fevereiro 01, 2010

A Fronteira Final - A Primeira Temporada de Star Trek a Série Clássica



A Coleção

* pelo blogueiro convidado Antônio Rogério da Silva


Anteriormente: O Punhal Imaginário


O universo utópico imaginado por Wesley Eugene Roddenberry em Jornada nas Estrelas com a ajuda do produtor Gene L. Coon e de seus diversos roteiristas ainda está muito longe de ser alcançado. O sonho de pensadores cosmopolitas que desde os antigos estóicos defende o direito de todo ser humano ser considerado cidadão do mundo parece tão distante quanto o século XXIII. Quando se pensa que a humanidade avançou dois passos nesta direção, logo se percebe que voltamos um passo atrás. A dura realidade mostra que barreiras econômicas e políticas impedem que países de um mesmo continente dissipem suas fronteiras regionais, tornando a união em torno de uma federação planetária uma fantasia quimérica de autores de ficção científica. Enquanto isso, todo o espaço sideral permanece por ser investigado e conhecido, com os terráqueos imersos em sua luta mesquinha pelos recursos naturais mal distribuídos na superfície do planeta.

Entretanto, a esperança dos iluministas pela busca de esclarecimento segue acesa, nas palavras de Carl Sagan, como uma vela em um mundo assombrado por demônios. Nesse contexto, Jornada nas Estrelas cumpre seu papel de despertar nas mentes mais criativas a vontade de superar os preconceitos e superstições, em favor de um melhor entendimento de tudo que nos cerca, embora isto seja uma possibilidade muito remota no atual cenário internacional.

Você viu o Cabeção por aí?


Antes de ser lançada na TV, Jornada... teve um episódio piloto – A Gaiola - que apresentava as ideias iniciais de Roddenberry para a série que, além de diversão, estimulava seus espectadores a pensarem por si mesmos. A Gaiola foi totalmente rejeitado pela rede CBS, mas a concorrente NBC pediu a realização de uma segunda história – Onde Nenhum Homem Jamais Esteve foi ao ar em setembro de 1966 -, mesmo considerando o episódio inaugural “muito cerebral” e com pouca ação. Incomodava aos donos das emissoras a presença ativa de uma mulher participando do controle da USS Enterprise e de um extraterrestre com aparência demoníaca. Roddenberry cedeu em alguns pontos – substituiu a personagem da Número Um (Majel Barrett) pela oficial de comunicações, tenente Uruha (Nichelle Nichols) -, mas manteve-se firme na permanência do Sr. Spock (Leonard Nimoy). Além disso, deu um jeito de exibir suas ideias iniciais, inserindo a maioria das cenas do piloto em um episódio da série original.

A Coleção traz, portanto, em duas partes, a história desastrosa da primeira aventura vivida pela tripulação pioneira da Enterprise. Na época, 13 anos antes da nova turma assumir os comandos, seu antigo capitão, o melancólico Christopher Pike (Jeffrey Hunter), é quem dava as cartas por lá, escudado por um Spock mais intrépido que se permitia deixar aflorar seu lado humano, de vez em quando. A Primeira Oficial também sabia tomar suas decisões por si mesma com pulso firme. No seu estilo de matrona, conseguia colocar no devido lugar as mulheres que tentassem se engraçar por seu capitão. No geral, o interior monocromático da nave tinha o cinza metálico predominante, em contraste ao colorido das luzes e portas da Enterprise recauchutada. Porém, agora inválido, depois de um grave acidente que o deixou desfigurado e preso a uma cadeira de rodas computadorizada, Christopher Pike recebe a ajuda humanitária de Spock que o rapta da Base Estelar 11, onde passara a residir, e assume, amotinado, o controle da Enterprise, para levá-lo a Talos IV, único planeta de acesso proibido na Federação.

Ethan, não podemos continuar nessa busca


Em Talos IV, o capitão Pike fora apriosionado, na primeira vez, pela espécie talosiana, remanescente de uma civilização que se destruíra em uma guerra de escala planetária. Obrigados a sobreviverem no subterrâneo, os talosianos desenvolveram ao extremo suas habilidades mentais e telepáticas, mas encontram-se em declínio, à beira da extinção – boatos contam que alguns mutantes dos cabeçudos talosianos conseguiram escapar e posar para fotos na capa de um disco de famosa banda de rock brasileiro. Os poucos que continuaram habitando Talos IV precisavam ao menos de alguma espécie de companhia que aceitasse suprir suas necessidades por absorver sentimentos bons de prazer. Com o intuito de atrair Pike, mantiveram artificialmente a beleza da única humana sob sua guarda. Vina (Susan Olivier) sobrevivera à queda da nave da primeira expedição enviada àquele planeta. Interessados em ampliarem seus exemplares de humanos em cativeiro, os talosianos tentam pela segunda vez convencer capitão Pike a se submeter à proposta para satisfazerem quaisquer desejos de sua imaginação. Graças a uma capacidade extraordinária de induzir realidade virtual às mentes humanas, os talosianos podem fazer com que Pike e Vina deformados se sintam eternamente jovens no paraíso que imaginarem, como se vivessem o retorno de Adão e Eva ao Éden. Dessa vez, Pike não tem argumentos para recusar a oferta talosiana.
Assim, Spock consegue escapar à condenação da corte marcial, pois, em respeito à reputação histórica do capitão Pike, o conselho da Federação resolve acatar sua decisão e livrar o vulcano da pena capital por entrar em órbita de Talos IV. Capitão Kirk (William Shatner) pode então retomar o comando de sua nave, não sem antes repreender seu imediato por ter agido de maneira demasiada humana.

Um repertório de temas é exibido em A Coleção, que viria a ser considerado o modelo canônico ou o formato padrão para a série original. A luta contra a opressão, coragem para enfrentar o desconhecido, realidade virtual, controle da mente, a autonomia dos indivíduos e o convívio em sociedade, mesmo que a bordo de um veículo militar com suas hierarquias são anunciados. A discussão de questões filosóficas como o livre arbítrio e a responsabilidade pelos seus próprios atos também estão lá.

Para uma geração com a pele marcada como gado, que disputa acirradamente um lugar em programas televisivos que violam sua privacidade, as recusas iniciais dos personagens Pike e Vina podem parecer estranhas e antiquadas. Mas é essa estranheza que faz saltar com nitidez o diferencial da série original de Jornada nas Estrelas em relação à mediocridade da televisão atual em alta definição.

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