junho 01, 2009

A Fronteira Final - A Primeira Temporada de JORNADA NAS ESTRELAS - A série clássica



A Consciência do Rei

Anteriormente: Onde Homem Nenhum Jamais Esteve


Vinte anos não é nada. Quem tem mais de 30 há de lembrar bem da Queda do Muro de Berlim ou pelo menos da Guerra do Golfo de 1991, até porque foi a primeira vez que o mundo acompanhou um conflito ao vivo 24 horas por dia - a Band transmitindo ininterruptamente a CNN em espanhol fez tanto sucesso que a Globo lançou a tevê paga no Brasil logo em seguida.

Pois em 1966 fazia apenas vinte anos que tinha acabado a II Guerra Mundial e o pessoal que tinha lutado, comandado tropas, exércitos e campos de extermínio ainda estava bem vivo e forte, muita gente ainda na flor da idade. A ferida ainda estava muito viva e testemunhas oculares dos horrores se espalhavam pelo mundo. Eichmann acabara de ser julgado em Israel e sua imagem e presença medíocres levaram o mundo inteiro a pensar no quanto era assustadora a banalidade do mal (título de um livro de Susan Sontag sobre o assunto).

Tal tema atraiu também um veteraníssimo roteirista americano. O que levava um homem medíocre daqueles a se tornar um genocida tão frio? E como foi para ele depois assumir uma identidade anônima no cudujudas? Seria ele, como Macbeth, atormentado pela culpa? E não seria todo o resto do mundo uma espécie de Hamlet, preferindo enterrar o assunto a assumir suas responsabilidades aceitando que o resto é silêncio? Os papéis que representamos para o mundo e para nós mesmos, devido a nossas ambições e culpas, o niilismo da aceitação do mal, responsabilidade pessoal, a importância da arte, misturar tudo isso daria uma história excelente! Mas o pessoal da nouvelle vague morava do outro lado do Atlântico e ninguém iria querer filmar um troço desses na América da época. Talvez só aquele garoto com aquela ideia maluca de ficção científica cabeça...

Com brilhantes diálogos (“sou um ator”, “e o que você era vinte anos atrás?”, “mais jovem”), uma direção de Gerd Oswald com toques expressionistas e que chega ao preciosismo de usar metáforas visuais (a primeira aparição de Kodos fora do palco por trás de uma grade, ele segurando uma máscara enquanto encarna o fantasma de Hamlet pai), referências cruzadas de Shakespeare (tudo bem, são as peças óbvias, mas funcionam direitinho, ainda mais num contexto de programa de televisão), “A Consciência do Rei” é o episódio predileto de gente como Ronald Moore (da Nova Geração e criador do novo Galactica), Matt Groening (que batizou de “Kodos” um dos alienígenas dos Especiais de dia das Bruxas) e o valente editor da Zé Pereira. Marcante e surpreendentemente ambíguo e nuançado prum show de phasers e naves espaciais, o blogueiro lembra que láááááá nos anos 80, quando exibido pela Band, foi o assunto do dia seguinte entre seus amigos de colégio. “Pensa bem, é como ele disse, se as naves de socorro não tivessem chegado a tempo, ele seria um herói”.

Isso porque vinte anos antes do episódio, numa colônia no cu do universo com 8 mil habitantes, uma praga destruiu as provisões. Kodos tomou o poder e com base em suas ideias de raça superior, escolheu os 4 mil menos aptos a sobreviver, para matá-los de forma rápida e indolor. Mas inesperadamente apareceram as naves de resgate e na luta da Frota contra os seguidores do tirano, ele acabou sendo dado como morto, seu corpo tão queimado que irreconhecível. E, depois desse tempo todo, um amigo de Kirk pensa reconhecer num ator mambembe o sanguinário genocida. E logo em seguida é assassinado, como quase todas as testemunhas sobreviventes do massacre. Apenas dois restam. Kirk e Riley, o tenente que quase destrói a nave em “Tempo de Nudez”.

A partir daí o episódio vira uma verdadeira salada, misturando de forma às vezes pouco fluida, mas sempre instigante, romance, mistério policial, conflitos existenciais e interrogações sobre o mal e responsabilidade pessoal. Kirk usa todo seu arsenal de espada e matador jogando um papo aranha pra cima da filha do ator mambembe cheio de segundas intenções (cama é sempre a primeira pra Kirk), tentando se aproximar do suposto tirano, e em certo momento não sabe mais se está fingindo estar apaixonado ou apaixonado. Depois de fracassar buscando a imortalidade e um sentido de vida como líder de homens, Kodos tenta a arte, escondendo-se por trás de papéis e mais papéis, a culpa de seu fracasso perseguindo-o a vida toda. Kirk debate-se entre o sentimento de vingança e de enterrar tudo aquilo e até o mesmo jovial tenente Riley torna-se um homicida. Após inspiradas cenas, como o discurso triunfal de posse de Kodos, anunciando a vitória da revolução, com sua decisão de massacre dos colonos, relido por um ator alquebrado e derrotado, ou o fantasma de Hamlet segurando em close uma máscara declamando “a mais leve menção do que presenciei faria o seu sangue gelar”, a direção encena mal a sequência final, mas com o roteiro mantendo o nível e mostrando como os erros do passado se perpetuam quando a história é esquecida, bem como as consequências de nossos pecados, dá até pra perdoar os cenários de peça de jardim de infância do grupo teatral futurista. Um dos mais complexos e brilhantes momentos de Star Trek. Perto de coisas como essa, o resto do que se fazia na tevê de então eram historinhas de uma hora, cheias de som e fúria, narradas por um idiota e significando nada.

Digno de nota:

- A ordenança Janice Rand aparece pela última vez neste episódio, lançando um olhar disfarçado de ciúme pra nova conquista de Kirk. Uhura e ela começaram a série como secretárias gostosas, mas enquanto Nichelle Nichols lutou pelo aumento do status de sua personagem, como queria originalmente Gene Roddenberry, Grace Lee Whitney confessadamente adorava seu papel porque podia usar microssaias e exibir as pernas. Deu no que deu.
- É a primeira vez que aparece o deque de observação da Enterprise.
- Também pela primeira vez Kirk explica que a Enterprise é projetada para simular os ciclos normais de um planeta e a iluminação diminui pra imitar uma “noite”.
- O oficial da ponte interpretado por Eddie Paskey, que de ponta em ponta acumulou 57 aparições na série, mais do que Sulu ou Chekov, tem o nome revelado pela primeira vez: sr. Leslie.

A Seguir: Um tempo para crescer, outro para envelhecer. Um tempo para nascer, outro para morrer. A Enterprise e... "Miri", pelo blogueiro convidado Roger Filósofo

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