janeiro 12, 2012

O Homem Banal


Hoje completaram-se 50 anos da condenação à morte de Adolf Eichmann. Sua prisão na Argentina e seu julgamento em Israel foram marcos dos anos 60 - as primeiras lembranças de Norman Finkelsten sobre o Holocausto provêm daí. Eichmann pode não ter sido um dos arquitetos do Holocausto, mas foi um de seus gerentes, quando nomeado responsável pelas deportações e transporte dos judeus para os campos de extermínio. Em 1944 tentou trocar com os aliados a vida dos judeus da Hungria, sob domínio nazista, por caminhões e outros bens. Quando falhou em conseguir contato com algum representante de confiança, mandou para a morte certa 430.000 húngaros.



Capturado pelos Aliados, que não descobriram sua verdadeira identidade, fugiu em 1946 e refugiou-se na Argentina, onde se sentiu tão à vontade que até mesmo mandou buscar sua família. Em 1952 a CIA já sabia de seu paradeiro, mas evitou tomar providências para não trazer à tona o assunto de que muitos nazistas foram acobertados pelos americanos em troca de informações sobre comunistas. Coube a Israel, em uma das primeiras façanhas internacionais do Mossad, capturá-lo em solo portenho e levá-lo até o jovem Estado. A sua localização foi facilitada porque Eichmann sequer se dera ao trabalho de arrumar nomes falsos para sua esposa e filhos.

Até então os únicos nazistas graúdos capturados com real responsabilidade no Holocausto haviam sido Rudolf Hess e Hermann Goering. O primeiro, preso depois de um voo solitário até a Inglaterra em 1941, quando quis começar sozinho a entabular negociações de paz, teve sua avaliação psicológica (basicamente de "maluco") desconsiderada para que pudesse ser levado a julgamento. O segundo, livre na cadeia de seu vício de drogas, defendeu-se com a aguda inteligência que não mostrava havia anos, desempenhando até o fim o papel de nazista malvado. A seus companheiros encarcerados, costumava dizer que eles já estavam condenados e seu papel era mostrar dignidade para preservar a herança nazista. O claro desequilíbro mental dos dois correspondia perfeitamente à imagem de monstros depravados, cultivada pelos nacional-socialistas em anos de atrocidades contra judeus e populações civis em geral, uma situação bastante confortável para o establishment.

Já Eichmann mostrou-se de outra cepa. Afetando ser apenas um burocrata sem qualquer inclinação antissemita, o ex-coronel das SS afirmava não entender o ódio dos israelenses e judeus por ele, afinal estava apenas cumprindo ordens. Outros nazistas alegaram o mesmo em Nuremberg, mas os aliados haviam criado uma determinação jurídica envolvendo a possibilidade de rebelião justamente para evitar este pleito. Essa determinação levava em consideração o cargo e a importância do acusado, um soldado tendo muito menos chances de se rebelar, por exemplo, do que um general. Ou um diretor de transportes.

O problema com Eichmann foi que seus testes psicológicos acusaram resultados absolutamente normais e medíocres, sua infância e adolescência não mostravam nenhum evento traumático, suas origens incluíam um lar sólido e aparentemente saudável, e seu ingresso nas SS não se deu por questão de crença. Estando desempregado, aceitou a sugestão de um amigo e se inscreveu nas tropas paramilitares de Hitler, assim como outros milhares de sujeitos sem trabalho já haviam feito nas SA. Tão convincente ele parecia neste papel que levou a pensadora Hanna Arendt (sobre quem este blogue recentemente publicou um artigo) a escrever um de seus mais famosos ensaios e cunhar a expressão "banalidade do mal" - ou seja, o Mal não era uma provisão exclusiva dos monstros, mas inerente à humanidade. A qualquer ser humano. Dadas as circunstâncias, talvez qualquer um de nós pudesse se tornar um gerente do Holocausto.

Eichmann ouve sua sentença

A partir daí o pesquisador Stanley Milgram começou a imaginar que talvez a cultura germânica fosse diferente, mas logo chegou à conclusão de que todos nós obedecemos à autoridade. Por causa de seu interesse em Eichmann, Milgram criou um experimento em que sujeitos eram recrutados para aplicar choques elétricos em cobaias, sobre as quais ouvia que "não colaboravam". Quando ordenados, os viventes não tinham dúvidas em ativar voltagens suficientes para matar os pobres coitados, não fossem eles voluntários apenas fingindo sofrer com a eletricidade, inexistente.


Todas essas conclusões foram tão deprimentes para a raça humana como um todo que em 1975 o pesquisador Michael Selzer reavaliou os testes psicológicos de Eichmann e chegou à conclusão de que eles mostravam sim uma personalidade peculiarmente "germânica" (e a expressão do garoto espremido num terninho aí em cima, o jovem Eichmann, parece dar suporte à sua teoria). Seus desenhos femininos mostravam uma mãe zangada, seus bonequinhos masculinos um ar conformado. Não adiantou muito. Muitos foram os exemplos de monstros que se revelaram homens banais depois de Eichmann. O mundo todo perdeu um pouco de sua inocência quando o burocrata que não entendia o ódio a ele dirigido ouviu obedientemente, como sempre, a sua sentença de morte por enforcamento.

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