junho 24, 2009

Sinopse para a Fábrica de Dramaturgia em 1997

Em 1997 o Planetário fez uma oficina de teatro com três temas, Violência Policial, Desemprego e Saúde Pública. Ao cabo, as melhores sinopses sobre um desses assuntos classificaria seus autores para serem montados num espetáculo coletivo e foi assim que tive uma peça dirigida por Domingos de Oliveira.

Eu levava fé no projeto, acreditava que temática social estava para entrar em moda e escrevi o texto abaixo em duas horas, pois foi na mesma semana em que meu pai morreu e eu estava muito reflexivo sobre responsabilidade pessoal e desintegração da sensação de pertencer a uma coletividade que é a base da civilização. Daí a temática da minha história.

O texto envelheceu demais em doze anos, atropelado pelo vídeo digital, pela Internet (eu era visto como um supernerd à época por ter uma página pessoal e uma câmera digital de resolução de 0,3 megas). Mas acho que em essência, ainda é bastante atual. Ei-lo ai:

Renato era cinegrafista, numa emissora de tevê. Roubando fitas usadas de U-MATIC e material obsoleto, pretendia abrir sua própria produtora. Mas seu chefe o despediu para contratar outro câmera por quem estava apaixonado. Sem perspectivas no ramo, lembra-se da batida que viu certa vez no morro onde comprava drogas e resolve filmar uma dessas ações policiais, para pôr seu nome em evidência. A fita, no entanto, alcança repercussão muito maior do que esperava e, em vez de encontrar trabalho, acaba se tornando um fugitivo, traído por seus amigos e perseguido pela polícia. Assim explica ele na abertura da peça a Marcelo, um morador da favela onde está refugiado, o que faz ali, aos cuidados de Tomé, um traficante em ascensão maquele morro emergente.

Entra Tomé. Os outros traficantes, explica ele, não esconderiam Renato porque mexer com a polícia não lhes interessa. Os policiais sempre sabem o que está acontecendo. Aonde. Como. Mas estão tão sob controle dos criminosos quanto os criminosos sob o deles, nenhum dos lados desejando romper as fronteiras delimitadas de custo/benefício. Somente Tomé, que busca prestígio, aceita abrigar Renato e até mesmo fornecer-lhe os meios para se estabelecer em outro estado e abrir sua produtora. Desde que Renato faça um vídeo sobre Tomé e sua boca de fumo. Renato aceita a proposta e a ação pode começar.

Vai sendo montada uma ilha de edição improvisada na casa onde Renato se esconde. A gravação revela a cabotinice do traficante ao propagandear sua boca de fumo e suas canhestras tentativas de fazê-la parecer apenas um negócio: papelotes com logotipos grosseiros, ofertas especiais e até um computador para registrar transações. Clientes depõem para o vídeo - de costas, é claro. Entre eles, Vera, ex-namorada de Renato, que passa a visitá-lo, algo atraída e excitada pela situação em que o câmera se encontra.

Tomé recebe Pereira, um policial corrupto sob suas ordens. Reconhecendo Renato, ele passa a frequentar a boca de fumo e o câmera pode ouvir suas conversas com o traficante, tentando convencê-lo do erro que é dar guarida ao câmera e como isso vai arruiná-lo.

As gravações prosseguem, irritando-se Renato com a tentativa de Tomé de encenar no vídeo a história de amor entre ele e Rose, que deseja ser atriz. O irmão dela é Marcelo, que opera o computador da boca de fumo e toma lições com Renato sobre edição. Ele explica ao câmera que sabe que o reino de Tomé é temporário, que o traficante não tem real idéia daquilo com que está lidando. Dois dos erros dele, o computador e a filmagem, foram na verdade sugestão de Marcelo, que sabe que assim diminui as chances do pretenso cunhado, mas aumenta as dele, ao aprender outros ofícios. Acabam-se os trabalhos da noite e Marcelo sai. Renato recebe então a visita de Pereira. O policial quer convencê-lo a se entregar. O fato dele estar vivo desequilibra toda a balança de poder estabelecido. Arrisca os ganhos e a vida de Pereira. Uma completa aberração. No auge da fúria, entra Vera. O policial vai embora, aconselhando dubiamente Renato a ficar alerta. O casal faz amor ao som de balas da boca de fumo festejando uma vitória do Flamengo.

Eles são acordados no meio da noite por um dos moradores da favela. Sabendo que Renato trabalhou na televisão, ele quer que o rapaz o acompanhe a um hospital próximo, onde o filho dele que sofreu um acidente ainda não foi atendido. O homem acha que uma câmera pode intimidar os funcionários. Renato e Vera discutem se é seguro para ele ir ou não, mas chega Marcelo e avisa que o garoto morreu. Marcelo vinha buscar o equipamento para ele mesmo fingir que era jornalista e leva o homem embora. Pouco depois chega Tomé, revoltado. Inteirado do que ocorreu, vai liderar a favela num apedrejamento ao pronto-socorro e quer que Renato filme. Vera fica sozinha e Marcelo volta para levar o equipamento de edição. Ele sabe que este é o fim do ciclo de Tomé. O pronto-socorro era uma importante obra política. A história que será espalhada é que o rapaz que morreu era traficante e por isso o apedrejamento. A polícia será acionada e desta vez não irá respeitar acordos e subornos. Ele vai, levando seu tesouro e avisando Vera para salvar sua pele e não esperar pelo seu amado. Ela vai embora também.

Voltam Tomé e Renato. Tomé está eufórico com a destruição e sentindo-se um glorioso salvador, enquanto Renato está trêmulo e assustado com as sirenes que ouve. O traficante é avisado pelo celular que a polícia está subindo. Renato tenta fugir, mas Tomé o obriga a ficar e filmar o tiroteio - o clímax do vídeo que estão fazendo. Começa a troca de tiros e Tomé vai se tornando cada vez mais enlouquecido. Pereira, que se encontrava no morro quando começou a batida, entra na casa, disposto a matar o câmera, que ele culpa pelo desatino de seu empregador. Tomé o impede e os dois lutam. Renato se apossa da arma. Tomé pede a ele que atire no policial. O tiroteio continua lá fora. Renato dispara e mata Tomé, seu protetor. Pereira, livre, tenta atacá-lo. Renato diz a ele que o policial só sairá vivo se lhe abrir caminho para sair dali. A polícia entra na casa. Pereira diz que Renato o salvou e estava lá continuando sua série de reportagens. Ele agora tem uma fita da heróica ação policial que libertou o morro do criminoso que os forçou a destruir seu pronto-socorro recém-reformado. Os policiais saem, deixando o corpo de Tomé aos cuidados de seu colega Pereira. Chegam Rose e Marcelo. Rose chora a morte de seu amado. Entra Vera. Enquanto Pereira e Marcelo conversam reservadamente num canto, com o primeiro pedindo o auxílio do segundo para assumir a boca de fumo sem dono, Rose cobra Renato pelo que fez e vai embora, levando o irmão, que no entanto parece ter aceito a proposta do policial. Vera pergunta reservadamente a seu namorado porque afinal tinha matado Tomé e ele confessa que na verdade não sabe atirar e não tinha um alvo definido. "Eu arrumaria uma saída, Vera, fosse quem fosse que caísse. Mas se eu não matasse ninguém, eu estaria perdido". Cortina. Fim.

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