março 24, 2010

A Fronteira Final - A Primeira Temporada de Star Trek a Série Clássica



Missão de Misericórdia

Anteriormente: Operação Aniquilar


O que é exatemente ser “subversivo”? Na época da Guerra Fria, dos anos 50 ao anos 80 eram os que queriam subverter a ordem. Não interessava que a “ordem” na verdade fosse uma ditadura militar, subversivos eram os comunas sujos inimigos da liberdade. O que incluía, além dos ativistas e terroristas, também artistas e intelectuais de esquerda.

Mas o que realmente há de subversivo em, digamos, um musical de Chico Buarque chamado “O elogio da traição”? Será que algum integrante da TFP assistiria a essa peça e teria uma epifania, mudando suas opiniões? E um filme de Michael Moore? Qual o fã de Bush que assistiu “Fahrenheit 11 de setembro” e saiu de lá disposto a votar em John Kerry?

É por isso que assistir a um seriado de tevê americano dos anos 60 - quando, para manter o equilíbrio de poder com a União Soviética, os Estados Unidos financiavam prazeirosamente ditaduras militares em toda a América Latina - apresentar um episódio como “Missão de Misericórdia” pode, isto sim, ser considerado verdadeiramente subversivo. O programa subverte seu aparente formato de fantasia de guerra fria, típico da época, para voltá-lo contra si mesmo e questionar os valores por trás das tramas clichês de “comandos” combatentes da liberdade contra malvados invasores alienígenas. E ainda com claríssimas alusões à Guerra do Vietnã, a todo o vapor na época, assunto evitado por tudo que era show de tevê.



Os klingons, que aparecem pela primeira vez, dão à Frota Estelar uma guerra que ela não queria, embora, como comente Spock, os humanos parecem sempre estar arrumando conflitos que não queriam. Precisando de um posto avançado num quadrante estratégico, Kirk e o vulcano descem a um planeta cheio de humanóides num estágio tecnológico similar ao da Idade Média e, em troca de uma base, oferecem a seus governantes – aliás, governantes não, eles dizem ter apenas “conselheiros” - dinheiro, provisões, tecnologia, o que eles quiserem (na época ainda não havia sido criada pelos roteiristas a Diretriz Primária, que impedia a interferência nas culturas de planetas não federados). Para surpresa do capitão da Enterprise, os organianos não manifestam o menor interesse na proposta.

O que é tomado como um insulto pelo maniqueísta Kirk. Quem não está com ele, está contra ele. O militar tenta amedrontá-los dizendo que a única alternativa à sua proposição é uma invasão klingon, uma ditadura militar e opressora, mas isso não muda a opinião dos nativos. E eis que os klingons realmente chegam e ocupam o planeta, liderados pelo Comandante Kor.



Kor é um tremendo inimigo. Neste episódio os klingons, apesar de substitutos para os russos, não são traíras desprezíveis e pusilânimes, mas soldados com forte cultura guerreira (como seriam novamente retratados a partir de Nova Geração). A ótima atuação do comandante alienígena, visivelmente divertindo-se com o papel, fez o blogueiro reconhecer o rosto maquiado como um vilão já visto antes em outra ficção científica e uma rápida consulta aos créditos confirmou a sensação. Kor é interpretado por John Colicos, o Baltar da primeira “Battlestar Galactica”, onde ele tanto abusou de quebras de linhas e expressões faciais que quase conseguiu dar tridimensionalidade a um sujeito escrito apenas para ser mau.

Mas não é o caso de Kor, cuja visão de mundo vem de uma cultura guerreira, o que o faz antipatizar de pronto com os organianos, sempre sorridentes e condescendentes, aceitando passivamente as ordens dos klingons. Sua única simpatia vai para “Baromer”, o único que parece demonstrar ódio contra os invasores, que é justamente nosso capitão Kirk de roupinha medieval. Isolado da Enterprise, que teve que se mandar pra buscar reforço quando a frota inimiga apareceu, ele e Spock, disfarçado de mercador vulcano, resolvem iniciar ações de guerrilhas contra os invasores e começam por destruir um depósito de munições. O que só leva os conselheiros nativos a entregarem-nos, já que as represálias incluiriam sem dúvida ações de violência.

Numa versão tradicional dessa história, o conselho se dividiria, com algum representante mais jovem se desiludindo com os klingons e assumindo o “nosso” lado, mas nada disso acontece. Kirk é interrogado por Kor, que diz que os dois são no fundo bem parecidos. O capitão da Frota Estelar afirma que não, eles não têm nada a ver, ele vem de uma democracia e os klingons são uma ditadura militar. Kor retruca com um sorriso, dizendo que são apenas pequenas diferenças ideológicas, mas que no fundo os dois lados amam o combate. Mas quando tudo parece perdido, os próprios organianos parecem surgir do nada para resgatar Kirk e Spock, “porque seus captores planejavam atos de violência contra vocês”.

Só que a fuga de Kirk e Spock leva os klingons a matarem 200 organianos. O enfurecido capitão estelar cobra providências do conselho, que permanece passivo, o que leva nosso herói a um discurso que é uma completa subversão dos valores vendidos nesse tipo de show: “eu não gosto de você, do seu planeta e nem da sua cultura, mas vou lutar por vocês, mesmo que vocês não queiram”.

Mas se você pensa que este é o ponto alto do programa, ainda tem a hora em que Kirk e Spock conseguem improvavelmente encurralar Kor em sua sala, parecendo ter resolvido a questão, para mais uma vitória do nosso lado e o apoio incondicional dos organianos libertados da opressão. Mas não, Kor explica que o sucesso militar dos klingons é a vigilância. Até mesmo ele é vigiado. E nossos heróis veem que o escritório está grampeado e soldados estão vindo para resgatar seu chefe. A situação mostra a completa falta de coerência interna de uma frase do então recém assassinado Kennedy, um bordão em plena voga na época e pelos próximos 20 anos, “o preço da liberdade é a eterna vigilância”. Liberdade e vigilância são termos contraditórios entre si, no entanto este lema foi envergado pelo intervencionismo americano e seus simpatizantes por décadas a fio.



Uma das coisas que mais irritava os Cheneys da época da Guerra do Vietnã era a passividade dos vietnamitas quanto ao conflito. Exatamente como para os organianos, as lutas entre os americanos e os comunistas pouco lhes diziam. Tudo que eles sabiam é que seus “salvadores” os tiravam de suas terras e os levavam para campos “seguros” longe de suas aldeias e suas famílias. Camponeses analfabetos, paupérrimos e budistas, eram completamente incompreendidos pelos ianques, que jamais conseguiram conquistar seus “corações e mentes”. E frente aos ocidentais materialistas, seu desapego pela vida parecia quase uma provocação.

Parte desse comportamento podia ser explicado pela pobreza – ele não tinha tanto pelo que viver -, parte pela sua religiosidade, provavelmente análoga à do camponês europeu medieval, antes da secularização do Ocidente. Gene L. Coon, autor deste episódio, depois de quatro anos lutando na Segunda Guerra como fuzileiro naval, passou mais de quatro anos nas tropas de ocupação da China e do Japão e certamente teve bastante contato com as filosofias orientais, que parecem ter tido o mesmo efeito sobre ele que tiveram sobre Thoureau. Pelo menos o pacifismo e o radicalismo de não violência aqui retratados lembram muito a filosofia de resistência passiva do famoso pensador.

Mas os organianos já atingiram mesmo o Nirvana há muito tempo. E literalmente. Tendo se tornado seres de pura energia, explicam que tudo que os beligerantes viram eram construtos para interação dos nativos com essa gentalha que ainda usa corpos. Ninguém morreu executado pelos klingons porque ninguém morre há milhões de anos. Um dos conselheiros explica que está ao mesmo tempo falando com Kirk e Kor, vigiando as naves em órbita e em cada planeta dos guerreantes. Ele é o alfa e o ômega, o princípio e o fim, o primeiro e o último. E declara que hoje ninguém morre, impedindo o conflito que abriria a guerra entre a Enterprise e seus reforços e a frota klingon. E Gene L. Coon arremata sua obra brilhantemente subversiva, não só ironizando a frustração de quem esperava uma historinha tradicional com uma grande e decisiva porradaria no final, como também a filosofia agressiva por trás de todas aquelas iniciativas “Aliança para o Progresso” da época. E tudo isso através de um curto comentário de Kor, deliciosamente declamado por John Colicos:

“Ah, teria sido glorioso”.

E este episódio foi.

Digno de nota:

Contagem de corpos: Hoje ninguém morre, graças aos organianos.
Avistamentos de Tenente Leslie (Eddie Paskey): um, muito rápido, virando o rosto na ponte.

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