julho 21, 2007

O Quarto Vértice

Escrevi esta peça em 1990, achava o conceito originalíssimo. Hoje tem até um desenho no Adult Swim, o segmento adulto do Cartoon Network, com esse tema, com dois dos mesmos personagens desse comecinho que eu postei em papéis de destaque. Lááááá em baixo eu falo quem são.

Paulo está entre o promotor, o advogado e o Juiz esperando seu julgamento por tráfico de denelina, observado por clones, Gandhi entre eles. Todos os clones, Gandhi inclusive, diferenciam-se dos que não são pelo uso de máscaras caricaturais. O advogado, o promotor, o Juiz e Paulo são humanos normais.

Advogado
(LEVANTANDO O ROSTO DE PAULO PELOS CABELOS) Vejam sua face lisa. A vida não o marcou, por que deveríamos nós fazê-lo? (AO JUIZ) Perdoai-o, ele não sabe o que faz.

promotor
Um menino mimado que mantiveram à margem da vida - isto é seu rosto liso. Que o tempo e a experiência façam dele um homem!

advogado
Quando jovens nos julgamos imortais, sem necessidade de arrependimentos...

promotor
É Justiça isso? Quebrar a Lei é querer ser punido. Um jovem tem mais tempo para pagar seus pecados do que um velho. Isto é justo!

advogado
Justo chamamos a um traje que nos tolhe os movimentos e rasga-se a uma ação mais brusca...

juiz
Chega! Metáforas vis, jogos de palavras, ardis! (CAMINHA ATÉ PAULO) A juventude tem muito tempo por matar, é normal que recorra a artifícios como drogas. (PEGA SEU ROSTO E O LEVANTA) És original. Sem passado. Livre. Compreendo tua ansiedade, tantos caminhos! (BEIJA-O)

promotor
E assim liberta-se aquele que deveria aprender...

advogado
Muito ele já aprendeu com nossos discursos...

juiz
Inúteis (SAI).

Saem todos, deixando Paulo sózinho. Entra Gandhi

gandhi
Você não está preso.

Paulo
Sempre o estamos a alguma coisa. À vida, a um amor, ao trabalho.

gandhi
Quem é pego vai preso. É a Lei.

paulo
Ela me soltou.

gandhi
Não falamos da mesma lei. (APROXIMA-SE AMEAÇADORAMENTE) O que você fez? Aproveitou o nome de seu pai? Aproveitou seu dinheiro? É amigo do Juiz? Ou... (SINISTRO) entregou-nos?

paulo
Desprezaram-me.

gandhi
Talvez a você, mas e seu crime? Tráfico de influências? Acordo com o promotor? Não se pode chamar a atenção para nós.

paulo
Você não é do tipo discreto.

gandhi
Cale-se. Você não devia ter feito o que fez. Se foi pego, tem que ser preso. Errou, tem que pagar.

paulo
Não é um conceito um tanto judaico-cristão para Gandhi?

gandhi
(FURIOSO) Eu não sou Gandhi! (TIRA O CHAPÉU) Eu tenho cabelos! Não tenho bigode! Gosto de sexo e violência! Não me fale assim!

paulo
Você está chamando atenção...

gandhi
(LARGANDO PAULO) O chefe ainda vai querer falar com você...

paulo
Você não é o George Raft mesmo não?
Gandhi acerta Paulo súbita e violentamente. Paulo cai.

gandhi
Medite sobre convivência pacífica conosco. (SAI)

paulo
"Às vezes me parece que meu sangue jorra abundantemente
Como uma fonte em espasmos rítmicos
Ouço-o bem correr com um longo murmúrio
Mas em vão me tateio em busca da ferida (...)"

Um clone entra e fica rindo com ar de louco no canto.

Paulo
O que foi? Que que você tá olhando?

clone
Teus pais treparam, né?

paulo
(LEVANTANDO-SE PARA PERTO DO CLONE) Que que você tá querendo, aberração da natureza?

clone
Não sou aberração da natureza. Sou Rui Barbosa. Você é que não é ninguém.

paulo
Eu me chamo Paulo. Você por acaso tem nome?

clone
Não, mas tenho uma mensagem pra você.

paulo
George?

clone
Nome não. Mensagem.

paulo
É de George?

clone
Não, é sua, é pra você.

paulo
(JÁ IRRITADO) Quem mandou você? Quem mandou a mensagem?

clone
Seu pai.

paulo
Qual é a mensagem?

clone
"Vinde a mim".

paulo
E onde ele está?

clone
À beira da morte.

paulo
Onde?

clone
Eu não sei de onde vim... nem para onde vou...

Paulo larga o clone.

clone
O mesmo lugar de sempre. Não há muitos lugares para onde ele possa ir...

paulo
Meu pai sempre foi conservador...

clone
(SORRINDO ENIGMATICAMENTE) E espera você... (VAI SAINDO) espera...

paulo
Tanto tempo... o que um pai pode dizer a seu filho no dia de sua libertação? (SAI)

Entram Patton e Gandhi. Patton tem a máscara maquiada como se fosse um rosto.

gandhi
O garoto foi pego.

patton
Todos são pegos um dia ou outro.

gandhi
Ele não foi preso.

patton
Não? Deixaram nas ruas aquele garoto de maus hábitos e mau comportamento, que pragueja e despreza seus semelhantes? Por quê?

gandhi
O pai dele tem certa influência.


patton
O pai dele é um velho louco. Prefere ver o filho derrotado a confessar a sua derrota.

gandhi
E o que devemos fazer?

patton
Fazer? (AGRESSIVO) Você ainda pergunta o que fazer?

gandhi
Suas ordens são não agir sem ordens.

patton
Mate o juiz, então. Os advogados e o júri. Os policiais que o prenderam. E ele.

gandhi
Matar todos?

patton
Se você não consegue ter um único momento de iniciativa, então deve se sujeitar aos caprichos do líder.

gandhi
Nós não vamos conseguir fazer tudo isso...

patton
Por quê? Não confia em si mesmo? Não sabe como fazer o que lhe cabe? É assim que se talham os homens, clone covarde! Qual o seu nome?

gandhi
Eu não tenho nome.

patton
Pois o meu é George. George Patton. Eu faço meu próprio nome. Sem denelina, sem êxtases e visões. Eu vivo com o corpo do guerreiro imortal. Eu dou as ordens e você obedece. Se não fosse eu, você obedeceria a outro. Chega. Teve a chance de fazer o mais fácil, agora quero todas as mortes. Uma por uma. Iniciativa não é o seu forte, quem sabe ação. Talvez nela você se descubra.
gandhi
Mas chefe...

patton
(SEGURANDO A CABEÇA DE GANDHI ENTRE AS MÃOS) Nos últimos três mil anos vaguei sob diversas formas nestas planícies. Tenho a vontade de cem homens expressa em túmulos reverenciados em todas as terras. Não me importa um garotão mimado nem um clone viciado em denelina. (CARINHOSO) Cumpra as ordens. Enlouqueça, experimente o êxtase da paixão destruidora. Todo anjo é terrível. Você é o meu mensageiro. Diga que George tem recado para todos. (LARGANDO-O) Vá. Liberto teu corpo para que me agrade.

gandhi
Eu tentarei ser digno, chefe.

patton
Seus atos não refletem verdade em suas palavras.

Gandhi sai. Patton fica sozinho em cena.

patton
"... traz em si tão belas criaturas..." (SAI)


Paulo fica olhando, parado, em cena. Dois clones do seu pai entram, postando-se como arautos.

clone 1
Sangue do meu sangue!

clone 2
Carne da minha carne!

Entra um terceiro clone, empurrando o pai de Paulo, inválido, deitado dentro de um pulmão de aço
pai
Sabe o que dizem por aí? Não soube nem criar meu filho, como pude tentar criar outras pessoas? (TOM) Como pensava saber alguma coisa, Paulo? Se nem com teu pai quis aprender algo? (TOM) E nem se deram ao trabalho de prendê-lo... simplesmente desistiram de você! Não percebe, Paulo, como todos estão desistindo de você?

paulo
Pai... é isso que é tão importante que você quer até me rever?

pai
Nós somos pai e filho, Paulo... há tanto que não nos vemos... como começar..? Talvez partindo do geral para o específico. Veja nossa sociedade... somos a cultura mais avançada do planeta... no entanto, se um de nós for deixado numa ilha deserta, provavelmente morreria de fome, frio ou sede. Você sabe cozinhar, Paulo?

paulo
Eu não morro de fome.

pai
Não. Usa o dinheiro com a venda da denelina.

paulo
E você reclama do quê? Você ajudou a povoar o mundo com esses pobres fantasmas. Corpos que já fizeram o que tinham que fazer, tentando redescobrir o mundo porque em vez de nome têm uma sequência artificial de DNA. Deixe-os ao menos pensarem que podem ser tão grandes quanto seus ídolos.

pai
Suas matrizes, Paulo. Suas matrizes. Eles deveriam imitar o comportamento das matrizes, não idolatrá-las.

PAULO
Não podem ter ídolos, nome nem uma vida normal porque devem ser quem decidiram que eles fossem. Com a responsabilidade de ultrapassar seus criadores. Como vocês queriam que isso funcionasse?

pai
Parecia uma boa idéia. Criar clones a partir do DNA recuperado dos grandes gênios da humanidade. Uma segunda chance para os incompreendidos. Se lhes impúnhamos responsabilidade, qual o problema? Pais sempre agiram assim com seus filhos.

paulo
E por isso paramos de nos falar. E vocês resolveram repetir esse erro em escala de laboratório.
pai
Este é o nosso mundo. Por que deixar que a natureza insistisse no acaso e em povoá-lo com mentes insignificantes e corpos decadentes? O erro talvez tenham sido as matrizes. Escolhemos as exceções. Newton era celibatário. Freud era neurótico. Da Vinci e Michelangelo, homossexuais, Marx um fracassado. Devíamos saber que os gênios são o erro.

paulo
Era isso que você queria me dizer?

pai
Quieto, Paulo. Eu, vivendo neste aparelho. Veja as maravilhas da tecnologia. Falavam de mim, "uma mente brilhante, pena que seu corpo esteja morrendo". Agora, meu corpo e minha mente vivem. Separados, sim, todos vivem assim agora. (A UM CLONE) Ponha-me em posição explanatória, um.

O clone movimenta a maca do pai.

pai
Obrigado. Veja estas figuras débeis, estes corpos frágeis. Onde está a determinação que me levou a lutar tanto, a me superar? Por que eles se contentam em ficar tomando contam de mim?

clone
(ASSUSTADO) A vida é incerta, mestre...

paulo
Talvez lhes falte exatamente denelina.

pai
Sempre os mesmos erros. Em vez de tentarmos construir um futuro, insistimos em reconstruir um passado. Se nossos gênios fossem realmente os gigantes que achamos que foram, a humanidade seria muito mais evoluída! A denelina não resolve nada. Uma droga que estimula a fabricação de neurotransmissores genéticos. Que traria à tona a informação cerebral contida nos gens. Tolice.

paulo
Os clones não acham isso.

pai
Se eles soubessem de alguma coisa, não seriam o fracasso que são. O uso prolongado da denelina apenas apaga toda a memória do indivíduo e o deixa à mercê de seus instintos animais! Toda volta ao passado é uma volta ao bestialismo. Inocência é caçar, é matar sem remorso, é morrer sem medo. Eu temo a morte, a verdade é essa. E me cerco de clones. Sou todos eles.

paulo
E parte de você em mim.

pai
O que nos traz ao motivo pelo qual o chamei. Denelina e passado, matrizes e estes descerebrados rindo. Pai e filho. Chegou a hora de você mudar tudo isso.

paulo
Não estou interessado, pai. Estou bem. Tenho a minha vida, não queira me empurrar a sua.

pai
A minha? Com tanto de minha vida já circulando em torno de nós? Você nunca foi muito perspicaz. Você não sabe porquê, mas sua simples existência alivia as dores da minha morte próxima. Mas você não é o que eu queria que fosse.

paulo
Ambos o sabemos há anos.

pai
Os pais sempre se enganam a respeito dos filhos. Por isso pensei que tal não aconteceria entre nós.

paulo
O que você quer dizer com isso?

pai
As primeiras matrizes começavam a não dar certo. Meus colegas falavam em redimi-los. Sublimando seus desejos, eles alcançariam seus intentos. E assim comecei a procurar uma matriz que se encaixasse nesses requisitos.

paulo
(APROXIMANDO-SE ASSUSTADO) O que você quer dizer, pai?

Os clones afastam-no do pai.

clone
Contenham-se, vocês parentes.

pai
Veja o respeito que têm por mim. Não. A matriz que eu procurava devia resolver todos esses conflitos. Comecei a pesquisar. O que tínhamos, pensei, da Antiguidade? Que cadáveres e restos mortais de homens que criaram a razão?
paulo
Esses conceitos nunca funcionaram! Você mesmo acabou de dizer!

clone
Nenhum dos dois deve se exaltar! Aqui é local de silêncio.

clone 2
Repouso e meditação.

pai
De tanto pesquisar, acabei encontrando um dossiê, daqueles perdidos há muito tempo. Uma pesquisa antiga, da década de 80. Dataram um artefato antigo. Foi tudo feito errado. Não contavam na época com o efeito Renitz. Esqueceram os efeitos da radiação transmutadora esperada num evento de tal magnitude. Em suma, a pesquisa dizia que o artefato não era da Antiguidade. Com técnicas atuais, cheguei à conclusão que era. Acabei conseguindo uma amostra do tecido.

paulo
(DESESPERADO, AJOELHANDO-SE EM FRENTE À MACA) Pai! O que você está falando? Que tecido? Que tecido era este?

clone
A trama do Destino.

pai
Marcas de sangue de uma teórica transfiguração. O Santo Sudário. A mortalha...


clone
... de Jesus...

paulo
Cristo!

pai
E em nome de Deus. Um clone redentor. (AOS CLONES) Levantem-me, quero encará-lo!

Os clones levantam o pai.

pai
Você era importante demais. Por isso resolvi criá-lo como filho, o filho que eu jamais poderia gerar!


clone
Ele não é seu filho?

clone 2
(DESESPERADO) Nosso filho? O que foi feito de nosso filho?

pai
(ALHEIO AOS CLONES) Por isso eu não falava com você. Você devia falar comigo.

paulo
Pai... eu sou um... clone?

clone 3
Como seria dormir com sua mãe?

pai
Um clone? Você tem nome. Você foi criado a partir de receptores e tecidos humanos. Você é meu filho.

paulo
O que quer fazer de mim, afinal?

pai
Sou estéril. Estou velho. Impotente. Veja meus clones, a idade afetou o processo.

clone
Eu cozinho.

clone 2
Eu cuido do orçamento.

clone 3
Enfermeiro. Cuido da casa e do corpo original.

pai
Mostre-me o futuro, meu filho. Você não é apenas mais uma cópia. Faça algo por eles. Esta era minha esperança. Não deixe que nossas melhores criações se percam.

paulo
Pai... isto é loucura. Eu sequer sou humano. Você e minha mãe sempre foram dois estranhos. O que você acha que eu posso fazer?


pai
Mais do que vender drogas. (AOS CLONES) Ponham-no para fora! Ele sempre reclamou que eu queria influenciá-lo. Não vou lhe dizer como agir, então. Não vou lhe dizer uma palavra.

paulo
Pai, isto é loucura!

O clone 1 e o clone 2 agarram Paulo que se debate. O clone 3 vai levando o pai embora.

paulo
Pai, o que você fez a seu filho? O que você fez a todos nós?

clone 1
Obedeça seu pai!

clone 2
Ouça seu pai!

Depois que o pai foi embora, os clones largam Paulo e vão saindo. Paulo cai ajoelhado, arrasado. Clones começam a passar. Um manco vendendo balas. Um, amedrontado, fugindo se escondendo pelos cantos. Outro, carregando pastas como um boy. Entram Napoleão - um clone que usa várias máscaras sobre o rosto, levantadas, deixando o seu próprio rosto à mostra, normalmente. Vez por outra, põe uma máscara - segurando uma bebida e Heloísa, abraçada a ele.

Os clones de Gandhi e Cristo também aparecem no desenho como personagens de destaque, Gandhi em particular.
A maior parte das pessoas só conhece Gandhi da imagem idealizada do filme de Richard Attenborough, que tentou emular David Lean. Pouca gente sabe que o garoto era hiperativo e o casaram com uma guriazinha aos quinze anos. O moleque adorou aquele negócio chamado trepar e passava o dia inteiro fazendo-o, com o rendimento na escola desabando. Seu pai adoeceu e, quando ele morreu, Gandhi estava na cama com a esposa adolescente e carregou a culpa por isso a vida inteira, nunca se perdoando por não estar ao lado do pai na hora da visita da ceifadora. Isso deve explicar parte da abstinência dele em sua fase de agitador, político e líder, não?

P. S.: Segundo Jung, as coincidências não existem: a chave preu subir essa postagem é "maya". Falo tanto em Gandhi e o computador me lembra que tudo é ilusão.

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