Logo no primeiro episódio de uma série de ficção científica, um piloto que sofreu um acidente e viu seu colega morrer começa a investigar a história toda, por ter certeza de que estão encobrindo a verdade. Logo todos - médicos, seus superiores, as autoridades - insistem veementemente que ele está ainda sob os efeitos do estresse pós-traumático, que é tudo imaginação, e, quando ele prossegue, perde o emprego, sua casa é revirada e marginais invadem sua casa, reviram-na, surram o sujeito e lhe dizem para esquecer a história toda.
E esses são os mocinhos.
Revisitei recentemente via Vocetubo um seriado a que não assistia desde a adolescência. Quem pousou jovens olhos nele lá no começo dos anos 70 não entendeu muita coisa, mas certamente ficou impressionado com o clima mórbido, soturno e vagamente derrotista dos episódios. Não surpreendentemente a série não só não viu uma segunda temporada, como se tornou uma delicadeza cult em décadas posteriores, pois como já diz o clichê, estava à frente do seu tempo.
Depois de fazer a alegria da garotada dos anos 60 com suas muitas séries com marionetes - Thunderbirds, Capitão Escarlate, Joe 90 - o casal Gerry e Sylvia Anderson resolveu abandonar seus títeres e tentar a mão em algo mais carnudo e ossudo. Como ficção científica com organizações secretas mantendo a ordem no planeta contra invasores extraterrestres eram a especialidade da casa e o zeitgeist da Guerra Fria, seria essa a premissa do programa. Até porque assim poderiam usar plenamente seu ás na manga - Derek Meddings.
Pra quem não está ligando o nome ao sujeito, ele foi desenhista de produção de várias fitas de James Bond, e o criador de todas aquelas fabulosas miniaturas que povoavam os shows dos bonequinhos. Foi ele quem desenhou os Thunderbirds e todos aqueles outros veículos ultramaneiros do mundo do Socorro Internacional. O Thunderbird 2, particularmente é um dos designs mais icônicos da ficção científica na tevê, uma das mais belas naves a voar pelas telas.
Depois de Thunderbirds, os Andersons haviam redesenhado suas marionetes para proporções mais reais. A verdadeira razão para os cabeções dos Tracys no Socorro Internacional era que o mecanismo que fazia as bocas se moverem em sincronia com o diálogo tinham que ser montadas neles e, após conseguirem miniaturizar seus componentes, conseguiram instalá-lo no tronco. Já que o visual era mais realista, por que não as historinhas também? E assim nasceu “Capitão Escarlate”.
Capitão Escarlate não tinha nada da alegria familiar dos foguetinhos do Socorro Internacional. Os terráqueos fizeram uma bobagem no espaço e levaram os misteriosos Misterons (eu sei) a abrir hostilidades com o planetinha azul. O capitão Escarlate morria no primeiro episódio, depois de diversos atos de sabotagem, possuído por um dos extraterrestres. Entretanto, por causa dessa fusão com o alienígena, ressuscitou e ganhou assim o dom de retornar à vida cada vez que batesse as botas. E também de ser capaz de detetar os misteriosos Misterons.
Os Misterons não eram malignos, sua ira era justificada. Eram muito mais avançados e poderosos do que os terráqueos, que só tinham como maneira de detetá-los os enjoos do herói do título. E, assim, o objetivo da organização do Capitão era contê-los, até porque não tinham como realmente enfrentá-los.
Com essa temática sombria e marionetes em trama de meia hora, a série nunca encontrou seu público. Naquela época ainda era vergonhoso pra preadolescentes, e muito menos adultos, assistir a programas com bonequinhos e de ficção científica. E, com essa história, esquece as crianças. A era do Elogio do Nerd (que acabaria se tornando uma Idade das Trevas) ainda não havia começado. Então, quando os Andersons tiveram a chance de realmente fazer um programa com gente, uma hora de duração e dirigido a um público mais velho, resolveram reciclar a ideia.
Passada em 1980, a nova série conta a história da SHADO, uma organização secreta que combate secretamente (dã) alienígenas sobre os quais sequer se sabe o que querem exatamente com humanos. Em um dos episódios, eles descobrem que um dos extraterrestres tem órgãos humanos, o que leva a pensar que eles usam os terráqueos como reservas para transplantes, mas nunca se tem certeza. A sua tecnologia é muito mais avançada, e como os Mysterons, parecem ser capazes de controlar as mentes humanas. A única esperança da SHADO é que, aparentemente, é impraticável para os invasores mandar mais do que um pequeno punhado de naves por vez, provavelmente por conta da dificuldade de viagens interestelares.
Numa medida para economizar no orçamento, o QG da SHADO é disfarçado como um estúdio de cinema, mas esse aparente atentado à suspensão de descrédito funciona redondinho graças à coerência temática. Como controladores de mentes e organizações secretas, a sétima arte também fundamenta-se em dobrar a realidade à sua vontade. No episódio descrito, o primeiro do show após o piloto, o diretor da SHADO marca um encontro, com o sujeito investigando por conta própria, aparentemente numa famosa praça numa cidade distante. Mas em verdade era apenas um cenário a algumas centenas de metros do escritório. Uma arma falsa se revela verdadeira e novamente falsa ao final, só pra deixar Chekov maluco. No final dos anos 60, a profusão de informações começa a chegar ao seu patamar crítico com a universalização da televisão, os rádios portáteis, a transmissão instantânea de imagem via satélite. A difusão do conhecimento leva ao questionamento e juntando-se a isso a paranoia da Guerra Fria, com a proliferação de ditaduras financiadas pelos dois blocos e chegamos ao limiar da era pós-verdade que a série reflete.
E, além da paranoia, da incerteza, de estar numa luta que não pode vencer, apenas conter, os integrantes da SHADO ainda quase sempre têm negada uma verdadeira vitória. Eles morrem aleatoriamente, são usados pelos alienígenas, cometem erros pessoais com terríveis consequência, todos pontos de honra de shows sérios de hoje em dia, mas um pedido de cancelamento para ficção científica na tevê da época. Dos Thunderbirds que eram uma dos família feliz salvando em cada episódio dezenas ou centenas de vidas com sua engenhosidade a paranoicos manipuladores com sérias dúvidas sobre sua capacidade, com frequentes baixas desnecessárias é um longo caminho.
E quanto mais longo o caminho, mais fácil a perdição. Aquele sujeito investigando sobre a SHADO, por exemplo, não é um heroi em busca da verdade, mas tentando encontrar a redeção - foi sua recusa em deixar o local em que seria travada uma batalha com o UFO que levou à morte de seu copiloto. Não só ele, mas os protagonistas também cometem erros e atos seriamente antiéticos. Como os alienígenas, manipulam a verdade e as emoções (e, em um dos episódios, até o tempo). Ninguém é perfeito, ninguém sabe a verdade, ninguém é um heroi e dificilmente aos combatentes terráqueos é concedida uma inquestionável vitória completa.
Questionar a Guerra Fria durante a Guerra Fria e quando o público de tevê - e de ficção científica - ainda estava buscando apenas conforto, desacostumado a complexidades na telinha, não era a melhor maneira de conquistar o coração e as mentes das massas. Ainda mais com toda aquela psicodelia na produção, aliás, quase insuportavelmente pobre para os padrões de hoje. Inclusive é surpreendente como na terra dos atores shakespeareanos não seja possível arrancar atuações pelo menos passáveis de vários dos viventes nessa confusão. Talvez eles também não tenham entendido que estavam num embrião do formato que hoje faz a festa dos canais a cabo e plataformas de estrímem, sempre em busca de prestígio e anti-herois para seus shows.
UFO é provavelmente a melhor série de invasores alienígenas de sua época - muito mais provocante e pelo menos tão paranoica quanto “Os Invasores” e localizada num universo consideravelmente mais cinza e cínico do que (o melhor sci-fi de tevê de todos os tempos) “Jornada nas Estrelas”. Pode ser encontrado de graça no Vocetubo, tanto com legendas em inglês quanto dublado em português. Não vou postar o linque aqui para não derrubarem os programas, mas basta uma busca pra bater nela. Vale dar uma conferida em pelo menos alguns dos episódios e, se forem em busca de apenas um, que não seja o piloto, claramente feito antes que começasse a produção em linha e em busca ainda de sua personalidade.