O Fator Alternativo
Saulo de Tarso, quando quis ampliar o apelo dos ensinamentos de Cristo, usou seus conhecimentos das religiões populares da época para criar uma mistura que dominaria a cultura ocidental pelos próximos dois mil anos e o faria conhecido como “São Paulo”. Um dos empréstimos foi do zoroastrismo e sua idéia de uma luta eterna entre o Bem e o Mal que terminaria com a vitória do primeiro ao fim dos tempos. E por “bem” entendiam-se todas aquelas características dos mamíferos – afeição, família, racionalidade. Houvesse publicitários naquela época e algum poderia ter sugerido o slogan “De que lado você está”?
Influenciada pelo agnosticismo positivista de Gene Roddenberry, “Jornada nas Estrelas” no entanto explica que a coisa não é tão simples. Em “O inimigo interior”, separar-se de seu “lado mau” não fez de Kirk um homem perfeito, mas um comandante incapaz de tomar uma decisão e, ironicamente, moralmente fraco. Para quem não entendeu a mensagem, a turma da Enterprise repete o conceito, literalmente mostrando uma eterna luta entre indistinguíveis bem e mal numa dimensão vazia e desolada apenas porque as duas metades não conseguiam viver sabendo da existência de seu reflexo.
Investigando porque toda a realidade começou a “piscar”, sumindo e voltando, a tripulação da Enterprise se depara com um homem que muda de humor e comportamento subitamente, com seus ferimentos sumindo e voltando, enquanto alega lutar com um monstro que pretende destruir o Universo. Várias forçadas reviravoltas depois a história é esclarecida: o sujeito na verdade são dois viventes, um de matéria e outro de antimatéria. O que parecia “bom” viu o outro e imediatamente enlouqueceu e jurou destruí-lo, simplesmente por existir, remetendo à “sombra” junguiana, a personificação do que reconhecemos ser nossos piores defeitos e que por isso projetamos sobre aqueles que não gostamos. Mas a metáfora é vaga e poderosa, podendo encaixar-se nela qualquer intolerância.
E, falando sobre metáfora, a imagem final, com o mau-bom sacrificando-se, fechando-se com o seu duplo bom-mau numa dimensão vazia e desolada, numa luta eterna e interminável, é o melhor do episódio e por isso foi o que ficou na memória desde que eu era moleque. Como a presença dos dois no universo de matéria ou no de antimatéria poderia levar ao colapso de toda a realidade, o sujeito misterioso aceita de bom grado seu encargo. O sacrifício pode soar cristão, mas também é um excelente alerta quanto aos resultados da intolerância ou mesmo de não aceitarmos nossa totalidade e tentarmos reprimir nossos instintos e nosso “lado mau”.
Embora com essa inegavelmente poderosa imagem final, o episódio não é lá dos melhores. O principal problema é que, como as histórias de “Além da imaginação”, ele deveria ter meia hora. Não há muita interação entre a tripulação e o enfoque fica no alienígena, que anda livremente pela nave, sem ninguém tomando conta, sendo recapturado e solto novamente várias vezes sem muita explicação além de precisar esticar o tempo até chegar ao ótimo fim.
A cinematografia conta com alguns precários efeitos especiais – basicamente imagens solarizadas e em negativo – para mostrar as lutas entre os duplos, que até conseguem dar um sabor ao visual, mas a iluminação da nave novamente está chapada e nada consegue dar vida ao paupérrimo cenário do planeta que faz fronteira com o universo de antimatéria. O ar hippie do alienígena – hippies na época ainda eram seres desconhecidos e temíveis – reforça a incapacidade de se rotular o que é bem e o que é mal, já que o lado que parecia o mocinho é o maluco e o suposto monstro é a parte sensata e bem humorada.
“O fator alternativo” tem um início instigante e um final provocador, mas o episódio sofre com a enrolação no meio e a falta da interação entre os personagens, que a essa altura da temporada, já estava bem mais desenvolvida. Não vale a pena classificá-lo como “bom” ou “ruim”, porque, como ele ensina, há muito mais do que apenas esses dois lados da moeda (e só por isso ele deveria estar do lado bom, he, he, he).
Digno de nota:
- Contagem de corpos: zero. Algumas escoriações em dois universos, mas nada sério.
- Scott não aparece neste episódio; o engenheiro de bordo é uma negra – ousadia! - que usa uma camisa azul, da área científica. Engenharia e segurança sempre foram vermelhas. Por que a mudança?
A Seguir: Viagens no tempo... sempre complicadas - "O Amanhã é Ontem"
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