setembro 14, 2006

Do roteiro A ETERNIDADE NUM BEIJO

Um homem está sentado numa cadeira, de frente para a câmera. Ele é o protagonista, Renato e se veste como os rebeldes dos anos 50, de calça jeans, jaqueta de couro e camiseta branca, denotando que ele é um romântico e algo anacrônico. Os espectadores não têm a menor idéia ainda do que está acontecendo, pode ser uma sessão de análise, um interrogatório, um papo num bar, qualquer coisa do gênero.

Conselheiro 1: (OFF) E o amor?

Conselheiro 2: (OFF) Você ainda guarda sentimentos por Ana?

O homem pensa um pouco, está nervoso.

Renato: Guardar?

Conselheiro 2: (OFF, VOZ ENFASTIADA) Sim, guarda, ainda guarda sentimentos por ela?

Renato: Sentimentos por Ana? Guardar? Não. Não guardo. Por que guardaria? Já não nos vemos há tanto tempo... (PÁRA UM POUCO PARA PENSAR)

A voz em off de Renato narra cenas de Ana, flashbacks em close de seu rosto, sorrindo, fazendo diversas expressões, e de detalhes de seu corpo, como se ele a estivesse vendo bem de perto. No fim do monólogo, o rosto de Renato volta à cena, em fusão. Ela perece ter saído direto dos anos 60. Usa vestidos curtos, longos cílios, cabelo cheio e franja.

Renato: Eu acho. Eu não sei. Quanto tempo será que já faz? Difícil dizer. Parece que foi ontem. Talvez tenha sido ontem. Não me lembro quando foi. Mas me lembro que pareceu muito. Um tempo enorme. Muito maior do que havia que antes de eu conhecê-la. Muito maior do que o que se passou desde então. Por mais que os ponteiros do relógio se repitam na mesma posição, em cada hora de cada dia desde que nos separamos, ainda assim o tempo que passamos juntos foi maior do que possa vir a ser qualquer dos mais longos dias que eu venho enfrentando sem ela. Guardar sentimentos por ela? Por que o faria? Tantos anos eu vivi sem sentir algo assim, tantos anos eu tentei sentir algo assim, me agarrando a outras mulheres, tantas por tantas razões menos a certa. Menos aquela que eu queria ter, sentir em mim, sentir nela, e tanto eu fiz, tanto eu me fiz fazer, tanto eu me iludi, finalmente descobri Ana, há tanto tempo, como podemos saber agora, se é que eu posso chamar o agora de agora. Depois da Ana tudo foi só um longo depois. Não, eu não guardo, não guardaria, jamais guardaria, como poderia eu fazer isso, com aquela sensação, o primeiro beijo com seu gosto de alucinação, miragem, ilusão, a primeira vez em que a vi nua, quando Deus criou você deitada nua na cama, ele sabia o que estava fazendo e criou o fogo, a água e as montanhas ao mesmo tempo, a primeira vez em que a senti por dentro, macia, morna e água, a vida toda vem da água, a vida toda vem de você, a vida toda vem de dentro de você, como guardar, jamais guardar, não há o que guardar, não se tem o que guardar, Ana foi o agora, Ana foi o então, o resto, o resto é só depois, o resto é só o que veio depois, o resto é silêncio (PAUSA). Não (PAUSA, MUDA O TOM). Não guardo nenhum sentimento por Ana.

Detalhe de um lápis vermelho riscando alguma coisa. A câmera abre e revela finalmente que estamos numa comissão de exame de condicional, que nem aquelas que vemos em filmes americanos, uma sala cheia de arquivos, cadeiras escolares, um quadro-negro, com os conselheiros de guarda-pó e óculos fazendo enormes riscos visivelmente desaprovadores em seus formulários e cochichando entre eles. Um deles se levanta.

Conselheiro 1: Sr. Renato, na opinião do presidente desta comissão de avaliação, o senhor nada aprendeu no seu tempo de encarceramento sobre o que o trouxe a esta instituição e sobre os erros de seus atos. Minha decisão é de que o senhor deveria permanecer interno e sua condicional ser negada. Entretanto, como o senhor foi o último a ser ouvido hoje e sua exposição foi longa demais, meu relatório só será encaminhado amanhã, quando estarei já trabalhando em outra coisa e lugar e meu voto nada mais valerá. Portanto, não me darei ao trabalho de redigir um parecer contrário sobre seu caso. Boa sorte.

O Conselheiro 1 sai da sala, tirando o guarda-pó e os óculos, exibindo uma roupa de piloto de Fórmula 1.
Levanta-se outro conselheiro.

Conselheiro 2: Sr. Renato, não houve evolução em seu quadro. O senhor está apegado a esta mulher. Demonstra falta de espírito. Falta de fibra. Falta de vontade de conhecer o amanhã que está sempre vindo. Veja como eu não tenho medo de encarar o futuro.

O Conselheiro 2 arranca o guarda-pó, os óculos, e pula através da janela.
Levanta-se o terceiro e último conselheiro.

Conselheiro 3: Sr. Renato, na verdade eu queria mesmo era ser músico. Eu tinha uma banda emo. Há muito tempo. Eu acho. Quando começou. Eu acho. Eu concordo com o senhor. Eu acho. Inclusive eles dois não sabiam, mas parece que vai haver uma mudança de orientação, para valorizarmos mais os sentimentos. Eu acho. Acho que o senhor está liberado.

Renato: Estou?

Conselheiro 3: Está. (REFERINDO-SE AOS CONSELHEIROS) Eles também. Já até foram. Só eu que ainda vou permanecer aqui. Mais uns dias. Eu acho. Pouco tempo, de qualquer forma, eu acho. Vai parecer mais. Eu queria minha banda emo.

Renato: Os ritmos brasileiros estão voltando à moda.

Conselheiro 3: Amanhã eles caem no ostracismo de novo. Ostracismo é uma palavra bonita, não? Sonora.

Renato levanta-se para sair.

Renato: Acho que prefiro olvido.

Conselheiro 3: Eu gosto muito do ouvido. Eu queria ser músico. Eu lhe disse, não?

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