janeiro 04, 2009

Blogue Sem Lei XI

O Último Pôr-do-Sol
(The Last Sunset, 1961, de Robert Aldrich)


Gracinha no começo do filme: Hudson descreve o sujeito que está perseguindo como alguém com um furinho no queixo.

O ano virou e, por mais que seja ótimo ficar na praia de papo pro ar, está na hora de retomar as tarefas, ainda mais quando finalmente aparece um leitor pedindo uma postagem sobre um dos faroestes prediletos dele, “O último pôr-do-sol”. Nem sei mais se neste ano pôr ainda tem acento (provavelmente não) ou se escreve pordossol em vez de tascar uns hífens aqui e ali, mas o blogueiro ainda está muito ressacada pra começar a pesquisar saites com a nova ortografia e, além disso, é o que vem escrito na capa do DVD.


Se bem que também vem escrito que o formato da fita é fullscreen, 4 x 3, o formato das velhas tevês de tubo, mas na hora de em que o disquinho começou a rodar, ele preencheu perfeitamente a tela 16 x 9 da plasma de 50 polegadas. Ou ninguém nem assistiu ao filme antes de preencher as informações ou resolveram mesmo partir pro engodo, sabedores que a imensa maioria das pessoas ainda não entrou na era do widescreen e odeia as famigeradas faixas pretas em cima e embaixo.


Mas apesar da transcrição respeitar o formato original, a imagem não é grande coisa, embora a culpa provavelmente seja mais dos negativos coloridos Eastmancolor, então de paupérrima qualidade. É visível a competência do diretor de fotografia – com exceção de alguns interiores e cenas noturnas de estúdio, a fita não tem em momento algum aquele ar televisivo que iria alastrar-se nas décadas de 60 e 70. Embora longe de uma produção B, com uma estrela então no auge, Rock Hudson, além de Kirk Douglas, cuja companhia foi co-produtora, é claro que não se está diante de um orçamento gigantesco como o esforço anterior de Douglas, “Spartacus”. Aliás, este longa foi rodado durante a pós-produção do épico dirigido por Kubrick, deixando claro seu status secundário.


Mas, como falávamos, a fotografia consegue deixar bem claro que esta é uma película cinematográfica e não televisiva, e que foi rodada em autênticas locações mexicanas, apesar da pobreza do negativo não colaborar. Credite na conta de Robert Aldrich, esplêndido diretor raramente levado em conta quando se fala de cinema americano, apesar de ter subvertido vários gêneros em sua carreira, com obras originais e pessoais – o filme de guerra com “Os doze condenados”, o filme noir com “A morte num beijo”, o filme de terror com “O que aconteceu com Baby Jane?” e o próprio bangue-bangue com “Vera Cruz”, precursor do faroeste-espaguete. No entanto, apesar da solidez desta fita, a direção dele não é inspirada e, em certos momentos, há cortes terríveis, como se a edição tivesse sido feita correndo. Em meia dúzia de cenas há um salto de uma câmera que enquadra um ator sorrindo pra outra onde o mesmo sujeito está sério, ou de quando ele está sentado pra outra em que ele está em pé, ou no meio de um movimento que ele não estava fazendo, a começar pela sequência inicial de Rock Hudson. Kirk Douglas tinha se desentendido com Anthony Mann no começo da trabalhosíssima filmagem de “Spartacus” e pra seu lugar tinha contratado um jovem talentoso com quem tinha trabalhado havia pouco e que ele achava que não fosse lhe dar dor de cabeça, um garoto que certamente iria se curvar à vontade dele, um tal de Stanley Kubrick. Depois dos dois quase se matarem ao levar para as telas um de seus grandes momentos, Douglas queria alguém menos exigente, perfeccionista e com menos pretensões artísticas para reger seu próximo projeto, mas Aldrich realmente queria o posto e fez juras de subserviência a Douglas para consegui-lo, apenas para irritar sua estrela quando este descobriu que Aldrich levara para as locações cinco roteiristas para trabalhar concomitantemente em suas próximas produções.


Vez por outra reconhecemos os toques de Aldrich, como por exemplo quando os dois protagonistas primeiramente se encontram, com seus cavalos frente a frente, ou na morte de Joseph Cotten, mas principalmente na condução dos atores. De 1961 pra cá Rock Hudson ficou famoso como ícone do movimento gay e já naquela época tinha granjeado reputação de canastrão sem talento, portanto é com surpresa que se percebe que em duas ou três cenas já se está completamente convencido de que ele é um caubói durão e violento, apesar de bronco – inclusive moralmente, seu personagem tem um código de conduta conservador por visivelmente nunca lhe ter passado pela cabeça questionar o que lhe foi ensinado como certo. Com um mandado de prisão contra Kirk Douglas, ele participa de uma longa jornada conduzindo gado ao lado do próprio, esperando chegar em território americano e voltar a ter poderes legais. Quando ele chega, para sua própria admiração, não tem mais vontade de prender o sujeito – na verdade matá-lo, pois sabe que ele resistirá – porque não consegue ter raiva de alguém que passou a conhecer.


E ele certamente deveria ter raiva de Douglas. Tanto ódio, que o faz persegui-lo além da fronteira e conduzir o gado com ele até chegar aos bons e velhos Estados Unidos da América, provém de um duelo onde Douglas matou o cunhado de Hudson. Numa das noites da jornada, Douglas, irritado por ser chamado de assassino, conta a Hudson que a irmã dele dava pra todo mundo e o cunhado era um famoso corno. Hudson então completa que sua irmã, alguns dias depois da morte do marido, se enforcou com uma correia de couro, para transtorno de Douglas.
Sim, porque o personagem de Kirk Douglas não é um simples pistoleiro malvado sempre pronto a matar alguém numa bebedeira num salloon apenas pela diversão. Poético, boêmio, sedutor, charmoso, bom de briga, ele está mais para um herói romântico, um mosqueteiro, um Zorro, um Pimpinela Escarlate. Dalton Trumbo, porém, não lhe fornece uma revolução, uma insurreição, um posto oficial ou uma fortuna para dar vazão a seus instintos e sonda o que vai na alma de um sujeito assim. O leitor que pediu esta postagem diz que curtia esta fita nas matinês de sua adolescência. Com um protagonista perverso e derrotista, quase saído de um filme noir, gostar desse filme parece ser coisa de alguém que foi um adolescente conturbado.


Assim como foi Kirk Douglas. Em sua juventude, ele se apaixonou por uma garota rica. Ao vê-la num baile, deslumbrante em um vestido amarelo, ao invés de pedi-la para dançar, arrumou uma briga – arrancou as flores do traje e saiu na porrada com o acompanhante. Dezessete anos depois, de sua vida em meio à jornada, achou-se em selva tenebrosa, tendo perdido a verdadeira estrada. Sem tostão, família, fracassado como poeta e amante, com uma visão quase mística da natureza, tem que enfrentar o fato de que foi o responsável pela morte pelo menos do cunhado de Hudson, o que vai contra suas crenças e sua auto-imagem de um artista romântico e cavalheiresco. Explicando-se, ele diz que se não fosse a vontade de Deus, ele não teria matado ninguém, pois não é Deus, afinal, todo-poderoso?


E é amargando essa culpa que ele abre o filme chegando à fazenda de sua ex-amada dezessete anos depois de seu último encontro, para encontrá-la casada e com uma filha de... dezesseis anos (já fez as contas?). Seu marido é Joseph Cotten (1), um decadente nobre alcoólatra que tentou criar gado, por incompetência fracassou e quer vendê-lo no Texas para ter algum lucro. Douglas, que é informado que está sendo perseguido, oferece-se para ser a escolta armada, ao preço de um quinto da manada e... da esposa de Cotten. Que só ri e aceita. Nenhum dos dois sabe nada sobre bois, daí a brilhante idéia do pistoleiro: vai convencer o caubói que está atrás dele a conduzir a boiada. Idéia completamente estapafúrdia de alguém com nenhum senso prático e um tremendo desejo de agradar e de morrer.


A garotinha fica apaixonada de cara por Douglas. Seu pai fala sobre técnicas para uso de revólveres em duelos, mas todos sabem que é “delicado” demais para se meter em qualquer conflito. Douglas, aos 45 anos, se dá ao luxo de aparecer sem camisa enquanto conta para ela que prefere Derringers – aquelas pistolas pequenininhas que jogadores levavam na manga - aos Colts porque têm um cano pequeno e dá pra sacar mais rápido. E ele não usa cartucheira, leva as armas no cinto, porque “gosta de senti-las o tempo inteiro junto ao corpo”. Elas são a metáfora para sua fúria, que vai sempre impedi-lo de ser um poeta ou um cavalheiro romântico, sempre à flor da pele e sempre prestes a irromper. Como com a própria mãe, quando em vez de pedi-la para dançar partiu para a agressão. Sua fachada bonachona esconde uma enorme frustração e, quando tem a chance de deixar Rock Hudson afundar na areia movediça, joga para ele uma corda, traindo seu desejo de agradar a figuras de autoridade. Trumbo não precisa explicar uma infância de abusos, deixa aos especatdores a tarefa de ligar os pontos e imaginar como se formou a personalidade carente dada a acessos de violência e que tenta aumentar sua auto-estima criando uma imagem falha de romântico cavalheirismo.

É por causa dessa tentativa de cavalheirismo que ele promete que não irá balear Hudson pelas costas antes de cruzarem a fronteira e o mandado de prisão voltar a valer. Hudson aceita para tê-lo por perto e porque a mulher de Joseph Cotten é Dorothy Malone, 17 anos depois de estrear nas telas como a bibliotecária atirada que dá pra Humphrey Bogart enquanto ele vigia a livraria da frente, ou seja, era aquela criatura inumanamente bela que fez Douglas se apaixonar. A covardia de Cotten leva-o a ser baleado pelas costas no começo da jornada, deixando-a disponível para o xerife caretão, mas que ao invés de coisas boêmias e técnicas para duelo, sabe como conduzir gado, lidar com índios, achar o norte ou mesmo dar uma nova mãe a um bezerro perdido. Logo Malone começa a pender para o futuro ícone gay, enquanto as esperanças de Douglas vão se despedaçando e, sem que ele mesmo perceba, começam a se desviar para a filha dela.

A garota está completamente apaixonada porque Douglas não sabe se relacionar com mulheres de outra forma que não seja seduzindo-as. Por causa disso, por sua falta de senso prático, sua frustração que se transforma em fúria, sua subserviência a figuras de autoridade e sua carência doentia, adolescentes, moças com arroubos românticos ou vadias como a irmã de Hudson são as únicas que ele consegue ganhar. E outro dos motivos para isso, sua baixa auto-estima, fica aparente quando aceita quase tranquilamente que Malone prefira Hudson.

Também quando ele perde os 20% da manada a que tinha direito, ao balear sem nenhuma provocação um índio que se aproximou. Hudson pega o corpo do nativo americano e diz que vai tentar dar um jeito. Volta horas mais tarde com outros integrantes da tribo, que levam a percentagem da boiada que seria de Douglas – Douglas, aliás, para tentar impressionar Hudson, fizera questão de contar-lhe que um quinto daqueles ruminantes eram seus. Douglas, em vez de um de seus ataques de fúria, apenas sorri e disse que nunca gostou de vacas. Por trás daquele sorriso, por trás de seu romantismo, por trás de toda sua habilidade com armas, está um sujeito tão derrotado, frustrado e sem respeito por si próprio que no fundo sempre soube que não conseguiria embolsar sua parte no trato.

E age como se para perder mesmo sua parte. Douglas se sente culpado, não tem auto-estima, não tem dinheiro, não tem nada a não ser o encontro marcado com Hudson para acertar as contas – consigo mesmo: ou morre de uma vez ou vai ganhar ainda mais motivo para se auto-torturar com o assassinato de um homem que respeita e admira. Mas a garotinha dá uma animada no espírito quando, ao fim da viagem, aparece para a comemoração com o mesmo vestido amarelo com que sua mãe pela primeira vez surgiu aos olhos do então jovem pistoleiro. É demais para ele. Eles dançam e, quando ela o procura mais tarde ele resiste mas acaba cedendo e beijando-a – e, como essa ainda é a Hollywood clássica, fica a cargo do espectador pensar no que mais rolou.

Todo mundo que já assistiu a mais de meia dúzia de capítulos de novela, de animê, ou leu mais de dois livros, já sabe que homem+mulher que não se vêem há dezessete anos+garota de 16 anos que se parece com o sujeito igual a... isso mesmo. Parece que o poeta Douglas não é tão letrado assim, mas quando Malone conta a ele para impedir de fugir com ela, ele responde, “você acha que, mesmo seu eu não soubesse, não reconheceria a minha própria filha”. Ela apenas fica calada e ele é obrigado a reconhecer que sua sexualidade imatura na verdade o impeliu a comer a própria prole. Não há mais saída para ele além de passar um belo papo na menina dizendo que já volta depois de resolver uns assuntos e partir para enfrentar Hudson com as armas descarregadas.

“O último pôr-do-sol” é portanto uma fita perversa do começo ao fim. Aldrich, apesar de ser mais do que capaz de dirigir clássicos doentios – todos os já citados “O que aconteceu a Baby Jane”, “A morte num beijo”, “Os doze condenados” e “Vera Cruz” são todos filmes com um ar psicopata – entrou como diretor de aluguel e nunca foi um entusiasta da cor, preferindo a iluminação mais paranóica e neurótica dos negativos monocromáticos bem mais sensíveis e flexíveis do que o Eastmancolor desta película. A própria cena final, do crepúsculo derradeiro do título, mostra o astro-rei se recolhendo por trás de montanhas e corta para Douglas e Hudson sob um inclemente (e inegável) sol de meio-dia, sem sombras e sem a puxada para vermelho que poderia ter sido conseguida pelo menos no laboratório.

Embora Trumbo construa um personagem interessante, perverso, imaturo, derrotista, frustrado – um pacote Woody Allen+o pior de Errol Flynn – e Douglas, produtor da fita, se esforce no papel, falta uma direção mais convicta e até um pouco mais de ação. É de surpreender que um adolescente tenha apreciado este longa. Uns bandidos de meia-tigela – Jack Elam entre eles – aparecem meio sem motivo pra tentar estuprar as mocinhas pra prover alguma aventura durante a longa jornada em que nada acontece a não ser a tensão entre Hudson, Douglas, Malone e Miss Douglas Jr. “O último pôr-do-sol” é um western interessante, original e diferente, mas longe de um clássico.

(1) Cotten conta que seu personagem era um bêbado, corno, incompetente e covarde, com um ferimento na bunda provando indelevelmente que ele fugia quando foi baleado e, por isso, só aceitou o papel com o compromisso dos produtores de que o filme não estrearia na cidade de sua mãe enquanto ela fosse viva.

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