Publicado originalmente no blogue de história da Editora Record
Um milionário está andando de carro pela cidade quando vê um sujeito muito parecido com ele. A semelhança é tão gritante que ele pede para o motorista parar, salta e vai falar com o seu sósia. De perto é ainda mais impressionante, o vivente realmente é a sua cara. O rico homem então não resiste e pergunta, “desculpe-me, amigo, mas por acaso a sua mãe não trabalhou na mansão dos Souza Jardim?”, ao que o outro responde, “não, minha mãe nunca trabalhou fora, mas olha que coincidência, meu pai trabalhou lá”.
Certo, não é a piada mais engraçada do mundo e nem está particularmente bem contada. Mas foi considerada boa o suficiente para, no final dos anos 70, entrar nas antologias do Pasquim, uma coletânea de clássicos do gênero que fez muito sucesso em sua época. Como era de se esperar - e era até uma das propostas da coleção - várias das anedotas eram conhecidas e velhas. Mas esta é mais velha ainda do que provavelmente qualquer dos leitores imaginava - há registros de que ela já era conhecida na Roma antiga, com o imperador Augusto no papel do rico homem - e, mais surpreendentemente ainda, o próprio césar tolerava que ela fosse contada na sua frente e ainda se dava ao trabalho de esboçar um constrangido sorriso. Ou eis aí uma prova de que os antigos já tinham um bom senso de humor ou ele já tinha ideia do que o HBO faria com a reputação de sua mãe na minissérie “Roma”.
Mas provavelmente esse senso de humor foi importado junto com boa parte da cultura dos gregos. Os romanos não mostraram tanto fair play no século III a.C., quando tentavam resolver diplomaticamente suas diferenças com a colônia helênica de Tarento. Durante a negociação os tarentinos caíram na gargalhada com os enviados especiais italianos (1), que saíram soltando fumacinha e jurando vingança. As fontes divergem sobre o motivo da hilariedade, alguns dizendo que era o horroroso sotaque do grego de Postumius, o chefe da delegação (2) e outras que era a pomposidade da toga, que os diplomatas resolveram usar para parecerem mais solenes aos olhos daqueles estrangeiros.
Aristófanes era tão respeitado que Sócrates dizia que só uma nova peça dele o convencia a sair de casa e enfrentar a muvuca. E isso depois que Aristófanes o caricaturou impiedosamente em "As Nuvens". Platão o retratou respeitosamente em "O Banquete" e teria escrito seu epitáfio
Portanto, em havendo humor, ainda mais xenófobo, étnico e de baixaria, como nos exemplos acima, as chances de haver antologias de piadas são grandes. Tanto que sobreviveu até os dias atuais uma dessas, o Filógelo, literalemente “o amigo do riso”. Fontes bizantinas indicam que era o tipo de coisa que você levava para ler no barbeiro, o que mostra que certos hábitos que tomamos por modernos são absurdamente mais antigos do que se pensa.
O Filógelo teria sido escrito (compilado?) por Héracles e Filágrio (quem???) no terceiro ou quarto século de nossa era. Contém 265 piadas catalogadas por assuntos - estudantes, intelectuais, tolos e esposas (que inesperado). O mais impressionante é - pelo menos nas traduções para o inglês disponíveis na Web - a sua semelhança com as piadas da Playboy ou do Reader’s Digest, não só no humor como na narrativa.
Entre as piadas recolhidas no Filógelo, despontam temas (e punchlines) clássicos explorados até hoje por humoristas ditos modernos. Por exemplo, um homem chega para outro e diz que possuiu a mulher dele. O marido traído responde, “eu sou o marido dela e tenho deveres conjugais. Qual é a sua desculpa?”. Em outra, um vivente procura o médico reclamando que sempre acorda se sentindo muito mal e só melhora depois de meia hora, ao que o esculápio responde, “então passe a acordar meia hora mais tarde”. Um jovem pergunta à sua núbil esposa, “devemos jantar ou ter sexo”, e a noivinha responde, “você escolhe, mas não tem nada para comer em casa”.
Também já eram comuns as piadas sobre gente muito idiota. Se culturalmente, com o fim da grande migração de portugueses vindo para cá em busca de fortuna, os nossos personagens clássicos mudaram de lusos para louras burras, parece que a pele da Grécia eram os sidonianos (abderianos e kimiamos também partilham dessa honraria). Eis alguns exemplos:
- Três advogados estão conversando. O primeiro fala que ovelhas não deveriam ser mortas, pois fornecem leite e lã. O segundo diz que as vacas não deveriam ser abatidas, pois dão leite e puxam os arados. O sidoniano então comenta que não se deveria nunca matar porcos, pois deles tiramos o presunto, o lombo e a bexiga.
- O paciente de um médico sidoniano morre e, durante o enterro, o filho do falecido começa a passar mal. O esculápio então oferece seus serviços: “Por cinco mil dracmas posso tratá-lo como tratei seu pai”.
Entre outras piadas surpreendentemente modernas, está a do sujeito que pede a um amigo que vá ao mercado e compre para ele duas escravas de quinze anos. “Sem problema”, responde o camarada. “Se eu não encontrar, eu trago uma de trinta”. Ou a do vivente que vai reclamar do homem que lhe vendeu um escravo que ele havia morrido. “Ele nunca fez isso enquanto esteve comigo”, responde o vendedor (3).
O mais curioso é que esta nem de longe é a mais antiga antologia de piadas de que se tem notícia. Cronistas relatam que Filipe II, o pai de Alexandre, o Grande (e, segundo alguns estudiosos, o verdadeiro grande governante da Macedônia) já havia encomendado uma, no século IV ANTES DE CRISTO (!!!!!!). Por isto, da próxima vez em que um humorista dito moderno tentar chocar as sensibilidades fazendo piadas com mulheres feias, casamentos falidos ou afins, não acredite que ele está tentando renovar o humor com o politicamente incorrento. Postumius já sofria isso na pele. E os tarentinos depois se arrependeram.
Você pode encontrar todo o Postumius, traduzido pelo professor William Berg, de graça aqui.
(1) E provavelmente foi daí que veio aquela famosa cena de VIDA DE BRIAN, do Monty Python, em que os guardas ficam tentando prender o riso enquanto Pilatos fala com a língua presa.
(2) Aumentam as chances de ser a inspiração para a língua presa de Pilatos.
(3) Alguns fãs apontam esta piada como precursora do famoso esquete do papagaio morto, do Monty Python. Levando-se em conta como os integrantes do grupo eram fãs de história, essa hipótese e a acima não são tão infundamentadas quanto soam.
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