junho 27, 2009
A Fronteira Final - A Primeira Temporada de JORNADA NAS ESTRELAS - A série clássica
Gene Roddenberry confessadamente inspirou-se em “Planeta Proibido” para criar “Jornada nas Estrelas”. O longa dos anos 50 tinha um disco voador terráqueo explorando pacificamente o espaço, uma formalidade militar atípica da década cheia de naves com radarscópios e volantes de direção, alusões a animação suspensa e hiperespaço para explicar viagens interestelares, um capitão espada e matador (Leslie Nielsen como autêntico galã!), grande amigo do médico de bordo, mais um engenheiro capaz de realizar consertos miraculosos, envolvidos numa trama que começa um estranho mistério e deságua numa instigante metáfora intelectualizada. E tudo isso embrulhado pra parecer uma historinha de aventura cheia de ação (pra época).
Depois de aproveitar a ambientação toda da fita dos anos 50, Roddenberry, ainda não satisfeito, recauchutou a própria trama do longa pra fazer “A Licença”. Infelizmente, enquanto a transcrição para a tela pequena tornou a astronave mais realista e mostrou-se um veículo perfeito para o positivismo utópico do criador da série, a trama, quando adaptada por Theodore Sturgeon, infantilizou-se e perdeu sua agudeza. O planeta que concretiza sonhos deixa de ser o incômodo – e mortal – lembrete de que por trás de todas as conquistas racionais da humanidade permanecem os instintos básicos reptilianos e se torna literalmente um parque de diversões para a tripulação da Enterprise, sendo o único detalhe a lembrar a trama original Finnegan, o valentão da Academia da Frota Estelar.
O episódio começa numa divertida nota, com Kirk e Spock reconhecendo que os últimos três meses (o tempo em que a série estava em exibição) haviam sido muito cansativos. Localizando um planeta agradabilíssimo, igual à Terra, só que sem vida animal, parte da tripulação, incluindo o capitão, desce, e começa a dar de cara com coisas inesperadas, a começar pelo (boa sacação) coelho branco de Alice.
A partir daí, tudo que nossos heróis desejam torna-se realidade. Uma das muitas ordenanças gostosas à disposição da Enterprise pensa que numa paisagem tão bonita uma moça só precisava de Don Juan e imediatamente um galante aventureiro a assedia. Sulu encontra um 38 em perfeitas condições e descobrimos que também gosta de colecionar armas. E, no momento mais revelador do episódio, Kirk encontra o valentão que o sacaneava sempre na Academia da Frota Estelar... apenas para ser por ele sacaneado novamente.
Como se deve ter cuidado com o que se deseja, as fantasias da turma de terra vão se tornando perigosas. Don Juan quase estupra a moça, um avião que aparece para um fã de Segunda Guerra Mundial o metralha, um tigre ataca um casal, uma fantasia de princesa e cavaleiro andante tem consequências aparentemente trágicas. E Kirk é constantemente provocado por Finnegan, levando a uma longa luta entre os dois, com o gozador lembrando ao capitão que ele é um homem velho, enquanto Finnegan ainda tem vinte anos.
Após várias peripécias, Kirk, todo machucado, finalmente consegue vencer Finnegan e confessa a Spock que se sentiu bem, pois durante uma década e meia o capitão estelar, apesar de todo seu sucesso profissional (para não falar da vida amorosa) guardou um inexplicável rancor pelo cadete sacana. Spock conclui que o planeta na verdade está concretizando os desejos das pessoas e, dito e feito, aparece o Zelador, um sujeito de uma das providenciais raças de semideuses que povoam o universo de Roddenberry e explica que aquilo é um parque de diversões e ninguém se machucou – McCoy reaparece dizendo que foi “reparado” em oficinas subterrâneas.
Enquanto em “Planeta Proibido” a ativação da máquina que realizava desejos destruiu a raça avandíssima que a criou porque também deu vida a todos os secretos rancores e perversões subconscientes, em “A Licença”, Kirk e Spock argumentam que, uma vez alertados sobre como a coisa funciona, os tripulantes vão se divertir à larga. O ponto é coerente com a visão utópica de Roddenberry, de triunfo da razão sobre os instintos - como em “Um Gosto de Armageddon”, onde Kirk declara que podemos reconhecer sermos todos bárbaros assassinos, e que não mataremos hoje - mas rouba o programa de maior relevância, sem nenhuma ideia tão forte quanto o Monstro do Id, a pesadelar encarnação dos desejos incestuosos de Morbius pela filha, capaz de atravessar aço krell como se não existisse.
Típico da tibieza do episódio é o final, quando Kirk resolve passar os dias da licença no planeta ao lado de um construto encarnando uma grande paixão de adolescência dele. Finnegan revela ao espectador um rancor irracional de Kirk que explica boa parte de sua personalidade, a qual já conhecemos a esta altura da série o suficiente pra saber que ele não se entregaria de tal forma a uma reconhecida – ainda que gostosa - ilusão. Quem melhor se dá mesmo é McCoy, que troca dois construtos de coristas alienígenas por uma gostosíssima ordenança. Afinal, em alguns dias acaba a folga e como o doutor já não está tão na flor da idade quanto o capitão e nem tem sua facilidade com mulheres, é melhor um pássaro de mãozinhas dadas do que duas ilusões abraçadas.
Digno de nota:
- A produção de “Jornada nas Estrelas” tinha o hábito de reutilizar atores em papéis diferentes, como pode se ver pelas múltiplas funções que o tenente Leslie (Eddie Paskey) parece desempenhar. Aqui, Barbara Baldavin reaparece como tripulante e é chamada pelo capitão Kirk de “Teller”, o nome que constava do roteiro. Só que alguém lembrou que ela já tinha feito um personagem de destaque como a moça que iria casar-se com o único tripulante morto na batalha de “Equilíbrio do Terror” e, por isso, nas cenas restantes de “A Licença” ela atende novamente por “Angela Martine”, como no episódio anterior. Só que pega mal pacas, já que, apesar de filmados com uma certa distância, os dois shows foram ao ar em seguida e parece que a mulher, uma semana depois da morte do quase marido, já arrumou namorado e está feliz da vida.
- Contagem de corpos: a ex-noiva Angela e McCoy parecem morrer, mas são “reparados” nas oficinas subterrâneas do planeta. Por que a Federação não tenta obter essa tecnologia não é explicado.
- Finalmente Sulu tem uma fantasia com um samurai, ao contrário de “Tempo de Nudez”, onde esgrima ocidental o fascina mais. Mas prossegue a tese de que os escritores faziam um monte de piadinhas herméticas com a orientação sexual do japa: ele é o único, além da ordenança gostosa, a desejar a aparição de um sujeito com uma espada enorme correndo atrás dele.
- Avistamentos de Tenente Leslie: Ele está no leme, no começo do episódio, substituindo Sulu, que está fazendo a sondagem do planeta.
- William Shatner originalmente pretendia uma cena em que Kirk se atracasse com o tigre que persegue alguns tripulantes, mas foi convencido de que talvez não fosse exatamente uma boa ideia.
A Seguir: Jornada nas Estrelas em dia de Law & Order: "Corte Marcial"
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