fevereiro 26, 2008

A noite tem grilos, grilos soando alto e morcegos e outros insetos noturnos e corujas, dá pra ouvir as corujas também, e tem o rio, o rio que domina a cidade, o rio que é a cidade, o rio das Monções, as cachoeiras, e tem aqui e ali um charco e o charco tem os sapos, línguas e bolsas de ar, tudo, tudo fazendo tão mais barulho do que se pode imaginar numa cidade grande onde os automóveis arranham as paredes de concreto com seus decibéis, mas perturbam, os ouvidos não doem com o silêncio como de uma cidade pequena mas nem tão pequena e nem tão mato, o silêncio de uma cidade com prédios e pessoas pacatas, quatro andares e os moradores que nunca saíram de lá ou voltaram para sua aposentadoria, para criar as crianças, para fugir da violência do Rio ou da turbulência, do barulho, o barulho que invade até a cidade de Monções e eu também, estou fugindo, estou fugindo do barulho que invade meu corpo e minha alma, estou fugindo da confusão, mas não estou fugindo da turbulência, estou fugindo para Monções, tem o Festival, dá pra ganhar algum dinheiro e estou querendo fugir, pegar um ônibus noturno para ver a estrada iluminada só pela lua, o ronco do motor do ônibus se espraiando como ondas de baías calmas e poluídas, envolvendo, como um livro, a estrada escura, o ronco sub-reptício do motor escalando os sentidos como uma maré enchendo e um livro, um livro envolvente, um livro fácil de ler, com personagens com que possa me identificar, talvez um romance, um romance policial, mas não com muitos policiais, traficantes e tiroteios, uma cidade pequena e um corpo na biblioteca e todos aqueles pecados escondidos e uma mocinha virginal mas que não é mais virgem, virgens não me interessam, é mentira, eu estou fugindo para a turbulência, para ela, virginal porém não virgem, mas era virgem e virginal e eu exterminei o primeiro adjetivo, há tanto tempo não o fazia, a chance sempre presente, dezenas de cidades não tão grandes e moças mal amadas, mal amadas por desinteressantes, eu estou fugindo para o local de onde fujo há quase dez anos, por medo, eu, eu que a desvirginei, eu que fui seu primeiro, e pensar que damos tanta importância a isso, mas minha mãe, há mais de vinte anos, logo a minha mãe, assistindo uma comédia romântica e uma mocinha dizendo a um rapaz que nunca o esqueceria por ele ter sido seu primeiro homem e a minha mãe falando sem ninguém perguntar na sala escura, "importante não é o primeiro, importante é o último", eu que me sinto perdedor por ter sido o primeiro já há quase dez anos e que me senti o perdedor por não ter sido o primeiro de uma mulher que tanto amei há tanto tempo, se soubesse que o primeiro, o primeiro dela é que era o perdedor, eu sei, eu não devia, amor não é jogo, a gente não joga, mas tenho meu orgulho de macho, afinal, não é isso que me faz flertar com elas, seduzi-las, amá-las, ser macho, o que inclui meu orgulho de macho, eu me sentia o perdedor cada vez que a amava e sabia que ela nunca seria toda minha e Branca, fui seu primeiro e ela me adora e ela nunca será toda minha, ela nunca mais será minha, como outras, como Paula, o marido dela tão cheio de grana e juventude e beleza e ela caidinha por mim, dando pra mim no carro quase na portaria do prédio dela e ela dizendo que se ele visse pagava alguém pra matar os dois, ela estava loucamente apaixonada por ele, o marido era um corno, um babaca, ele sim, ele e aquela belíssima psicóloga de vinte e nove anos que adorava nadar nua e o marido não curtia, o marido não a comia bem, não a comia como ele, ele que saía de um casamento, a mulher dele também não, também não curtia trepar como ele gostava de trepar, como ele gostou de trepar com Branca, Branca, apaixonante Branca, como a Paula, elas tão lindas e agora eu aqui fugindo, o ônibus na estrada escura, todo mundo dormindo e um foco aceso, a estrada fria, fica frio assim na estrada à noite, a estrada fria e no ônibus só uns focos de luz, só uns pequenos focos de luz, meu livro envolvente, não quero pensar, não quero pensar na Paula me dizendo que eu sou só tesão, ela precisava de mais e o marido tinha voltado a comer ela bem, talvez não tão bem quanto ele, mas ele era um músico, um cantor, mulherengo, era só uma coisa de pele, ela estava com quase trinta anos, não era isso que ela queria da vida, não era isso que ela precisava da vida, e agora cá estou, fugindo pra Monções, a terra do rio das Monções, da mata atlântica, a luz, a pequena luz no livro, uma luz na escuridão, Monções uma luz no meio da serra, mas talvez um monte de outras luzes, os discos-voadores, a cidade onde mais se via discos-voadores ali, tinha até a seita de adoradores de discos-voadores, seita dona de fazendas e cheia da grana e muita gente dizendo que era por causa das drogas, tanto os discos-voadores vistos quanto a fortuna da seita, mas que se danem os discos-voadores, talvez não, talvez até gostasse de ser sequestrado por eles, talvez até fosse divertido, preciso espairecer, preciso de alguma coisa diferente, Paula foi embora, voltou para o corno, quando eu era corneado me sentia humilhado, pequeno, maltratado, indigno, envergonhado, ridículo, eu nunca consegui perdoar, nunca consegui voltar, mesmo já tendo corneado antes, mas o que posso fazer, sou macho, macho heterossexual e macho não podia aguentar aquilo e agora eis que enfim descubro a verdade, não que amor não é um jogo, isso ainda não me veio numa epifania, mas eis que finalmente descubro, quem diria, que quem era o vencedor era o que ria por último, aquele com quem a mulher ficava, e Luciana, Luciana lhe implorando pra voltar, fazendo de tudo pra me reconquistar e eu nada, impassível, só porque ela tinha me corneado, tava confusa, nós tínhamos brigado, ela me ligou querendo voltar, eu disse que não e ela sumiu uma semana, reapareceu dizendo que precisava de mim, que tinha dormido com outro numa festa em que ficara o tempo todo falando o quanto sentia a falta dele e ele nada, ele só aceitando sair com ela pra poder humilhá-la, fazer ela implorar que ele a deixasse satisfazê-lo sexualmente, e eu tão irritado fazendo coisas que eu sabia que iam machucá-la, enfiando legumes nela, enfiando desodorantes e perguntando se ela estava gostando e ela lá, reclamando que não estava tão molhada assim, mas lá, aceitando, ele puto e agora, agora eu sei que eu era o vencedor, o cara que a tinha comido provavelmente sonhara anos com ela e tivera uma sombra, possuíra um fantasma, um corpo, por isso que eu quero fugir, eu preciso fugir, que bom o Festival, que bom ter sido chamado pro festival, cantar em barzinho de cidade turística, esquecer a Paula, fugir, fugir pra Branca, eu sempre acabo fugindo pra Branca, sempre vou desabafar com a Branca, trocar idéias com a Branca, porque eu adoro conversar com ela, adoro ficar horas falando com ela, adoro ela, sou apaixonado por ela, Branca, Branca, a estrada e o foco de luz e a luz dos discos-voadores e Branca, tão jovem e bonita, tanto tempo, tanto tempo ainda pra ela continuar jovem e se apaixonar por mim, Branca, a Paula me deixou, a Luciana me deixou, não sei ser corno e não sei ser o corneador, Branca, tudo que eu sei é você, você foi minha, um fantasma, um corpo, você me adora, adora conversar comigo, mas não dá pra mim, não mais, você só queria perder a virgindade, mais nada, não sei cornear, não sei ser o corneador e não sei fazer uma adolescente inexperiente se apaixonar pelo cantor da cidade grande experiente e bonito, Branca, eu estou fugindo, fugindo de você, há quase dez anos que eu fujo de você me enfiando bem debaixo de seu nariz, Branca, Branca, Branca, o livro envolvente pra me atrair os sentidos, não adianta, Branca, Branca Branca Branca Branca Branca Branca Branca Branca

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