outubro 26, 2008

Blogue Sem Lei II

Paixão dos Fortes, de John Ford

(My Darling Clementine, 1946)

Ainda outro dia n'os Simpsons, o Dom Pixote apareceu confessando que sempre foi gay, mas os produtores não o deixariam assumir. Mas isso não tem nada a ver, fora o fato de que ele estava sempre cantando (desafinado) a música que dá o título (em inglês) a mais uma obra-prima deJohn Ford, “Oh querida, oh querida, oh querida Clementina...”

Sob esta canção, John Ford reconta o duelo de OK Corrall e consegue ser ainda menos fiel à história do que o John Sturges no capítulo anterior. Mas quem liga para os fatos quando se está criando lendas? Ninguém nunca reclamou com Homero que homens invulneráveis não existiam. E John Ford se apropria dos folclóricos Earps e Clantons não para fazer mais uma fita de bangue-bangue, mas para montar sua própria mitologia, praticamente narrar sua própria cosmogonia americana. Se para Sturges o oeste era a terra onde os homens eram homens, para Ford era onde os homens eram deuses.

Onde Sturges foi épico, Ford foi lírico. Com uma extraordinária fotografia em preto-e-branco em a locação favorita do diretor irlandês, Monument Valley, a fita tem um visual fortemente poético. As composições fazem uso das calçadas de madeira, das traves e vigas para enquadrar os personagens e a paisagem. Os homens se amontoam no salloon enfumaçado, mas quando alguém abre a porta dá de cara com as formações de pedra do vale monumental, amplo horizonte e belas nuvens no céu, sendo quase palpável a sensação de frescor e liberdade, bem como a confortante segurança oferecida pela vila em pleno deserto. Quando os Earps deixam seu caçula cuidando do gado e vão à cidade para tomar um banho e uma cerveja, as luzes e a música em contraste com a escuridão plana de onde eles saíram é quase um abrigo maternal, as maravilhas da civilização que Ford tanto prezava.

Sturges concentra sua história em seus dois protagonistas. Todos mais, o que não totaliza muita gente, são coadjuvantes, inclusive os vilões. Ford, humanista ao extremo, povoa sua cidade com os mais diversos tipos e todos eles, mesmo os que aparecem uma ou duas cenas, são personagens e não figurantes. Somente assim ele pode conjurar o clima comunal tão essencial à sua visão da civilização conquistando o agreste, a ordem avançando sobre o caos. Incidentalmente, ficamos extremamente envolvidos emocionalmente e cenas que de outra maneira poderiam parecer piegas e sentimentais acabam passando incólumes diante de nossos olhos.

E o lirismo se espraia por todo o filme. Wyatt Earp se distrai tentando se equilibrar nas pernas traseiras da cadeira. Quando atraído pela Clementine que dá nome ao longa, ele pergunta ao garçom se ele já se apaixonara, recebendo a resposta, “não, sempre fui um barman”. As pessoas se movem languidamente. O primeiro encontro dos Earp com Doc Holliday é um elaborado ritual de masculinidade e determinação sem violência (compare com o filme de Sturges, onde os dois se “apresentam” com um assassinato e depois uma fuga). E, falando em Holliday, até a canastrice de Victor Mature funciona à perfeição em um clima tão poético e mitológico.

E o que é Doc Holliday no longa? Alguns o apontam como o reflexo sombrio de Wyatt Earp, o herói nobre e cheio de qualidades, mas seu fatalismo auto-destrutivo furioso serve a várias leituras, inclusive de que ele poderia representar os valores europeus. Antes da chegada dos Earp, quem mantinha precariamente a ordem em Tombstone era ele. Suas intenções eram boas, mas seus vícios, decorrente de sua doença, comprometem a pureza de seus feitos. Ele tem todos os predicados do Velho Mundo – um diploma (de médico nessa versão, uma promoção para o dentista que ele era na vida real), cultura clássica (sabe Shakespeare de cor), habilidade marcial, mas lhe falta determinação, corroído que está pela tuberculose, e a idéia de morte o leva a buscar a satisfação de seus desejos, inclusive os sexuais, representados por Chiuauha, a mestiça que todo mundo maltrata no filme. Uau, Holliday é o decadentismo em pessoa. Sua união com o ideal americano encarnado por Henry Fonda provar-se-á invencível (o quê? Você não sabia que o duelo em OK Corrall termina com a vitória dos Earp? Desculpe).

Aliás, a maneira como a pobre Chiuauha é tratada na fita, bem como o índio que aparece tocando zona com um revólver e é tratado como um idiota por Earp (“que cidade é essa que vende álcool para índios?”), deixam o povo politicamente correto de orelha em pé com Ford, mas essa é uma preocupação superficial, estamos falando de mitos aqui, é como reclamar que as mulheres não são bem retratadas na história da Caixa de Pandora ou na expulsão do Paraíso. O que interessa para Ford são os ideais, e o ideal feminino é encarnado por Clementine, a ex-noiva de Doc Holliday que aparece de surpresa e por quem Earp se apaixona, mostrando seu lado tímido. Nas mãos de Ford, a cena da dança (o ritual comunal presente nos filmes do diretor mostrando o homem celebrando sua conquista sobre o agreste) em que Earp pergunta se pode dançar com ela é tocante. Mesmo Chiuauha, que nesta versão TAMBÉM corneia o Holliday com o John Ireland (representando o jovem Billy Clanton encarnado por Dennis Hopper no longa de Sturges) é digna de nossa pena, em sua paixão pelo médico.

Só quem não tem um pingo de nossa simpatia na história toda são os Clanton. Basta o olhar do Velho Clanton e seu primogênito para sabermos que eles são bestas-feras selvagens e indomadas. Os Clanton praticamente não falam no filme, sendo Walter Brennan seu porta-voz, o único que tem o dom da prosa na família. O ator, normalmente um ajudante com tons cômicos, modula a voz um pouco mais grave e tinge de ameaça cada palavra, mesmo quando está tentando parecer gente boa. Suas idéias de criação de filho são exemplificadas quando Wyatt Earp sai depois de dominar os Clanton numa confusão de bar e o patriarca chicoteia sua prole enquanto dá seu conselho paterno: “quando puxar uma arma, MATE um homem!” Não é surpresa que seu garoto mais velho pareça desprovido de fala, com o olhar hostil sempre fixo e tenso como uma corda de piano.

E assim se desenrola a história que levará ao inevitável confronto, como em toda narrativa mitológica, o herói relutante enfrentando o inimigo-metáfora e incapaz de encontrar paz para si mesmo. O duelo final é um confronto de caráter e não de habilidade; ao invés da ação enérgica de Sturges, temos mais belíssimas cenas poéticas, como um sujeito caindo atingido por tiros vindo de uma nuvem de areia ou outro passando correndo de um lado e entrando lentamente em quadro do outro lado o seu alvo, mortalmente atingido. John Ford sabe como contar uma história e, mais do que isso, como contar uma lenda. “Paixão dos Fortes” não tem um pingo de veracidade, mesmo com o diretor tendo conhecido pessoalmente Earp no final da vida, mas diz muito mais sobre a América e o oeste do que um tiroteio entre arruaceiros violentos jamais poderia dizer. Um clássico, uma obra-prima, é de matéria como esta fita que as mitologias são feitas.

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