agosto 03, 2008

O Soldado se aproximou com a 38. O sargento com a automática - calada, negra como carvão, brilhante como o raio quando cuspindo chumbo. O tenente, um rapaz belo e vigoroso por quem tantas moças em seu bairro suspiravam, levantou o seu fuzil que enchia o ar de tanta bala que ninguém escapava de sua pontaria (era o que diziam, porque ninguém que tinha visto ele atirando sobrou pra contar). E mais soldado chegou com 38, mais sargento com automática, e umas eram escuras e quietas, cheias de vontade de ter histórias pra contar e outras eram claras e elegantes, niqueladas e brilhantes, como os feitos que queriam realizar. E entre tantos, tanta gente, as pessoas com os rostos preocupados, se escondendo nas esquinas e torcendo ora por um, ora por outro, era tanta a correria que mais queriam é correr, sem pra onde nem saber, vinham dos bares e das boates, das casas e dos carros, que vinham ouvindo o que de boca em boca ia correndo mais rápido que os soldados - "O homem lobo tá cercado, o homem lobo tá arranjado, vai tanta bala voar que ninguém vai escutar quando de morte ele gritar". Mas chegavam e viam tudo quieto e nada de barulho, só um pouco de zoeira, que é pra gente lembrar o lugar em que a gente está. E aparece mais soldado e aparece mais revólver e olha que aparece até um major de megafone. O major dá ordem aqui, o major dá ordem acolá - o major sabe comandar! O major fala com o tenente e fala com o soldado. As armas querem atirar, mas eles vão ter que esperar. E todo mundo olha, e todo mundo vê quando o major levanta o megafone e grita pra todo mundo saber - "Homem, Fera, o que lá que seja, você não é o primeiro que a gente vai enfrentar. Os outros da tua raça todos a gente enterrou. Então se entrega, criatura malfazeja, você não tem pra onde escapar!". E o povo ocupando as ruas, uns aplaudem e apóiam, outros vaiam e apupam. "O major e os tenentes, os sargentos e os soldados, tantos que nem dá pra contar, como o homem lobo vai escapar?", perguntam uns. "A Fera só quer saber de matar. O sangue que ele derrama não seria eu a querer limpar. Os mortos que ele faz não seria eu a querer enterrar. Há tanto tempo dele tão atrás que até já perdoaram as coisas que ele faz, até querem mais ver os crimes ele cometer. O homem lobo é um assassino, o homem lobo é um criminoso, grandes fugas ele sempre soube tecer mas não é isso o que ele melhor sabe fazer", respondem os outros que aplaudem o tenente, aplaudem o sargento, aplaudem o major.
O homem lobo ninguém vê, o homem lobo sabe se esconder. Pode estar cercado, pode estar arranjado, mas uma boa visada dele, ninguém ali nunca vai ter. Alguém grita - "Eu vi uma sombra se mexer!", outro comenta "Tem alguma coisa ali a correr", mas quem é que pode dizer onde o homem lobo foi se esconder?
E então fica assim, o lugar todo cercado e o homem lobo refugiado. Os policiais todos armados e o homem lobo isolado. E todo mundo preocupado, todo mundo assustado, menos o major, que pega o megafone e grita de novo, inflamado: "Homem, fera, lobo, não importa, se não se entrega, logo vai ser morto!"
E é então que finalmente o homem lobo responde, e é então que a gente toda ouve, é um uivo, é um lamento, se escuta e não se sabe de onde, o soldado esconde a arma, do tenente gela o sangue, e o sargento, crente e protestante, se benze e se prepara e só o major, impávido, ousado, atrevido e arretado, desafia o uivo do homem lobo, desafia a fala do homem lobo, desafia aquele de quem o grito corre nas veias de toda a gente e enche de medo o coração, pois quem ouve o homem lobo tá marcado de morte, tá pronto pra passar dessa pra melhor.
"Lobo, se tem gente em você, responde e se rende. Tenho o tenente, o sargento, o soldado e os 38. Já fiz teus ancestrais correr, já enterrei os que vieram antes de você. Se entrega logo ou você vai ver quanta bala a gente tem pra te matar", grita o major apertando o megafone. E ninguém responde, ninguém fala, o homem lobo já uivou, muito sangue já provou, muita gente já matou, e não foi proseando que o homem lobo chegou aqui hoje onde ele chegou.
Os soldados esperam, espera o tenente, espera o sargento, espera toda a gente. Uns sorriem e se distraem, outros rezam e se preparam, que hoje enfrentam o homem lobo. O major desiste, larga o megafone e fala pro tenente que o assiste, "Deixa pra lá, eu mesmo vou lá, vou o homem lobo enfrentar que ele não tem arma pra atirar e nem peito pra encarar". O tenente diz que não, que mais reforço tem que esperar, que é o homem lobo que está lá, não é qualquer um que eles conseguiram cercar. O major chama o sargento, o major chama o soldado, "Vamos entrar, vamos procurar, nas sombras ele está, hoje, homens, vamos um homem lobo matar". E as armas se engatilham e os homens vão à espreita, e o major lidera todos eles, vão entrar no beco e vão entrar nas casas, que o homem lobo tá entocado, de lá tem que ser tirado.
E andam perfilados, um atrás do outro, cada um protege o seu, e quando vão entrar na primeira casa pra investigar, outro uivo começa a gente toda a escutar. E das pessoas que estão lá, curiosas, só pra olhar, algumas começam a suar, outras a soluçar, o cabelo a arrepiar, o homem lobo está a uivar, o homem lobo está na tocaia, o homem lobo se prepara, o homem lobo sabe que vai lutar,coitados dos soldados que ele vai encarar.
E alguns também se medram, e alguns até vacilam, sem dúvida todos pensam "é o rei dos assassinos e o pai dos matadores, o senhor dos pecadores, o dono de toda a fúria que o mundo tem de seus moradores! Será que vou viver? Minha família rever? Pros meus netos contar o dia em que fui matar o carrasco dos perdedores?"
Uiva o homem lobo, grita a fera furiosa no meio dos prédios todos.
"Não tenho medo, só desejo de te pegar!" - fica o major a gritar. "Onde é que você está, que nem tem coragem de se mostrar?"
E então um rosnado, uma voz que mais parece um pano, um tecido rasgado, um raio, um trovão caindo nos nervos dos soldados.
"Não tenho medo do teu quepe, não tenho medo do teu uniforme, não tenho medo do teu revólver, não tenho medo dos teus homens, por mais fantasiados e armados que eles sejam! Eu tenho as minhas garras e os meus dentes e minhas tripas e com elas já transformei em carne um bando de homem vivente! Vem major, vem soldado, vem tenente! A Deus não sou temente, com o Demo não sou clemente! Vem, vem encontrar teu destino nas presas da fera demente!"
Soldados se benzem, pessoas se escondem - o homem lobo não se intimida, lança seu desafio! Vê o major assustados seus comandados e timorato, responde com o megafone:
"Bandido, marginal, maluco e demente - não tenho medo de nenhuma dessa gente! Vou botar bala pra voar, tua pele toda vou furar! Vem, vem me encarar de frente!"
O major dá mais uns passos, o tenente limpa o rosto. As carabinas engatilhadas, as armas preparadas. Mas não são nada, não são nada, responde o homem lobo:
"Não lhe vai adiantar nas balas se fiar. Só quem pode me matar é alguém honesto e justo ou aquele tão malvado que já a alma nem tem custo. Aquele que ganhou os céus ou aquele que o Diabo, respeitoso e temeroso, nem conta entre os seus. Essa é a minha bênção e a minha maldição, saber que meu corpo tem tanta proteção e minha alma, quando alguém assim conhecer, não vai admirar, temer nem respeitar."
"Chega então de conversar, vamos começar a lutar! Tenente, Sargento, Cabo, Soldados, palavras mais não há, é hora de atirar!"
Quem ficou ou quem chegou para a caçada assistir se deitou, se escondeu, se agachou. Altos e oxítonos, afinados e barítonos, os revólveres cuspiam chumbo de seus canos. Enchiam o céu de estrondo, o ouvido de estampido, as janelas de buracos, as paredes de orifícios. Bala e barulho a tropa fazia, o resto escondido pra não se ferir, o resto que, desarmado, só podia assistir.
E mais e mais troavam os canhões, as balas crivando as construções, os gritos, os tiros, as munições, quando, em pleno tumulto, o céu já cheio de decibel (continua)

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