julho 15, 2007

O Rapto do 464

(Crônica publicada em 2005 no primeiro número da revista sobre transportes MOVIMENTO)

A discussão era se vale realmente a pena deixar o conforto da poltrona de casa e sair correndo para pegar engarrafamentos, dificuldade de estacionar, cadeirinhas desconfortáveis e arrastões só para sentir a emoção de ver o jogo ao vivo no Maracanã. Alguns argumentavam que se perde o replay e o tira-teima, outros ponderavam que em compensação perde-se também o Casagrande e o Arnaldo César Coelho.

Eu já enveredava pela nostalgia, pelo imenso afeto que eu sentia pelo 464, nos tempos sem metrô e sem carro popular, sempre cheio em seu caminho para o jogo, nos tempos em que qualquer clássico levava sessenta mil pessoas ao Maracanã, nos tempos em que o futebol carioca era o melhor do país, nos tempos em que desde as três da tarde o trânsito já não fluía a partir do Estácio. Isso para não falar nos jogos importantes em meio de semana, em que todo mundo chegava na mesma hora. Ainda me lembro da agonia do 464 se arrastando pelo Flamengo, entupido de vascaínos, na final do campeonato brasileiro de 74, eu e meu pai em pé, o raio do ônibus que não andava, tudo engarrafado. Para a minha adolescência em Botafogo, aquela era a grande linha - ia para as praias de um lado e para o Maracanã do outro. Foi quando o André comentou que já tinha sequestrado um 464. Como assim, sequestrado um 464? Ia jogar sobre a embaixada americana ou coisa parecida? Não que o André fosse da Al-Qaeda, mas quase. Tinha sido da Falange Rubro-Negra, quando não em sua identidade secreta de estudante de filosofia, ambos em tempos idos.

A experiência terrorista de nosso amigo começou no dia em que o Botafogo, após vinte e um longos e invernais anos, conseguiu, escalando em suas linhas Maurício e Mazolinha, vencer o Flamengo de Zico, Bebeto, Renato Gaúcho e Leandro jogando pelo empate. Daí se imagina o bom humor do André quando, junto com vários colegas da Falange, teve que entrar num 464 já com alguns botafoguenses batucando e cantando seus empoeirados e bolorentos cantos de vitória. O pessoal da Falange não tinha que aguentar aquilo. Ainda mais estando em maior número. Entraram e puseram para fora à força os adversários e se apossaram completamente do ônibus, inclusive intimidando o motorista para que ele não parasse nos pontos para pegar botafoguenses, principalmente no Mourisco, então sede do Botafogo e parte do itinerário da linha.

Ainda que saboreando a satisfação primitiva pela conquista daquele exíguo e móvel território, viajar até Copacabana entre todos aqueles carros buzinando e batucadas em ônibus parecia uma grande provação para os falangistas. Os diretores da torcida diziam que eles deveriam levar o hino do Flamengo, mostrar orgulho apesar da derrota, mas ninguém se sentia com espírito para tanto. Foi quando alguém falou que eles deveriam então cantar o hino do Botafogo.

E assim foi feito. Os uniformizados tiraram suas camisas e as esconderam e todos começaram a cantar - ainda que docemente constrangidos - Botafogo, Botafogo, campeão de 1910... e logo conseguiram atrair um incauto coroa e torcedor adversário para o carro. O óbvio fato de que ele covardemente sequer se dera ao trabalho de ir ao jogo e ficara em casa vendo pela tevê mais enfureceu os rubro-negros, mas eles continuaram entoando o hino, enquanto, segundo André, o coroa tentava comemorar sem demonstrar o mínimo jeito para a coisa, brandindo o braço e sorrindo, mais parecendo uma caricatura. Ele entrou, pagou a passagem e - imagino a cena - começou a perceber que todos os olhares estavam fixos nele, enquanto o hino alvinegro era cantado sem paixão, com todos aqueles rostos encarando-o sem demonstrar alegria, a cadência de marcha de hino de clube começando a tornar-se cada vez mais sinistra aos ouvidos do pobre senhor até ele divisar o detalhe final e revelador - saindo de bolsos das bermudas e dos shorts, mal amassadas em mãos fechadas... camisas do Flamengo!

O coroa foi posto para fora na base do cascudo - notem bem, cascudos, nada de tacles e pontapés até deixar o cara desacordado na rua, o André nunca foi disso - e foi apenas o primeiro de uma série. Vários outros se seguiram, até que na altura da Corrêa Dutra, entrou um baixinho carregado de faixas do Botafogo campeão. Era tudo que o pessoal da Falange queria para coroar a noite após sentir em suas entranhas aquele gol do Maurício, tacar fogo em um monte de faixas do adversário. No entanto, torcidas organizadas costumam atrair sujeitos chegados em movimentos organizados em geral, inclusive sindicais. Quando o baixinho percebeu que era uma presa num ninho de predadores, começou a gritar implorando por suas faixas, pois que era Fluminense e estava indo para o Mourisco apenas para vendê-las e faturar um troco com aquela paixão pelo esporte da qual ele não compartilhava. Imediatamente os sindicalistas começaram a ponderar que ele era trabalhador e precisava ser respeitado, num país em que o capital leva tanta vantagem e a mão-de-obra não tem vez, e a luta de classes, e os juros a 16% etc etc... Enfim, o baixinho foi poupado. Mas ele não saltaria no Mourisco, quartel-general do inimigo, onde o ônibus não pararia. Teria que saltar no Rio Sul e caminhar até lá.

E eis que o 464 chega no Mourisco e pára, apesar de tudo que fora dito. O baixinho saltou e, mal encostou o pé na segurança do asfalto, começou a gritar, "aí, galera, o ônibus tá cheio de flamenguista". Pode-se imaginar o que se seguiu, o carro cercado de gente por todos os lados, levando chutes na lataria, pessoas tentando invadi-lo pelas janelas, enfiando as mãos pelas frestas tentando atingir alguém, outros empurrando as portas para se abrirem e o motorista forçando lentamente passagem, avançando centímetro a centímetro motivado pelos cascudos que ia levando dos flamenguistas, lembrando vagamente a retirada americana do Cambodja.

Enfim, por dentre um mar de cabeças, pontapés e demonstrações várias de territorialidade de ambas as partes, o 464 irrompeu para a segurança do asfalto vazio de uma da manhã e avançou pelo Túnel Novo, ainda impulsionado por cascudos no motorista, bem merecidos, segundo o André, por ele ter parado no Mourisco.

- E agora, meus amigos, me digam... - completou ele após a longa história - Quando é que assistindo ao jogo pela tevê alguém vai se divertir tanto assim?

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