agosto 30, 2008

O Terror é um Homem

Carolina, minha prima de 16 anos (chamo de sobrinha porque o pai dela morava no meu prédio e a mãe é amiga de infância minha), fã de terror e filme de zumbi (aquela a quem estou apresentando ao bom cinema e já está vendo Truffaut) já tremeu nas bases ao ver o bizarro horror paquistanês Estrada para o Inferno, mas nem esse precedente a tinha preparado para assistir ao provável mais aterrorizante cineasta vivo: José Mojica Marins e seu Zé do Caixão.

Carolina não assistiu ao Zé do Caixão tão tranquila

Durante os anos 70 eu só conhecia Marins de ter cruzado uma vez com ele na Urca (e meus pais me avisaram, "olha lá o Zé do Caixão" - num ônibus) e depois de suas aparições na tevê. No começo dos anos 80 eu já sabia que ele era considerado cult na Inglaterra, mas sempre que ele aparecia em uma entrevista, ele ficava dentro do personagem. Quando vi pela primeira vez À MEIA-NOITE LEVAREI TUA ALMA achei a fita a princípio risível e depois aterrador. Sem nenhuma das referências comuns de que tudo aquilo é apenas um filme (boa produção, rostos conhecidos, um roteiro estruturado em três atos à moda de Syd Field) e com toda a intensidade que Marins punha na tela, a sensação, como diz Phil Hardy em sua ENCICLOPEDY OF HORROR FILM (que tem na chamada da capa o nome de uns dez diretores, entre eles Marins), era a de se estar espiando os filmes caseiros de um homem muito, muito doente.

Pois era exatamente isso. À medida em que nos acostumamos com o excesso na interpretação de Mojica fazendo o Zé do Caixão e com o inegável talento do sujeito em enquadrar e iluminar, tirando leite de pedra com o zero de recursos de que dispunha, as atividades na tela começam a parecer cada vez menos trash e engraçadas e a afetarem um verdadeiro e aterrador senso de autêntica psicopatia. A misoginia, a misantropia, a heresia de botequim e todos os pensamentos do pária que se julga superior aos poucos vão se infiltrando em seu subconsciente. A precariedade da coisa toda confere a seu modo também um ar de autenticidade impensável numa produção de estúdio de verdade.



E Zé do Caixão não é apenas um ateu, é um ateu fanático e radical. Jesus dizia que a fé remove montanhas e não há a menor dúvida que a verdadeira fé é capaz de transformar um homem - perdido REALMENTE o medo da morte perde-se o medo de qualquer coisa e não há limites para o que se pode fazer. Zé do Caixão mostra que a falta de fá também remove montanhas desde que seja a real e verdadeira falta de fé e não o ateísmo padrão do capitalismo moderno, em que se leva a vida sem Deus, mas com uma vaga esperança de que este mundo não seja o fim ou de que as coisas que você compra salvarão sua alma. Para Josefel Zanatas (o verdadeiro nome do personagem, sendo que "Zanatas" é "Satanás" ao contrário), se não há um além, então todos os seus desejos têm que ser realizados aqui e agora e pouco importa se alguém vai se magoar (normalmente mais do que só se magoar).


As décadas passaram, aqui no Brasil Marins tornou-se também cult e respeitado, apresenta um programa no Canal Brasil ("se você não assistir, irá chorar por toda a Eternidade... como se fosse um... emo!") e tal. É casado (pela quarta vez), a patroa aparece no filme e, na véspera da estréia de ENCARNAÇÃO DO DEMÔNIO, vi uma entrevista dele na TvE, em que contava casos engraçados da filmagem. Há muito que ele praticamente abandonou a cartola, a capa e a paramentação de Zé do Caixão e até as unhas são falsas. Em suma, achando que conhecendo o diretor mais enquanto gente, enquanto pessoa, e tendo sua nova fita muito mais referências (cenários comparativamente mais luxuosos, muitos rostos conhecidos no elenco, inclusive as homenagens a Helena Ignez e Cristina Aché, produção bem cuidada), imaginei que a sensação seria de que aquilo na tela era apenas um longa-metragem assustador e nada mais.



Rapaz...

Ao final do filme eu estava realmente precisando sair e respirar um pouco de ar fresco e ver um pouco de céu. A mim a fita não foi tão assustadora assim, mas o clima doentio que a perpassa de cima a baixo vai se acumulando até que chega um ponto em que toda aquela tinta vermelha, todos aqueles modelos em plasticina de membros decepados, todos aqueles corpos mutilados digitalmente, começam a parecer bem mais reais do que jamais foram. A quantidade de (belas) mulheres peladas, atiradas no filme tão sem-cerimoniosamente em meio a todas as torturas e mutilações, somadas à psicopatia de Zé, que vê como única imortalidade possível um filho - nem que ele tenha matar todos para isto - vão buscar lá no fundo do nosso subconsciente nossos maiores tabus e nossas piores fantasias e remexer com tudo.

Como eu disse, saí do cinema precisando ver gente se divertindo na rua. Minha prima, que gostou do longa desde o começo, recusou minha sugestão de ver outros filmes dele em DVD. "Nunca tinha visto um filme de terror tão forte. É muito bizarro". Ela já tinha ficado perturbada com os zumbis paquistaneses ("eu achava zumbis bonitinhos"), mas nada a havia preparado para adentrar tão a fundo a mente de um psicopata. Hannibal Lecter é elegante e vive num mundo estilizado e usa a pele do manjadíssimo ator shakespeareano Anthony Hopkins.

Quando vi algumas fotos de cena de A ENCARNAÇÃO DO DEMÔNIO, a direção de arte e a iluminação remetiam a JOGOS MORTAIS e O ALBERGUE e imaginei que o cineasta, há vinte anos sem filmar e buscando o sucesso comercial, estivesse se deixando influenciar pelo pessoal mais jovem e bem-sucedido de Hollywood. Pergunta pra Carolina, que viu várias vezes todos os filmes dessas séries e se divertiu em todos eles. Assistir a Zé do Caixão, libertado após 40 anos (e a cena em que ele sai da prisão, apenas uma sombra fora de foco avançando na direção da câmera, é sensacional), não é para todos os gostos e serve pra conferir se seu equilíbro psicológico está em dia.



E tudo isso temperado ao talento inato do Zé do Caixão. Sem educação formal, fã declarado e extremado de histórias em quadrinhos, principalmente as da EC Comics (que a Amicus e George Romero adaptaram na série primeiro cinematográfica e depois de tevê CONTOS DA CRIPTA), Marins tem um talento espetacular para compor, enquadrar e iluminar cenas perturbadoras. Sua câmera está sempre bem colocada e seu olho para criar composições belas e surreais é fantástico e, como de todo bom autodidata, original e único. Contando pela primeira vez com um (relativamente) grande e polpudo orçamento, essas qualidades saltam aos olhos na beleza da cenografia e do claro-escuro, formando cenas espetaculares como a visita ao inferno (que começa com um banho de sangue de suas vítimas penduradas enquanto ele, de capa e cartola, está mandando ver numa das mais belas quarentonas peladas que o cinema exibiu em muito tempo) ou a visão de uma enforcada pendurada numa árvore, que pega uma faca e corta a corda para descer e falar com ele. Outro toque brilhante, aliás, são as visões que o perseguem de suas vítimas passadas, que são em preto-e-branco, como nas fitas em que os assassinatos ocorreram.

A Encarnação do Demônio mostra Mojica Marins em pleno controle de suas obssessões cinematográficas e de seu talento, o que é boa notícia para a sétima arte e péssima para os fracos de estômago (e de alma). Doente assim que eu me lembre de primeira só Jesús Franco, que, no entanto, não aparece pessoalmente em seus filmes, que carecem também da intensidade emotiva de Marins - Franco é mais distante e frio, como bom sociopata. Como já disse um saite gringo, comentando a obra do cineasta, se George Romero, David Cronenberg e David Lynch assistissem a uma fita dele iam ficar embasbacados com o que se passava na tela, perguntando-se "que porra é essa?" Afinal quando o cinema americano mostraria uma cena como a penúltima do filme, misturando necrofilia, heresia e pornochanchada num take com uma arrebatadora beleza plástica?

E, por falar em beleza plástica, Carolina, mesmo com a repulsa que sentiu pelo filme, reconheceu que ele é excelente. E que, visualmente, é um espetáculo. Aos poucos ela vai aprender.

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