fevereiro 25, 2008

Onde os Fracos Não Têm Vez

Pouca gente notou, mas o cartaz de Onde os Fracos Não Têm Vez é uma citação - citação não, uma imitação - de O Resgate do Soldado Ryan. E não é uma brincadeira da turma de marketing. É um dos fundamentos do filme.

O xerife, algo ineficaz, está velho. Ele provavelmente esteve na II Guerra Mundial. A do soldado Ryan. Aquela história de se sacrificar por um bem maior, de seguir um ideal mesmo que ele seja uma digressão dentro da luta. O protagonista do bem (mais ou menos) esteve no Vietnã. Baby Boomer operário, ex-soldador, trabalhador de siderúrgica, o aço que fez a América. Não sabemos porque está aposentado, mas podemos ligar os pontos e supor que foi sua temporada na terra dos vietcongues. Foi lá que tudo começou a dar errado para ele e a América (sempre que você vir um metalúrgico em filme americano, ele é uma metáfora dos verdadeiros valores da Terra da Promissão). O assassino mauzão se chama Anton Chigur. O ator é hispânico, mas o nome tem um exotismo de Velho Mundo. Ele não tem senso de humor, raízes, tem toda pinta de não gostar de mulher e sua arma de ar comprimido é uma dupla metáfora - remete ao que se usa para abater gado e a uma bomba de enfizema, ou seja, ele respira morte e as pessoas para ele são apenas animais de matadouro.

Tem outros personagens simbólicos no filme - os mexicanos sem rosto que se matam no deserto e ninguém fica sabendo durante dias, longe dos olhos das pessoas (exceto do caçador que esteve no Vietnã). As esposas. O vendedor da loja, que criou os filhos, viu-os sair de casa e foi viver o resto da vida numa vendinha no ânus do mundo. Tem uma velha trama de noir, de tesouro ilusório que você sabe desde o princípio que só vai trazer danação, que os próprios Coen já usaram à larga. E tem um niilismo desesperado. Numa das cenas mais bonitas da fita, o xerife entra no quarto. Ele é nosso preposto, representa os bons valores em que queremos acreditar e que são tão fortes que, quando no mesmo aposento, só resta a Chigur esconder-se nas sombras, sem tentar enfrentá-lo como ele faz com todo mundo no resto da história. Mas o xerife desiste. Ele está velho. O ano é 1980. O Vietnã foi uma guerra injusta. Watergate. A indústria tradicional fechando as portas para os metalúrgicos. Os estrangeiros globalizando tudo. Ronald Reagan assumindo a presidência e instaurando o reinado do capitalismo neoliberal de cada um por si. E tem ainda outro personagem simbólico, que eu já ia esquecendo. Aproveitando que a trama é noir, o "coronel" interpretado por Woody Harrelson é o descendente de Phillip Marlowe e todos seus colegas detetives durões românticos (Sam Spade não, este é um filho da puta por fora e por dentro). Comunica-se através de wisecracks, está sempre um passo à frente da trama, tem senso de humor e um saudável cinismo, mas não é páreo para Chigur.

Os valores do Vietnã sobrepõem-se à II Guerra. Os soldados Ryan estão velhos. Os psicoptas de My Lai mandam, traficando as drogas que vieram na bagagem dos veteranos que retornavam do Sudeste Asiático. O filme é magistralmente enquadrado, fotografado, editado e interpretado, como todas as produções Coen & Coen, mas não me agradou. Não somente pela visão negra e desesperada do filme, aliás, justamente por ela, mas não por ser negra e desesperada, mas por ser incoerente com a esperança e a celebração de uma simplicidade quase zen, quase religiosa de Fargo.

Embora de uma ingenuidade meio Rousseau e bom selvagem, já que os citadinos são sujeitos avaros e agressivos, preocupados apenas com a aparência e infelizes (a cena com o velho colega japonês da xerifa) e o povo do interior de uma sabedoria quase mística, a fita puxava de todo seu cinismo niilista um auto de fé: Grávida (a vida que se renova! O futuro! A esperança!), feliz com seu emprego e seu marido (a gravidez implica em vida sexual ativa), que também parece satisfeito em expressar-se artisticamente mesmo que apenas para aparecer num selo local, no final do filme ela tem uma das falas mais belas desse tipo de noir com tesouros ilusórios (tão ilusório que numa das muitas cenas brilhantes do filme, Steve Buscemi o enterra num lugar igual a qualquer outro e até ele mesmo percebe que jamais conseguirá recuperá-lo a sério), quando comenta que todas aquelas mortes aconteceram por causa do dinheiro. Não me lembro das palavras exatas, mas é algo como "dá pra acreditar? Tudo isso só por causa do maldito dinheiro". Existem outras preocupações na vida. É por isso que ela está prenhe, percebem?

Mas aí tem ONDE OS FRACOS NÃO TÊM VEZ. Mudaram de idéia? Não é pra ser levado a sério, é só diversão? É o quê? Desculpem a falta de consistência do post, mas estou escrevendo correndo em dez minutos antes que os carequinhas todos que eles ganharam virem notícia fria.

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