julho 15, 2012

O Espetacular Homem-Aranha

Alan Moore escreveu nos anos 80 duas histórias em quadrinhos seminais para o gênero dos super-heróis, “Watchmen” e “The Killing Joke” (mal traduzida para “A Piada Mortal”). A simples menção destes títulos para nerds leva-os a se prostrarem, jogarem cinzas sobre suas cabeças e berrarem que não são dignos. O Moore, entretanto, não é tão entusiasmado quanto a essas obras e já deixou claro várias vezes em entrevistas que se arrepende de tê-las escrito, chegando até a pedir desculpas por autorá-las.

As duas histórias são violentas e sombrias e, junto com a magnífica “O Cavaleiro das Trevas” (e ainda “Batman Ano Um” e “A Queda de Murdock”), foram o marco zero dos quadrinhos de super-heróis perturbados, problemáticos e beirando o sadismo que dominariam os anos 90. A década da new wave valorizava o art decó e os anos 40 e, subsequentemente, o filme noir, tão idolatrado naquela era que acabou infiltrando-se em tudo que era produto cultural de massa. Além disso, os nerds que cresceram lendo Stan Lee e só conheciam as HQs pós-revolução Marvel se tornaram profissionais do ramo e estavam doidos para seguir os passos de seu mestre e fazer de seus heróis personagens cada vez mais falíveis e cheios de defeitos, num afã de torná-los mais “humanos”.

Foi uma era difícil. Numa historinha extremamente pretensiosa e narcisista, Grant Morrison (isso mesmo, o roteirista se encaixou na trama) explica ao Homem-Animal que os escritores haviam tornado o universo dos super-heróis mais violentos no afã de que ele parecesse mais realista. “Que Deus nos perdoe”, completava ao final o egomaníaco escriba, com completa razão. Os anos 90 foram a era de ouro de “heróis” que matavam, mutilavam, assediavam sexualmente e se drogavam, tudo em nome do “realismo”. Lendo hoje em dia coisas como “A Queda de Murdock”, um enredo hiperdurão, um arremedo de noir, escrito por um nerdão como Frank Miller, é incrível como alguém possa ter levado aquilo a sério. A coisa é quase tão exagerada e over como o pastiche (intencional) que é “Sin City”.

Mas não foi por causa disso que Alan Moore pediu desculpas pelas suas histórias. Bem, em parte foi, mas a verdade é que toda essa trilha era bastante previsível a partir do momento em que ele abriu a porteira. É que Moore, anos depois, chegou a uma conclusão que era óbvia para todos os nerds da era pré-internet, quando os universos fictícios tinham começo, meio e fim e não almejavam se tornar um mundo alternativo do qual ninguém mais saia: aqueles personagens encapuzados e de colante não foram feitos para terem profundidade psicológica (conclusão a que ele também poderia ter chegado bem antes se não estivesse tão preocupado em parecer inteligente).

Então eles foram criados para serem o quê? Bem, há alguns anos passou na tevê a cabo o estapafúrdio reality show “Quem quer ser um super-herói?”. Com baixo orçamento e apresentado por Stan the Man em pessoa, um bando de nerds e aspirantes a celebridade criavam um uniforme e um personagem e cumpriam tarefas a fim de que, no final, só sobrasse um, que protagonizaria um gibi escrito por Stan Lee.

Nunca vi nenhum desses prometidos gibis, mas o vencedor daquela temporada foi um nerdão americano. E, apesar da precariedade do programa, a premiação foi emocionante, quando o nerdão começou a contar como perdera o pai cedo e, portanto, Stan Lee foi tinha sido a grande figura paterna para ele, ensinando-lhe valores, moral e como se relacionar com as pessoas, através de seus personagens e suas histórias (aliás, um famoso jornalista cultural também idolatra esses produtos culturais nerds justamente porque foram eles que salvaram sua infância).

Pois era exatamente para isso que serviam os quadrinhos de super-heróis. Aqueles sujeitos encapuzados não eram homens, não eram personagens de Shakespeare ou Cervantes, mas sim mitos. Suas aventuras eram as odisseias mitológicas de nosso tempo. Álvaro Moya, numa feliz alusão, chamou Stan Lee de “o Homero dos quadrinhos”. Embora talvez ele estivesse mais para Ésquilo, já que adicionou aos mitos primários da Era de Prata (1) mais tragédia e complexidade, inclusive introduzindo a hubrys como parte da trama.

Foi com essa abordagem e uma câmera na mão que Sam Raimi levou às telas no começo desse milênio uma das melhores películas de super-herói já feitas (sendo que sua sequência é uma das poucas fitas que a superam). Para tanto ele abusou de interpretações exageradas, enquadramentos baseados na arte sequencial da Marvel, cores primárias em abundância e edição remetendo a filmes B, desenhos animados, histórias em quadrinhos P & B e velhos seriados cinematográficos, referências culturais em si já quase arquetípicas de tão usadas (e apreciadas). Não há como se contar de forma “realista” as aventuras de um sujeito vestido de aranha, que gruda nas paredes sabe lá Deus como contra outro caboclo que voa no que parece ser um skate e joga bombas desintegradoras. É preciso apresentá-las como elas são, um mito.

Mas Sam Raimi era caro, Tobey Maguire era caro, Kirsten Dunst era cara e Raimi torrava grana pra conseguir seu visual mitológico. O extraordinário sucesso da Marvel Studios, com filmes de orçamento bom, mas não gigantesco, astros não exatamente de primeira linha e historinhas menos ambiciosas despertou a cobiça da Sony Pictures, que detém os direitos sobre o Aracnídeo. E assim chegamos ao novo filme sobre Peter Parker, o maior super-herói de todos os tempos (super quem?).

A diferença entre a fita atualmente em cartaz e os filmes de Sam Raimi é a mesma entre alguém chegar e contar uma história engraçada e um vivente reunir várias pessoas e começar um relato de horas com palavras como “aproximem-se todos, pois vou descrever agora a vida e as aventuras de Peter Parker, herói cujo maior poder era sua integridade e sua humanidade bla bla bla...”. Esta última é um mito. Esta última é maior do que a vida, é um amplificado conto moral. O que não é “O Espetacular Homem-Aranha”.

O filme não é ruim. Pra começar, as cenas de ação são bem coreografas e filmadas com preferência para o plano aberto, sem uma edição cheiradaça. O que leva a plateia a realmente ENTENDER o que está acontecendo e por que os personagens estão vencendo (ou perdendo) a luta. Num dos poucos pontos em que a fita atual supera a original é que os criadores das porradarias preferiram enfatizar a agilidade do Aranha. Mais surpreendente ainda é que o diretor Marc Webb não tem passado no cinema de ação e, portanto, as chances de que o estúdio (ou ele mesmo) pusesse a responsabilidade pela pancadaria nas mãos de um coordenador de animação gráfica doido pra imitar Paul Greengrass ou Michael Bay eram enormes.

É bem verdade que a coreografia pode ser melhor porque se passaram mais de dez anos de avanços na computação gráfica do Raimi até o Webb. Mas quando até mesmo o grande Spielberg se rende à animação digital nas confusas cenas de ação de “Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal” e “Tintim”, é alentador ver que ainda existe vida cerebral nas porradarias no cinema, em vez de pontos de vista se deslocando como um mestre-sala bêbado só porque o diretor agora PODE.

A abordagem da fita atual, descontando as cenas de ação, é imitar um filme da Marvel que tivesse um adolescente como protagonista. Imagine um "Smallville" (um pouco) menos infantilizado. Peter Parker é um adolescente em crise e pra ninguém ficar em dúvida, repare que ele sempre entra na casa de Gwen Stacy pela janela, como fazia o Dawson da (chatíssima) “Dawson's Creek”. Só que sendo o Aranha quem é, Gwen mora na ponta de um arranha-céu.

Os atores estão bem, os personagens nem tanto. A tia May, que está para Parker como Stan Lee para o nerdão que ganhou a primeira temporada de “Quem quer ser um super-herói?”, parece uma debiloide. O capitão Stacy é interpretado por Dennis Leary, comediante apresentador da MTV nos anos 80 e protagonista de “The Job” e “Rescue Me”. Transmite integridade, é verdade, mas dá umas escorregadelas caindo numa irreverência inconsistente com o seu papel. Andrew Garfield trai a idade nos closes. Flash Thompson abre a película com atitudes completamente incoerentes com seu duplo nos quadrinhos – ele sempre foi um valentão, mas um valentão ético. Se assediava moralmente o pobre Peter Parker, fazia-o involuntariamente, sem partir pra porrada (covarde) ou oprimir fisicamente os outros. Tais atos tornariam impossível a conversão que ele sofreria no decorrer da HQ (e que se reflete em parte na fita).

Num filme de super-heróis em que se desvaloriza o componente mitológico, era de se esperar que as cenas de diálogo e drama fossem menos bem-sucedidas, o que arrasta o filme até Parker ganhar seus poderes e deixa à mostra um monte de buracos de roteiro. Mas, a partir da picada da aranha, a trama desliza suavemente e dá até uns motivos pra Parker se regozijar antes do clímax.

Se você gosta de super-heróis e filmes de ação, pode pegar uma sessão que não irá se arrepender. Para o resto do público, talvez a película não soe tão atraente. As obras de Raimi eram originais tanto na forma quanto no conteúdo e até a mãe do blogueiro, que odeia fitas que tenham coisas fantásticas e que não existem, se amarrou nelas. Já em “Espetacular Homem-Aranha”, os jovens nerds sentados na fila de trás saíram do cinema dizendo que acharam a produção melhor do que as anteriores. O que talvez prove que a ideia dos executivos da Sony, de que adolescentes precisavam se identificar mais com o Peter Parker. Para isso, nada melhor do que fazê-lo uma cópia dos personagens dos seriados da Sony. Isso, aqueles a que a galera teen assiste obsessivamente. Assim, vendo seu herói igual aos estereótipos que povoam aqueles programas, eles podem se relacionar com ele. Porque só se for assim, já que adolescência pouco tem a ver com aquela estranha turma que habita esses seriados.

(1) Era de Prata é o apelido que ganharam os comics dos anos 50 e 60, dominados por revistas em quadrinhos. Esse tipo de produto, mal pago e direcionado exclusivamente para crianças, gerou na média obras de menor qualidade que as das décadas anteriores, mais baseadas em tiras de  jornal, e que ficaram conhecidas como “Era de Ouro”.

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