março 09, 2009

Watchmen

Quis custodiet ipsos custodes?
("Quem vigia os vigilantes?" - Juvenal)

Todo mundo vigia os vigilantes. Alan Moore foi um dos sujeitos que mais contribuiu para dar respeitabilidade artística aos heróis mascarados em quadrinhos e, como efeito colateral, levou muito nerd preguiçoso a abandonar o hábito de ler livros (aqueles retângulos pesados, sem figurinhas, caros e pouco interativos) e a considerar o barbudo inglês um artista tão importante quanto Shakespeare ou Picasso. O resultado é que todos aqueles fanboys que sabem a história completa da Federação dos Planetas Unidas e o nome de todas as classes de naves estelares ficaram de sobreaviso quando o diretor de "300 de Esparta" e "Madrugada dos Mortos" finalmente conseguiu botar de pé um projeto que já tinha derrubado Terry Gillian, Darren Arronofsky e Paul Greengrass e filmar a brilhante obra de Moore e Dave Gibbons, prontos a reclamar de qualquer coisa que diminuísse o que para eles tem a relevância de um "Macbeth" ou "Les Demoiselles d´Avignon".

Bem, comecemos então pelas boas notícias: a) "Watchmen" é o melhor filme de Zach Snyder e b) Snyder entendeu o gibi, o que é um grande passo, já que em "300 de Esparta", uma minissérie bem menos pretensiosa do que a dos vigilantes, ele não compreendeu a celebração nietszcheana anticonformista e antipacifista de Frank Miller - cada vez mais parecido ideologicamente com Robert A. Heinlein - e acabou descambando mesmo para um fascismo pitbull - com direito a cripto-homerotismo e tudo (cripto-homoerotismo é ótimo, não? Puro anos 70).

Tematicamente, a adaptação, principalmente a mudança do final (boa hora pra você se mandar se não quiser saber como acaba a trama - pode voltar no próximo parágrafo), na verdade funciona perfeitamente. A bem da verdade, aquele molusco gigante do final nunca me convenceu. Outro dia fui tentar explicar para um amigo gentio - aquele tipo que não lê quadrinhos de super-herói - sobre essa polêmica e soou muito ridículo até para mim mesmo quando comentei sobre como os fanboys exigiam a manutenção de uma lula falsamente extraterrestre telepata e depressiva na história. Essa trama na verdade servia mais era como desculpa para Moore fazer uma ode a artistas mórbidos e alternativos - ele adora se autocelebrar e mostrar como é inteligente - do que para amarrar coerentemente a minissérie.

A adaptação também piedosamente não reforça tanto quanto o gibi a crise de nervos do Comediante diante de seu velho inimigo, ponto fundamental para empurrar a trama adiante, mas completamente disparatado do ponto de vista da coerência. A habilidade de Moore na construção dramática consegue nos empurrar goela abaixo um comportamento completamente fora do personagem nos quadrinhos. Snyder está longe de ter tal talento e, quanto menos precisar usá-lo, melhor. Seu ponto forte é porradaria mesmo, de preferência seguindo quase quadro a quadro os quadrinhos da obra original e com mudanças bruscas entre câmera hiperlenta e acelerada, pra tentar emular de forma mais barata os famosos efeitos de "Matrix".
E ainda bem que Dave Gibbons tem excelente senso de composição em cenas de diálogos, já que "Watchmen" tem bem mais texto que "300 de Esparta" e todas as vezes em que Snyder não tem como usar o gibi como storyboard, ele fica sem saber onde botar a câmera. E numa fita que tem muuuita história pra contar - a origem de e vida de vários super-heróis, seus relacionamentos e seus feitos dos anos 30 aos 80, como eles foram declarados ilegais no pico da contracultura e ainda a rocambolesca trama principal - boa parte das linhas dos atores é pura exposição. A quantidade de blablablá na primeira metade do longa (bota longa nisso - 160 minutos), quando se conta a gênese dos vigilantes é quase insuportável, ainda mais que Snyder usa a imagem apenas como ilustração do que está sendo explicado pelos personagens em longos monólogos em "off".

Enfim, para terminar a peroração sobre a adaptação, os únicos pontos em que ela fraqueja é nas personalidades do dr. Manhattan e da primeira Espectral. Ao apresentar o primeiro, Snyder não deixa claro o quanto o sujeito já era passivo e amorfo antes de sua transformação - nos quadrinhos seu pai escolhe sua carreira, sem oposição do moleque; Janey Slater (que, ao contrário do gibi, é consideravelmente mais bonita do que a segunda namorada do semideus azul) é quem toma a iniciativa do relacionamento e a primeira transa entre os dois acontece mais por uma série de coincidências do que por vontade do futuro super-herói. Já na segunda, a compressão exigida para contar tudo em menos de três horas quase não dá tempo para contar a vida de Sally Júpiter e uma revelação fundamental da minissérie que é extremamente coerente e verdadeira (Sommerset Maugham fez sua carreira contando esse tipo de coisa) acaba soando gratuita e, como direi, er... um tanto, hmmm... voluntariosa.

Visualmente o filme não é o que os sensacionais créditos de abertura - retrô pacas, a fita tem créditos no começo! - prometem, pelo já mencionado problema de posicionamento da câmera quando Snyder não tem quem guiá-lo. O longa tem até um ar barato - poucos exteriores, poucas cenas de ação, poucas cenas de multidão - e os cenários digitais são péssimos. Ao contrário do minimalismo caricato de "300 de Esparta", "Watchmen" é uma novela gráfica com pretensões hiper-realistas e os fundos urbanos que se vêem pela janela dos escritórios de Veidt, bem como a fortaleza ártica de Ozymandias, parecem miniaturas mal focadas. As esparsas cenas de porradaria são boas e beneficiando-se das composições originais de Gibbons. Foram, é verdade, um tanto exageradas, com proezas virtualmente sobre-humanas de alguns sujeitos - mas, dentro das convenções cinematográficas modernas, todas são perfeitamente plausíveis. Aliás, a melhor sequência da produção, para este blogueiro, é o Comediante dispersando um protesto nos anos 70, ao som da canção disco "I´m your boogie man" - casou perfeitamente, ritmo e letra, com os planos chupados literalmente do gibi (e ainda acaba com o cínico herói atirando uma granada de gás lacrimogêneo num sujeito enquanto fala que eles estão vivendo o sonho americano - tremenda evolução depois do fascismo de "300 de Esparta"). Aliás, alguns fanboys reclamaram que a trilha sonora era um tanto óbvia - inclui até "All Along the Watchtower", que tinha que entrar, pelo título parece aquelas bolas que ficam quicando na linha do gol, pedindo "me chuta, me chuta" - mas há que se lembrar que Moore também, com sua mania "olhem-como-sou-inteligente", encheu a minissérie com citações óbvias de Nietszche, Blake e Shelley para servirem de epígrafe (reparem que eu também botei uma epígrafe óbvia e no original em latim nesta postagem - o que isto quer dizer?).

O problema das atuações é que ninguém vigia os vigilantes. O blogueiro a princípio pensou que o elenco quase todo de desconhecidos era ruim mesmo, com uma ou outra exceção - Rohrschach, o Comediante, o Coruja - até cortar a fundo com a Navalha de Occam (olhem como sou inteligente) e chegar à conclusão que provavelmente Snyder é que não soube dirigi-los. Billy Crudup faz seu dr. Manhattan monocórdio; podia ter assistido aos Exterminadores do Futuro ou mesmo a algum vulcano para ver como sugerir emoção em personagens desumanizados. As Espectrais estão completamente perdidas. Mas a catástrofe maior é Ozymandias. Embora o gibi desse pistas que ele fosse um homossexual enrustido, ele era o homem mais inteligente do mundo e fisicamente perfeito. Ele era citado por um jornalista como o homem pra quem todas as namoradas dele queriam dar e que todos os machos invejavam. Elegante, multimilionário, charmoso, culto, intelectualmente bem-dotado (o resto Alan Moore não explicita), para um garotão americano como Zach Snyder, isso significa um europeu gay. Matthew Goode passa o filme todo sussurrando, com o olhar perdido sempre um pouco atrás do interlocutor e uma expressão entre tranchã e suspirante.

Em suma, a adaptação é, dentro dos limites, bastante fiel, satisfatória e com problemas principalmente de direção. A trama de Alan Moore está basicamente toda lá, e continua sólida o suficiente pra empurrar 160 minutos goela abaixo de espectadores que foram em busca de um filme de ação e acabaram achando um outro tipo de história. Não faz muita diferença. O diálogo do gibi está cheio de linhas de efeito - o que soava hiper-realista escrito em balões em quadradinhos desenhados não é tão naturalista quando gente de verdade está declamando - e, na sessão em que o blogueiro foi, chegaram a aplaudir quando o psicótico Rohrschach, numa crise, ameaça uma prisão inteira. Como falado láááá no início deste texto, Snyder inacreditavalmente ENTENDEU a minissérie original e fez o que pôde para transcrevê-la para a tela no estilo fidelidade quadro-a-quadro inaugurado por Robert Rodriguez em "Sin City". De curioso para o blogueiro ainda a necessidade que a fita tem em sua primeira metade de reforçar a ameaça atômica que paira sobre o mundo. Em 1986, quando a revista foi lançada, ninguém mais realmente acreditava ainda que o mundo fosse mesmo acabar num apocalipse atômico, mas os dias da Guerra Fria, a Guerra do Vietnã e das revoluções socialistas, fracassadas ou não, ainda estavam frescas na memória de todo o mundo e o barbudo inglês sujo não precisou explicitar pro seu público que o problema mais importante em seu universo alternativo era o arsenal atômico prestes a ser disparado. A nova geração não tem esse referencial cultural, o que pode explicar grande parte de seu consumismo materialista e de seu conformismo político, este último, aliás, um dos temas explorados na complexa e interessante "Watchmen", que perdeu parte de sua grandiosidade nos cinemas, mas ainda assim é um longa a ser visto.

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