janeiro 11, 2009

Blogue sem Lei XII

Matar ou Morrer
(High Noon, 1951, de Fred Zinnemann)

“Matar ou Morrer” é um sólido faroeste, com uma megaestrela no topo do elenco e outra em ascensão fazendo o papel de sua noiva, e é também uma experiência cinematográfica que mexe com tempo real e edição a metrônomo. Junte a isso um subtexto (modo de dizer, não há nada de “sub” nesse texto) antimacartista e antiamericano e eis um dos grandes favoritos de todo o mundo da sétima arte.

Menos entre o povo mais novo que não suporta preto-e-branco, é claro, já que aparentemente a produção, depois de juntar o casal Gary Cooper e Grace Kelly, o diretor Fred Zinnemannn, o roteirista Carl Foreman, e ainda suportá-los com Katy Jurado, Lloyd Bridges, Thomas Mitchell e Lee van Cleef, ficou sem grana pra filmar em technicolor, o que era comum pra quem tinha um nome de tanto peso encabeçando o elenco. Rodado numa cidade cenográfica já veterana, com iluminação plana e uma direção de arte pouco inspirada (o que não incomoda muito porque a imagem monocromática não chama a atenção para as paredes vazias), o longa só não tem um ar televisivo graças à direção inspirada e aos rostos conhecidos.

A história virou um clássico e já foi refilmada até mesmo como ficção científica (com Sean Connery, em "Outland - Comando Titânio"): marginais mal-intencionados atemorizam um bilheteiro (início que seria homenageado por Sergio Leone em "Era uma vez no oeste") e confirmam que o trem chegará ao meio-dia, trazendo Frank Miller, não o quadrinista, mas um bandido que acaba de ser solto da cadeia. O funcionário da estação corre até a cidade para avisar ao xerife responsável pela prisão do elemento anos antes. E o empregado da ferroviária chega às dez pra onze, bem na hora em que Gary Cooper está se casando com uma quacre pacifista encarnada por Grace Kelly e deixando o cargo, que só será preenchido em alguns dias.A partir daí, quase sempre com um relógio ao fundo, Gary Cooper vai tentar arregimentar ajuda para enfrentar os celerados fora-da-lei que querem ajustar as contas. E só recebe negativas, a maioria por pura covardia, disfarçada por racionalizações. Na igreja, quando parece que alguns voluntários vão se apresentar, seu melhor amigo faz um discurso dizendo que um tiroteio poderia afastar os investidores externos (é sério) e a solução seria Cooper ir embora para outro condado (nós, brasileiros, temos por um instante a sensação que Mitchell vai sugerir aumentar os juros).

Mas há outros motivos. O ex-ajudante de Cooper, Lloyd Bridges antes do acqualung de Mike Nelson, se põe à disposição desde que Cooper o nomeie seu sucessor. É claro que nosso herói irá recusar a chantagem, o que deixa Bridges furioso, achando que é porque ele é quem come agora a ex-namorada de Cooper, Katy Jurado. Katy Jurado é uma mulher muuuuito mais interessante que a noiva chatíssima que fica insistindo pra Cooper deixar tudo pra lá e passar o resto da vida se escondendo. Mas é mexicana e não é virgem. Quando sabe que Bridges contou a Cooper que eles estão juntos, ela dispensa o rapaz, dizendo que ele nunca será um homem como Cooper, que seria mais digno do elogio se não tivesse se prendido à tradição e arrumado uma loirinha WASP novinha e ainda selada pra casar. Jurado só trai o ressentimento que sente por esta decisão quando um de seus clientes sugere poder botar uns homens aramdos do lado do xerife se ela quiser, mas ela prefere que não e se manda da cidade.

A montagem cortada a metrônomo é sensacional. Os cortes são feitos em cada batida do marcador de ritmo (embora obviamente não houvesse necessariamente um corte a cada batida). A tensão vai se acumulando sensivelmente até o paroxismo da montagem da chegada do trem. O apito coroa a sequência quase como um orgasmo - a chegada enfim de Frank Miller é quase um alívio, melhor resolver logo o assunto do que toda aquela expectativa. Também contribui para a ansiedade a filmagem sob um inclemente sol de meio-dia e as janelas e portas fechadas enquanto o xerife caminha pelo meio das ruas desertas. Uma ou outra cortina se levanta rapidamente para vê-lo passar. A planície desértica, o amplo céu e a câmera baixa ressaltando tudo isso aumentam a sensação de solidão de um homem abandonado até pela própria noiva.

Cooper constrói um xerife durão, viril, mas que, ao contrário dos personagens de John Wayne, por exemplo, sente medo. O ator havia acabado de sair de uma operação de úlcera e alguns esgares de dor e desconforto adicionam muito ao clima da fita. A falta de cor contribui para a atmosfera de abandono e talvez não tenha sido causada unicamente por motivos financeiros, afinal.

E é graças a essa atmosfera e à atuação nuançada de Cooper que Zinnemannn consegue nos empurrar a mensagem nada sutil de Carl Foreman. O juiz vai embora da cidade e aconselha o xerife a fazer o mesmo enquanto dobra a bandeira americana e guarda a balança da Justiça. Cooper está tão só como os acusados por McCarthy, como o pessoal da lista negra. Piorando a solidão de Cooper está o ar civilizado que envolve seu abandono. Miller não é um homem de fronteira sujo chegando com seus irmãos do rancho no Cudujudas, mas um sujeito bem-vestido vindo de trem, que está no horário. Os cidadãos estão preocupados com os investidores externos. Relógios abundam no cenário, marcando a hora com exatidão. Não temos aqui um confronto entre as forças civilizadoras e a barbárie. Esta faz parte do sistema, faz parte daquela. Boa parte dos valores americanos - não-interferência, a busca da felicidade pessoal, a preocupação com a prosperidade - são usados como desculpa para evitar o confronto com os perigosos meliantes. Todos apontam como solução a fuga de Cooper. Honra, afinal, é um conceito medieval pré-capitalista. A ideologia da livre-empresa e individualismo também é da indiferença. Partidários da guerra do Iraque costumam comparar a derrubada de Saddam Hussein ao combate contra Hitler, esquecendo que foi este quem declarou guerra aos EUA, logo depois que os japas tomaram a iniciativa atacando Pearl Harbor. Quem partiu pro confronto logo de cara foram os franceses, trazendo os ingleses a reboque.

Mas Grace Kelly vai acabar se provando digna de seu homem, tomando seu partido no duelo final, na verdade, pouco emocionante e relativamente fácil, depois de tanta falação sobre a ameaça daquele bando. Foreman realmente devia estar puto dentro das calças, já que a atitude da loiríssima WASP pacifista e americaníssima para ajudar seu macho é atirar escondida num sujeito pelas costas. Tanta bile tinha o roteirista que concatenou um antológico final, quando depois de matar todo mundo e ver os cidadãos finalmente aparecerem para cumprimentá-lo, Cooper atira a estrela com nojo no chão e se manda, fazendo o público vibrar catarticamente, voltar pra casa e reeleger McCarthy.

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