às pessoas a ter seu castelo móvel, longe dos outros, todos adversários deles, leva esse povo a abraçar as ideologias que tanto vêm atrasando o mundo nos últimos anos. É por isso que essa turma, quando chega ao poder, tem logo ganas de de acabar com filosofia, história, sociologia, essas coisas inúteis nas escolas. Tem que ensinar empreendedorismo (sim! É uma matéria!). Pensar mais profundamente acaba levando as pessoas a compreender que a própria natureza, que eles tanto gostam de citar por sua “luta pela sobrevivência” que “melhora a espécie”, na verdade ensina que cooperação leva muito mais longe do que competição. Que no final acaba sempre deixando só um de pé. E sem saber o que fazer depois que acabou sua razão de viver. Pois nunca aprendeu de outro modo.


  1. Pra quem não pegou a referência zen, https://anovamente.wordpress.com/2016/12/16/conto-zen-uma-parabola/


As Fabricantes de Fantasmas

 Esse esquete foi apresentado pelo EAPE em 2023:


UMA MENINA ESTÁ SENTADA TECENDO FANTASMAS. OUTRA CHEGA E FALA COM ELA.


NANA

Você não vai voltar para casa? Essa praia está fria. O Pedro e a Inês estavam querendo ir jantar na cidade.


VÂNIA

Essa é a melhor hora para tecer fantasmas.


NANA

Pensei que fosse a meia-noite. A hora dos espíritos.


VÂNIA

Exatamente por isso que não. Muito barulho. Fantasmas não devem arrastar correntes. Nem uivar. Apenas causar progressivamente um leve arrepio na nuca…


UMA FANTASMA PASSA DANÇANDO.


NANA

São eles?


VÂNIA

Você pode ver?


NANA

Não devia?


VÂNIA

Se você pode vê-los, pode fazê-los.


NANA

Eu não tenho muita habilidade manual.


VÂNIA

Ninguém tem antes de começar a usá-la.


OUTRAS FANTASMAS PASSAM.


NANA

Estão passando mais.


VÂNIA

Aqui era um local de rituais. 


NANA

De qual?


VÂNIA

De várias. Quando um lugar tem poder, todos acabam descobrindo. Também é assim com pessoas. Mas, tanto um quanto o outro, quando atrai muita gente, acaba sendo destruído.


NANA

Você me parece mais a destruidora.


VÂNIA

Eu sou a que constroi.


NANA

Fantasmas.


VÂNIA

Fantasias.


MAIS MULHERES CONTINUAM  PASSANDO.


VÂNIA

Vê? Elas eram sacerdotisas. Feiticeiras. Mães. Curandeiras. Artesãs. O que faziam era tecido e madeira e, com o tempo, virou pó e lenda. Elas não abraçaram a pedra, preferiram a sutileza a deixar suas marcas.


NANA

Como os fantasmas que você está fazendo de tecido e madeira.


VÂNIA

Como os fantasmas.


AS FANTASMAS ESTÃO DANÇANDO JUNTAS, INVOCANDO ALGO QUE ESTARIA NA PLATEIA.


NANA

Então você não vai voltar para casa?


VÂNIA

Hoje não. Quero vê-las se reunindo. Elas estão vindo. Há muito tempo que não as via todas tão juntas. E a areia está quente. A brisa aquece.


NANA

Elas são lindas. O que estão fazendo?


VÂNIA

Invocando afogados. Está vendo? (APONTA PARA A PLATEIA) Eles estão começando a vir.


NANA

Eles estão em decomposição.


VÂNIA

Voltaram à água.


NANA

Eu não queria ver isso.


VÂNIA

Ninguém nunca quer. Preferem (ERGUE O QUE ESTÁ FAZENDO) os fantasmas.


NANA

Não. É mais do que isso. Eu estava tendo um caso com um homem mais velho. Quarenta anos. E casado.


VÂNIA

Matrimônio em decomposição?


NANA

Não. Eu terminei com ele. Ele não ia deixar a mulher.


VÂNIA

Bom.


NANA

Ele foi me visitar no trabalho na semana antes da gente viajar. Ele está com câncer no estômago.


VÂNIA

É o que conseguimos quando não mastigamos bem as coisas.


NANA

É sério, Vânia.


VÂNIA

É a gestação que ele conseguiu. O sono da razão produz monstros.


NANA

Você produz fantasmas.


VÂNIA

Estamos cercados por eles.


NANA

O tempo todo, Vânia. O tempo todo. Alguns caminhando, como o Rafael. 


VÂNIA

Ele só vai ser um fantasma se você deixar.


NANA

O que eu devo fazer então?


VÂNIA

Seus próprios fantasmas (DÁ A ELA MADEIRA E TECIDO). Você pode vê-los. Você os atrai. Você pode fazê-los.


NANA COMEÇA A FAZER OS FANTASMAS.


VÂNIA

Isso. Deixa a história sair. Deixa a história fluir. Deixe que eles a assombrem. Deixe depois que eles assombrem o mundo.


NANA

Você é assombrosa.


VÂNIA

Sem arrastar correntes. Sem uivar.


VÂNIA SE APROXIMA DE NANA E A BEIJA CARINHOSAMENTE. NANA SORRI. ELAS SE ABRAÇAM E OLHAM PARA AS FANTASMAS INVOCANDO OS AFOGADOS.


NANA

Por que elas estão invocando os afogados?


VÂNIA

Para limpar as águas. E para os afogados voltarem a ver a luz das estrelas. Se não, ambos vivem na escuridão.


ESCURECE. FIM.

UFO, a Série de 1969 que Antecipou as Atuais

 Logo no primeiro episódio de uma série de ficção científica, um piloto que sofreu um acidente e viu seu colega morrer começa a investigar a história toda, por ter certeza de que estão encobrindo a verdade. Logo todos - médicos, seus superiores, as autoridades - insistem veementemente que ele está ainda sob os efeitos do estresse pós-traumático, que é tudo imaginação, e, quando ele prossegue, perde o emprego, sua casa é revirada e marginais invadem sua casa, reviram-na, surram o sujeito e lhe dizem para esquecer a história toda.


E esses são os mocinhos. 


Revisitei recentemente via Vocetubo um seriado a que não assistia desde a adolescência. Quem pousou jovens olhos nele lá no começo dos anos 70 não entendeu muita coisa, mas certamente ficou impressionado com o clima mórbido, soturno e vagamente derrotista dos episódios. Não surpreendentemente a série não só não viu uma segunda temporada, como se tornou uma delicadeza cult em décadas posteriores, pois como já diz o clichê, estava à frente do seu tempo.


Depois de fazer a alegria da garotada dos anos 60 com suas muitas séries com marionetes - Thunderbirds, Capitão Escarlate, Joe 90 - o casal Gerry e Sylvia Anderson resolveu abandonar seus títeres e tentar a mão em algo mais carnudo e ossudo. Como ficção científica com organizações secretas mantendo a ordem no planeta contra invasores extraterrestres eram a especialidade da casa e o zeitgeist da Guerra Fria, seria essa a premissa do programa. Até porque assim poderiam usar plenamente seu ás na manga - Derek Meddings. 


Pra quem não está ligando o nome ao sujeito, ele foi desenhista de produção de várias fitas de James Bond, e o criador de todas aquelas fabulosas miniaturas que povoavam os shows dos bonequinhos. Foi ele quem desenhou os Thunderbirds e todos aqueles outros veículos ultramaneiros do mundo do Socorro Internacional. O Thunderbird 2, particularmente é um dos designs mais icônicos da ficção científica na tevê, uma das mais belas naves a voar pelas telas. 


Depois de Thunderbirds, os Andersons haviam redesenhado suas marionetes para proporções mais reais. A verdadeira razão para os cabeções dos Tracys no Socorro Internacional era que o mecanismo que fazia as bocas se moverem em sincronia com o diálogo tinham que ser montadas neles e, após conseguirem miniaturizar seus componentes, conseguiram instalá-lo no tronco. Já que o visual era mais realista, por que não as historinhas também? E assim nasceu “Capitão Escarlate”.


Capitão Escarlate não tinha nada da alegria familiar dos foguetinhos do Socorro Internacional. Os terráqueos fizeram uma bobagem no espaço e levaram os misteriosos Misterons (eu sei) a abrir hostilidades com o planetinha azul. O capitão Escarlate morria no primeiro episódio, depois de diversos atos de sabotagem, possuído por um dos extraterrestres. Entretanto, por causa dessa fusão com o alienígena, ressuscitou e ganhou assim o dom de retornar à vida cada vez que batesse as botas. E também de ser capaz de detetar os misteriosos Misterons. 

Os Misterons não eram malignos, sua ira era justificada. Eram muito mais avançados e  poderosos do que os terráqueos, que só tinham como maneira de detetá-los os enjoos do herói do título. E, assim, o objetivo da organização do Capitão era contê-los, até porque não tinham como realmente enfrentá-los.


Com essa temática sombria e marionetes em trama de meia hora, a série nunca encontrou seu público. Naquela época ainda era vergonhoso pra preadolescentes, e muito menos adultos, assistir a programas com bonequinhos e de ficção científica. E, com essa história, esquece as crianças. A era do Elogio do Nerd (que acabaria se tornando uma Idade das Trevas) ainda não havia começado. Então, quando os Andersons tiveram a chance de realmente fazer um programa com gente, uma hora de duração e dirigido a um público mais velho, resolveram reciclar a ideia.





Passada em 1980, a nova série conta a história da SHADO, uma organização secreta que combate secretamente (dã) alienígenas sobre os quais sequer se sabe o que querem exatamente com humanos. Em um dos episódios, eles descobrem que um dos extraterrestres tem órgãos humanos, o que leva a pensar que eles usam os terráqueos como reservas para transplantes, mas nunca se tem certeza. A sua tecnologia é muito mais avançada, e como os Mysterons, parecem ser capazes de controlar as mentes humanas. A única esperança da SHADO é que, aparentemente, é impraticável para os invasores mandar mais do que um pequeno punhado de naves por vez, provavelmente por conta da dificuldade de viagens interestelares.


Numa medida para economizar no orçamento, o QG da SHADO é disfarçado como um estúdio de cinema, mas esse aparente atentado à suspensão de descrédito funciona redondinho graças à coerência temática. Como controladores de mentes e organizações secretas, a sétima arte também fundamenta-se em dobrar a realidade à sua vontade. No episódio descrito, o primeiro do show após o piloto, o diretor da SHADO marca um encontro, com o sujeito investigando por conta própria, aparentemente numa famosa praça numa cidade distante. Mas em verdade era apenas um cenário a algumas centenas de metros do escritório. Uma arma falsa se revela verdadeira e novamente falsa ao final, só pra deixar Chekov maluco. No final dos anos 60, a profusão de informações começa a chegar ao seu patamar crítico com a universalização da televisão, os rádios portáteis, a transmissão instantânea de imagem via satélite. A difusão do conhecimento leva ao questionamento e juntando-se a isso a paranoia da Guerra Fria, com a proliferação de ditaduras financiadas pelos dois blocos e chegamos ao limiar da era pós-verdade que a série reflete.


E, além da paranoia, da incerteza, de estar numa luta que não pode vencer, apenas conter, os integrantes da SHADO ainda quase sempre têm negada uma verdadeira vitória. Eles morrem aleatoriamente, são usados pelos alienígenas, cometem erros pessoais com terríveis consequência, todos pontos de honra de shows sérios de hoje em dia, mas um pedido de cancelamento para ficção científica na tevê da época. Dos Thunderbirds que eram uma dos  família feliz salvando em cada episódio dezenas ou centenas de vidas com sua engenhosidade a paranoicos manipuladores com sérias dúvidas sobre sua capacidade, com frequentes baixas desnecessárias é um longo caminho. 


E quanto mais longo o caminho, mais fácil a perdição. Aquele sujeito investigando sobre a SHADO, por exemplo, não é um heroi em busca da verdade, mas tentando encontrar a redeção - foi sua recusa em deixar o local em que seria travada uma batalha com o UFO que levou à morte de seu copiloto. Não só ele, mas os protagonistas também cometem erros e atos seriamente antiéticos. Como os alienígenas, manipulam a verdade e as emoções (e, em um dos episódios, até o tempo). Ninguém é perfeito, ninguém sabe a verdade, ninguém é um heroi e dificilmente aos combatentes terráqueos é concedida uma inquestionável vitória completa. 


Questionar a Guerra Fria durante a Guerra Fria e quando o público de tevê - e de ficção científica - ainda estava buscando apenas conforto, desacostumado a complexidades na telinha, não era a melhor maneira de conquistar o coração e as mentes das massas. Ainda mais com toda aquela psicodelia na produção, aliás, quase insuportavelmente pobre para os padrões de hoje. Inclusive é surpreendente como na terra dos atores shakespeareanos não seja possível arrancar atuações pelo menos passáveis de vários dos viventes nessa confusão. Talvez eles também não tenham entendido que estavam num embrião do formato que hoje faz a festa dos canais a cabo e plataformas de estrímem, sempre em busca de prestígio e anti-herois para seus shows.


UFO é provavelmente a melhor série de invasores alienígenas de sua época - muito mais provocante e pelo menos tão paranoica quanto “Os Invasores” e localizada num universo consideravelmente mais cinza e cínico do que (o melhor sci-fi de tevê de todos os tempos) “Jornada nas Estrelas”. Pode ser encontrado de graça no Vocetubo, tanto com legendas em inglês quanto dublado em português. Não vou postar o linque aqui para  não derrubarem os programas, mas basta uma busca pra bater nela. Vale dar uma conferida em pelo menos alguns dos episódios e, se forem em busca de apenas um, que não seja o piloto, claramente feito antes que começasse a produção em linha e em busca ainda de sua personalidade.


Pejada e Embaraçada

 No colégio o (ótimo) professor de português, o Zé Paulo, mandou ler “Casa de Pensão”. Na época eu discordava ideologicamente dos naturalistas por causa de seu determinismo, sem saber que ia acabar discutindo com amigos que se tornaram fascistas que eles não têm ideia de como é crescer numa comunidade e numa sociedade racista. Como bom adolescente, queria que os românticos tivessem razão e até hoje sou fã de super-heróis por causa dessas inclinações literalmente pueris.


Foi nesse livro que eu primeiramente descobri que “pejada” significava grávida. O volume narrava a história de um cearense rico que vinha estudar no Rio e se hospedava na casa de pensão (dã) de um amigo que empobrecera. A ideia do locatário era proxenetar a própria irmã e com isso levá-lo a casar-se com ela. Lembro da vívida descrição de como ela se deixou ser levada a com ele deitar-se e como eles se tornaram amantes tão contumazes que ela soltava o cabelo e desvestia-se já na frente do cabra. Só que o nordestino encarava aquilo apenas como um casinho e, quando resolveu pirulitar-se, o irmão da “perdida” foi à delegacia prestar queixa de sedução, onde lhe perguntaram se ela ficara pejada.


Até então eu conhecia “pejo” apenas no sentido de opróbrio e certamente o AA (Aluísio Azevedo, não os Alcoólatras Anônimos) estava aproveitando essa dupla jornada do vocábulo para transmitir a vergonha do personagem, que é descrito como sentindo-se humilhado por sua irmão não ter emprenhado - reparem no uso de termos usados para o mundo animal.









Aprendi também com um anúncio d’antanho de um curso de espanhol que “embarazada” significa em castelhano. Pra quem é muito jovem (ou está fingindo ser não lembrando), o comercial era um sujeito em alguma terra portenha precisando de uma ficha (vá pesquisar, garoto) prum orelhão (idem) e chega para um casal do lado, onde o vivente tem cara de poucos amigos, mostrando uma ficha pra garota e dizendo que precisava fazer “una ligación”, com a legenda explicando que em nossa língua irmã significava transar. Quando o namorado da jovem furibundava, ele tentava acalmar o ânimo dizendo que não queria deixar a moça “embarazada” (grávida).


Eu sempre achei que esse sentido de “embarazada” referia-se ao embaraço que é carregar um vivente parasitando-a por 9 meses e esmagando todos os seus órgãos internos, até que nesta semana uma luz acendeu-se em minha cabeça lendo “Um Passeio pelo Rio”, do Joaquim Macedo (com a sensacional história do Recolhimento do Parto, que aqui em breve contarei). “Pejo”, “embaraço”, parece que os ibéricos pensam que é uma vergonha estar grávida - porque inegavelmente a donzela não é mais moça. Ou a moça não é mais donzela. Apesar de procriar ser o principal papel da mulherada até recentemente - e ainda hoje em muitos lugares e imaginários fascistas -, mesmo assim o fato da cabrocha entregar-se aos reclames da carne, sentir tesão e gozar é percebido por quem está de fora (principalmente da cama dela) como razão para opróbrio e vergonha.


Realmente não dá pra nós, machos heterossexuais, cis/brancos/classe média, termos ideia do que é ser mulher (e presa) nesse mundo. Mesmo as legalmente casadas, desempenhando o papel que se espera delas, foram momentaneamente putas decaídas e só a maternidade as redimirá. Palavras podem mentir, mas não o subtexto. Saulo de Tarso fez muita nossa cabeça e nossa linguagem atraiçoa nosso machismo e nossa misoginia. É como eu sempre digo, o povo cobiça tanto as mulheres pelos motivos errados que estão perdendo a chance de viver num mundo onde todos os motivos são certos.


maio 06, 2024

Arte pela Arte

Quando eu fui visitar o meu compadre Zé no ano passado, tirei uma foto da praça central de Paraty bastante atraente. Melhor ainda ficou depois que acertei a perspectiva, com os lindos sobrados mostrando linhas paralelas. E mais ainda depois que, no editor do celular, cliquei num necessário, porém feio, latão laranja de lixo, e o apaguei, deixando a cena bucólica e simétrica. 





Fã de tecnologia que sou, mostrei o resultado final ao meu compadre e me preparei para uma nova captura da Procissão do Fogaréu com o fiel celular. Zé, então, com seu jeito contrariador dele, não resistiu a um comentário sobre a pretensa foto, “você sabe que isso não é real, não é?”. Ao que eu respondi, “cara, vou te contar um segredo. Fotos NUNCA foram reais”.


Também lá nos meus 22 anos, por causa de uma moça que estava querendo se tornar atriz, li um texto que ela me passou do curso que ela fazia com a Bia Lessa. Se não me engano, era Diderot, dizendo que o ator perfeito não participava da vida, apenas a observava nas outras pessoas para poder imitar como elas reagiam às emoções - uma ideia contraintuitiva face ao senso geral de que artistas devem viver intensamente para aprender sobre a natureza humana, conceito que o Stanislavsky codificou e fez a fortuna de muita gente, a começar pelo Lee Strasberg.


Eu me lembro de ter tentado explicar à Rita - esse era o nome da moça - que a vida não é um filme ou peça. Que um ator tinha que expressar em um único instante o que no dia a dia vemos espalhado por diversos momentos, entrecortados às vezes por diversas outras preocupações e alegrias rotineiras e mesquinhas. Ela concordou e me levou ao encontro com a Bia Lessa, mas quando ia vencer a timidez - eu nem sequer estava inscrito no curso, afinal -b ela mudou de assunto e começou a falar sobre o gato de Schrodinger, não me lembro por quê. Talvez porque física quântica estivesse em voga entre artistas na época, embora  não exatamente física quântica, só o conceito de que o observador altera o observado.





Eu podia ter explicado meu ponto de vista pra Rita - e até pra Bia Lessa - bem mais facilmente se me lembrasse das aulas do meu ótimo professor de português que, falando de arte moderna, mostrou aquele quadro do Magritte, A Traição das Imagens. É uma pintura de um cachimbo com a inscrição “Isto não é um cachimbo” (em francês, é claro). O Zé Paulo então, perguntou pros alunos por que aquilo não era um cachimbo e levou um bom tempo até alguém - não eu, snif - respondeu “porque é a pintura de um cachimbo”.


Porque arte não é real. Porque a realidade, apesar do que os reaças e fãs de Ayn Rand possam achar, é uma experiência subjetiva. Vivemos numa realidade virtual criada em nosso cérebro pelos nossos sentidos. Pessoas que nasceram cegas, ou perderam a visão muito cedo, quando voltam a enxergar têm que passar ainda muito tempo andando de bengala branca. Porque precisam aprender a entender o que estão vendo. Há casos inclusive de gente que recupera a visão, mas permanece na prática cega porque, como acontece com muita coisa que não aprendemos quando ainda jovens, eles não conseguem jamais conectar aquelas imagens que lhes chegam à mente com o mundo em que caminham.


Na semana passada, enquanto caminhava pelo Aterro, voltando a pé para casa como gosto de fazer, privilegiado (literalmente) que sou de morar na Zona Sul e trabalhar na Cidade, vi a lua nascendo, saquei o celular e tirei a foto abaixo. Há quase 40 anos tirei uma parecida, numa parada no interior da Bahia, numa viagem em ônibus de rua até Fortaleza. Pra isso tive que usar minha velha Exa IIA, que herdara do meu pai, bem como sua teleobjetiva de 200 mm (com mofo nas lentes). Dentro da câmera, um rolo de um dos primeiros filmes de grão tabular lançados pro consumidor final (embora na época eu nem soubesse o que era isso), um Kodak VR (não me lembro se 100 ou 200). Tive que improvisar suporte pra tele com uma pedra, apoiei a câmera num meio-fio e fiquei segurando o disparador, sem nem ao menos conseguir ver a cena, a não ser todo torto antes, por 10 segundos. 





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Como vocês podem ver, tirar uma foto dessas em 1984 exigia um equipamento caro (ou velho e herdado), conhecimento prático e teórico de fotografia, sorte e dedicação. Ficou tão impressionante e diferente que fiz um poster dela e está pendurado até hoje na minha sala. Quando cheguei no trabalho da loja que ampliou, que era do lado, uma colega também achou tão destacada que pediu o negativo pra fazer uma cópia. Já a versão 2024 exigiu apenas um (também valioso) telefone. Mas mesmo assim, apesar de todo o auxílio tecnológico, esse não é o elemento decisivo. Basta ver as duas imagens pra se perceber que tem alguém aí que GOSTA dessa composição.


Um amigo meu em rede social, quando começamos a postar as fotos da lua, como sói acontecer sempre que ela nasce avermelhada e ilusoriamente grande no horizonte, ao ver as minhas, comentou apenas que meu celular era muito bom e riu quando eu falei - é verdade, um tanto ironicamente - que o fotógrafo era melhor. Mas em qualquer momento de criação, pensado como arte ou não, existe uma série de escolhas. No caso dessas fotos, por exemplo. Quando a lua começou a nascer, dirigi-me imediatamente à foz do Carioca, porque sei que que o rio entrando na direção da terra providencia um melhor caminho aquático para o rastro luminoso selenita. Também é cercado por arbustos, que providenciam o verde para dar algum contraste na foto. E ainda foi preciso fechar a íris para que o céu não ficasse claro demais, mas não tanto que tirasse os arbustos da imagem. E escolher a lente e o enquadramento.


Diz uma anedota que um famoso diretor de cinema, compromissado com a adaptação para as telas de uma bem-sucedida peça, foi assisti-la. O também famoso diretor teatral, ao encontrá-lo, teria comentado “vocês de cinema são muito complicados. Se eu fosse filmar essa peça, eu poria a câmera numa poltrona e deixaria a encenação correr”, ao que o seu correspondente da sétima arte teria retrucado, “ah, certo… mas EM QUAL POLTRONA você poria a câmera?”


Se os editores fotográficos hoje geram cenas bem diferentes das registradas nos sensores, eles estão traindo quem? Quando eu olhava para o casario de Paraty, eu só via a beleza das casas. Minha mente nem registrava aquele latão de lixo laranja. Se estivéssemos na época das câmeras que não tiravam fotos noturnas sem ajuda de tripés e outros subterfúgios, eu a teria guardado na memória sem aquele latão e ela teria sido a verdade para mim e assim que eu a tentaria transmitir se, digamos, tentasse evocá-la numa pintura anos depois. Se é verdade que editores de imagem generativos e inteligências artificial podem danificar o fotojornalismo, são apenas mais e mais democráticas ferramentas para produção artística. Segundo meu amigo cineasta Zé José, antes do terceiro milênio, menos de 200 pessoas tinham dirigido um filme no Brasil. E então passou a ser digital.


Enquanto houver uma escolha a ser feita e um assunto sobre o qual se queira discorrer, arte vai continuar sendo uma inverdade, uma mentira, um engodo que nos envolve e nos emociona, com a qual sofremos, amamos e aprendemos a viver. Como a própria realidade, que existe para nós apenas em nossa mente e só a criatividade consegue transmitir a outro ser humano. Porque, em arte, a inverdade é a única realidade.


abril 23, 2024

Por Que Homens Acham Que Sua Missão no Mundo é Comer o Máximo Possível de Mulheres

  (Spoiler: não é pelo prazer do sexo)


Meus amigos de Caralivro insistem em ler feiquenios e raciocínios simplórios e literais dessas páginas conservadoras viralizando o que naquelas plagas passa por inteligência e cultura (céus, tem saites e vocetubos de Cavaleiros Templários!). O modelo deles, é claro, é o Olavo de Carvalho, que normalmente é jogado no mesmo saco de seus seguidores (ou devo dizer acepipes, como o assecla que chegou a ministro da educação?) pelo povo que não se deixa impressionar por suas falácias. O que é um erro crasso, sobre o qual falo depois em outro textão. Este é pra falar da minha galera que não resiste a postar 1 comentário provocador no Caralivro de influenciadores fascistas com milhares de seguidores concordatários, o que leva o algoritmo do Feice a jogar a postagem na minha Linha do Tempo.


A postagem do reaça era sobre como homens PRECISAM abandonar as mulheres que venham a traí-los. Não o contrário, porque mancebos podem ceder a uma tentação sem deixarem de amar sua parceira, sem maiores problemas. Mas já as mulheres, quando resolvem pular a cerca é porque querem demonstrar que o amante é melhor do que o seu macho em tudo, é porque não têm mais nenhum amor,  querem humilhar e expor ao escárnio seu companheiro. Uma amiga minha comentou que esse pensamento é um coletivo de estultícias, o que fez o algoritmo me expor o que, em verdade, é um assombroso assomo do raciocínio machista da extrema-direita. Porque os apavorantes piores pesadelos deles sempre incluem exatamente isso: fêmeas sexualmente independentes.


Elas os aterroriza por viverem eles num mundo onde todos os jogos são de soma zero. Toda relação humana é uma relação de poder, mas podem todos sair ganhando se  estiverem a fim de colaborar. Se você só raciocina em termos de ganhadores e perdedores, somando-os você obtém zero - daí o termo. A diferença é como fazer uma vaquinha pra comprar uma bola ou dar um jeito de conseguir sozinho a grana pra obrigar todo o mundo a ter que aturá-lo e escalá-lo como o dono do time. Até o dia que não aguentarem mais e fizerem uma vaquinha pra comprar uma bola e deixar você de  fora. Nem sei mais se essa metáfora faz sentido numa era em que lindas bolas de couro sintético feitas na China custam menos do que uma Dente de Leite na minha época, mas textão sobre a economia industrial na beira da era pós-escassez fica pra outro dia.


Não adianta tentar escapar dizendo o quanto você é zen: toda relação humana é de poder e tendemos a nos tornar amigos daqueles que nos admiram ou que admiramos e nos julgam iguais. A maneira como seu chefe, que inegavelmente tem mais poder do que você, o trata, vai dizer quase tudo sobre o clima no seu local de trabalho. As maiores demonstrações de poder costumam vir, pouco surpreendentemente, do pessoal mais inseguro. Ao mesmo tempo, essa mesma antipática criatura muitas vezes é a mesma que confunde vida profissional com vida pessoal, pois insegurança e falta de socialização costumam andar juntas. Muitos funcionários tornam-se cúmplices, ou por serem mesquinhos aproveitadores, ou por serem igualmente inseguros e valorizarem associações com superiores hierárquicos, ou simplesmente por síndrome de Estocolmo, que não precisa de terroristas literais. Basta um relacionamento pessoal ou profissional. Todo o mundo teve um chefe de esporros homéricos e que  não quer voltar pra casa e gosta muito de organizar comemorações - muitas vezes constrangedoras -  no local de trabalho.


E qual é a escala que mede o índice de sucesso de uma pessoa, que dá a ela uma aura impositiva de respeito, de poder? Na nossa sociedade, provavelmente, é a capacidade dos sujeito - pelo menos do sexo masculino - em conseguir sexo em quantidade com parceiras que preencham os padrões de qualidade gerais, ou pelo menos de sua comunidade. Mais do que fama e dinheiro - ambos são apenas instrumentos. Como o famosamente narcisista Donald Trump, profunda e confessadamente obcecado com status, já declarou em seus livros, o que importa numa transação não é ganhar a grana, mas mostrar ser capaz de amealhá-la. É ser o vencedor! 


Isso é porque, na verdade, RESPEITO é uma mercadoria mais preciosa do que dinheiro.  Você pode comprar dinheiro com respeito, mas não respeito com dinheiro. Ainda mais numa época em que uma migalha de respeito o capacita a ter seu próprio canal de vocetubo, instagram, declarar-se influenciador e ganhar a vida apenas explorando esse recurso tão valioso. Em compensação, lembre do quanto Eike Batista nunca se impôs, apesar de toda a fortuna que herdou e, durante um certo tempo, multiplicou. E pouco ajudou no seu caso ter se casado com uma bela mulher famosamente apaixonada por outro e que o largou para se amigar com um consideravelmente menos financeiramente dotado bombeiro. Que comecem as piadas sobre dotes e afins.


Todos nós temos de alguma forma inculcado esse julgamento de valor pelas habilidades heterossexuais dos homens. Sim, heterossexuais - daí mais um motivo para tanto desprezo por gays. É por isso que gostamos tanto de escancarar nossas pretensas façanhas amorosas. Mas, entre a direita, com muito menos imaginação e consequente consideração por assuntos mais metafísicos e alternativos, essa escala de respeito atinge níveis imanes de paranoia. 


É assim que, em seus olhos, uma mulher não trai seu companheiro por aventura, carência, química, atração, curiosidade, ou mesmo por amor. Não, o que ela está fazendo é mostrar ao seu homem - e, caso venha a saber, seus conhecidos - é um pobre coitado, betaboy, incapaz de satisfazer sua medalha de honra ao mérito. Um Eike Batista sem nem ao menos uma Ferrari. O problema não é terminar um relacionamento amoroso (que, segundo alguns neurocientistas, é a mesma química de largar cigarro ou heroína), mas espezinhar o respeito que o sujeito comanda, expô-lo ao ridículo, minar sua hombridade, obliterar seu status.


A postagem acredita que não é esse o caso dos homens quando traem suas mulheres. Afinal de contas, a medida do sucesso feminino não é pela quantidade de sexo que consegue, mas de matrimônios. Afinal de contas, ELA é o prêmio. Se ela quiser sexo, basta se aproximar de algum macho. Nenhum recusa um troféu de “empregado do mês”, imagina uma conquista. É por isso que na comunidade incel - os caras que não conseguem ter atvidades sexuais que envolvam  outras pessoas - elas são conhecidas como as “guardiãs dos portões”. É a elas que cabe decidir a quem se abrirão, abrindo  também  as portas do sucesso e do respeito.


Portanto, as mulheres não podem ser julgadas pela quantidade e qualidade de sexo que consigam, uma vez que elas são o objetivo desse jogo. Sim, porque é um jogo. Sexo deixa de ser intimidade, diversão, afeto, aventura e torna-se uma obrigação, um dever de casa. É por isso que os incels se tornam tão misóginos e têm tanta  dificuldade em terem um relacionamento. Não é isso  que eles querem, é uma busca por afirmação, é um símbolo de status. E, para as mulheres, este é medido pelo homem que consegue como marido. Que vai sustentá-la, ideia que persiste subconscientemente mesmo nesta época em  que existe uma boa chance de que suas companheiras ganhem mais do que eles.


Assim, se ela for traída, desde que ele não a largue, não importa. Pelo contrário, se ele  tem amantes atraentes, só aumenta a medida dele, o que, por consequência, também a valoriza. Afinal, tendo tantas à disposição, foi com ela que ele decidiu montar um lar. Melhor do que ser vista como a esposa daquele cara que está com ela porque é a única que ele jamais conseguiu.


Mas não terminam aí  as revelações da  postagem. É interessante notar,  como já disse acima, que o sujeito não vê possível  uma mulher trair alguém  por atração, aventura, carẽncia, ou mesmo por se apaixonar. Porque, no fundo, eles as enxergam como seres  sem  iniciativa. Uma moça compromissada permanecerá assim por ter conseguido seu objetivo principal e deste estado só sairá por ódio. Não existe amor nesses relacionamentos, apenas comodidade, busca por respeito e ódio. 


Se a mulher é um objeto, um prêmio, ela não tem agenda própria. Seu único universo  é seu homem e uma eventual traição é para atingi-lo, não por algum motivo dela. E, confirmando a visão narcisista de mundo do postador, também não existe o outro. Não existe a sedução do outro, não existe a atração que o outro  exerce, não  existe o  amor  que o outro desperta ou sente. Não há um outro, tudo que existe é ele e o respeito que ele impõe.  Os outros são apenas extensões dele e de sua posição no mundo, de sua autoestima. Não lhe passa pela cabeça que, digamos, o Brad Pitt  ligando  todo o dia para a sua mulher declarando seu amor e lhe  mandando presentes possa talvez,  apenas talvez,  levá-la a considerar  uma  inconsequente noite de aventura.


É essa a base do neoliberalismo, do objetivismo, do fascismo. Não existem outros. Existem  apenas eu e  meu status. Não existe empatia.  Não existe coletividade. A sociedade existe para me servir. O mundo é apenas uma extensão de meus desejos. Uma visão imatura de mundo, sexualidade e sociedade. Uma visão  tchutchuca,  uma  visão sem humor, sem afeto. Uma visão sem imaginação de como as coisas possam ser diferentes. É por isso que é tão importante mudar a cultura quanto a femininismo,  homofobia e alteridade. É  por isso que esses assuntos não são mimimi ou vitimismo.  Porque o grande objetivo desses movimentos inclusivos é fazer os indivíduos enxergarem o outro. Religar, como  na verdadeira concepção de religião e não a  simplificação de um super-herói que mora no  céu pra manter o ego vivo mesmo após a morte do corpo. Mudar essa concepção é tão importante porque depois que o sujeito perceber o outro, o resto, como uma fila de dominós, vem todo junto.